segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Aristotelismo Antiaristotelismo Ensino de Filosofia

Aos 400 anos
da edição definitiva do texto da
Ratio Studiorum
e da morte de
Pedro da Fonseca

O Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro realizou, nos dias 23 a 27 de agosto de 1999, o I Colóquio Luso Brasileiro de Pesquisa Filosófica.

Patrocínios: Reitoria da UFRJ, CNPq, CAPES, FAPERJ, Fundação José Bonifácio, Fundação Brasil-Portugal

Local: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS. Largo de São Francisco de Paula, 1 - Sala Celso Lemos (3º Andar). Rio de Janeiro-RJ

Programa
23/08/99 (segunda-feira)
9:15 Abertura
9:30 Primeira Sessão
"Ratio Studiorum e filosofia transcendental"
Prof. Dr. Ernildo Stein (PUCRS)
"O problema da nação e da língua nacional na reflexão e ensino filosóficos"
Prof. Dr. Viriato Soromenho Marques (Univ. de Lisboa)
"Filosofia, cultura e linguagem - a pertinência do ensino de filosofia em língua portuguesa"
Profa. Dra. Fernanda Henriques (Univ. de Lisboa)
12:00 Intervalo
14:30 Segunda Sessão
"Aristotelismo e antiaristotelismo no século XVII"
Profa. Dra. Elena Morais Garcia (UERJ)
"Aristotelismo e antiaristotelismo nos Ensaios de Montaigne"
Prof. Dr. Celso Martins Azar Filho
"Aristotelismo e antiaristotelismo no pensamento português: sécs. XVI a XVII"
Prof. Dr. Amândio Coxito (Univ. de Coimbra)

24/08/99 (terça-feira)
9:00 Primeira Sessão
"Teoria e prática em Aristóteles"
Prof. Dr. Mário Guerreiro (UFRJ)
"A recepção da Metafísica de Aristóteles na segunda metade do séc. XVI"
Prof. Dr. António Manuel Martins (Univ. de Coimbra)
12:00 Intervalo
14:30 Segunda Sessão
"As traduções de 'ousia' ao longo da história"
Prof. Dr. Fernando Santoro
"O antiaristotelismo de Giordano Bruno"
Prof. Dr. João Lupi (UFSC)
"Raízes aristotélicas e tomistas do pensamento ético-político português: sécs. XIV a XVI"
Prof. Dr. Pedro Calafate (Univ. de Lisboa)

25/08/99 (quarta-feira)
9:00 Primeira Sessão
"Ratio Studiorum: Contra-Reforma ilustrada"
Prof. Dr. Vamireh Chacon (UNB)
"A projeção do aristotelismo português no Brasil"
Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

"O empirismo mitigado como via de superação do aristotelismo"

Antonio Paim (IBF)
12:00 Intervalo
14:30 Segunda Sessão
"João de Santo Tomás: relendo Aristóteles na segunda escolástica peninsular"
Profa. Paula Oliveira e Silva (Univ. de Lisboa)

26/08/99 (quinta-feira)
9:00 Primeira Sessão
"Sto. Tomás de Aquino, comentador de Aristóteles"
Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (UNICAMP)
"A leitura de Aristóteles pelos medievais"
Prof. Dr. Luis Alberto De Boni (PUCRS)
"Heidegger e Aristóteles"
Prof. Dr. Benedito Nunes (UFPA)

27/08/99 (sexta-feira)
10:00 Sessão Solene: Homenagem a Miguel Reale


À obra filosófica do pensador brasileiro
Aos 50 anos do Instituto Brasileiro de Filosofia-IBF
Aos 48 anos da Revista Brasileira de Filosofia

"A filosofia do direito de Miguel Reale"
Prof. Dr. Ubiratan Borges de Macedo (UGF)
"Miguel Reale na história da filosofia brasileira"
Antonio Paim (IBF)
"Minha trajetória filosófica"
Prof. Dr. Miguel Reale (USP)

Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB
Largo de São Francisco de Paula, 01 - Sala 325 C
20051-070 Rio de Janeiro-RJ
Telefone: (021) 2221-0034 - Ramal: 325
Fax: (021) 2221-1470


A projeção do aristotelismo português no Brasil

Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

Notas ao fim do texto

Partimos do fato de que o ensino de filosofia no Brasil tem a sua origem no aristotelismo conimbricense transmitido oficialmente ao longo de dois séculos (1572-1772) sob a Ratio studiorum, código de ensino promulgado pela Companhia de Jesus em 1599. Parece-nos essencial ressaltar a origem do aristotelismo em que se baseia o ensino filosófico brasileiro durante esses dois séculos porque, grosso modo, a simples leitura das Regras do Professor de Filosofia, na Ratio studiorum, não nos permite senão a idéia genérica de uma “filosofia escolástica”. Basicamente, as Regras impunham o seguinte:


“Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé [...] Sem muito critério, não leia nem cite na aula os intérpretes de Aristóteles infensos ao Cristianismo [...] De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito, seguindo-o de boa vontade [...] dele divergindo com pesar e reverência, quando não for plausível a sua opinião”.
[1]

Somente no § 1 da regra 09 se faz referência explícita a autores cujas obras nos ajudam a situar o aristotelismo da Ratio na península ibérica, numa época de transição entre a filosofia escolástica e a filosofia moderna:

“No primeiro ano explique a Lógica [...] menos ditando do que explicando os pontos mais necessários por Toledo [Francisco de Toledo, 1532-1596] ou Fonseca [Pedro da Fonseca, 1528-1599]”.
[2]

A verdade é que uma vez situada no tempo e no espaço a origem filosófica da formação cultural brasileira, talvez daí mesmo, da atitude exemplar desses autores que marcaram o rigor e o desassombro do aristotelismo conimbricense, resulte um caminho próprio em direção à filosofia medieval, e daí à origem grega da filosofia; ou mesmo um caminho próprio em direção à filosofia moderna, e daí ao presente e ao futuro da filosofia.

O que ainda se verifica atualmente na historiografia filosófica brasileira é um preconceito historicista contra a herança filosófica portuguesa. Tal preconceito vem da época das reformas pombalinas da instrução pública, cuja condenação do aristotelismo está associada à necessidade de modernização. O Brasil oitocentista, principalmente após a emancipação política, passou a girar em torno à idéia de modernização, entendida não só como ruptura com a educação portuguesa, mas, acima de tudo, como princípio de superação do estado natural em que se encontrava enquanto filho dessa mesma educação. Domingos José Gonçalves de Magalhães, reformador da literatura brasileira, foi o primeiro a enunciar este princípio de emancipação da cultura brasileira:


“Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação [...] Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontramos, que cuidar-se-ia que entre o passado século e o nosso tempo ao menos um século mediara. Devido é isto a causas que ninguém hoje ignora. Com a expiração do domínio português, desenvolveram-se as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa”.
[3]

E talvez tenha sido a idéia de cultura como antítese da natureza, em Tobias Barreto, que mais contribuiu para excluir do âmbito da pesquisa a herança filosófica portuguesa. Dizia Tobias:

“O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica – esse estado se designa pelo nome geral de natureza [...] a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos. Quando isto porém acontece, quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior, muda-se o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza. É assim que se costuma falar de riquezas naturais, e de produtos naturais, significando alguma coisa de anterior e independente do trabalho humano. Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço - todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom”.
[4]

Somente a partir da década de 50 deste século, com Miguel Reale, a filosofia brasileira deixou de girar em torno a questões suscitadas em outras culturas para retomar e aprofundar a questão proposta por Tobias Barreto (acerca da relação entre natureza e cultura) como projeto de pesquisa filosófica: o culturalismo, atualmente apresentado por um de seus pesquisadores mais importantes, Antônio Paim, como “escola” culturalista.[5] Neste sentido, nem a modernização filosófica da cultura brasileira desencadeada por Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito (para citar apenas os nomes mais representativos no século XIX), nem o culturalismo brasileiro como expressão filosófica contemporânea, podem ser julgados e avaliados corretamente sem levarmos em conta a questão acerca da superação do aristotelismo português no Brasil.

Deixando de lado os preconceitos daqueles que ainda excluem do conceito de filosofia brasileira a pesquisa sobre as fontes do ensino filosófico colonial, achamos por bem incorporar o estudo do aristotelismo português à linha de pesquisa Filosofia Brasileira como um de seus temas essenciais. Como se trata de uma compreensão filosófica do aristotelismo português no Brasil, limitar-nos-emos a uma visão temática das idéias que, segundo nos parece, já apontam, desde o século XVII, para a questão filosófica do problema da modernização cultural brasileira no século XIX (de Magalhães a Farias Brito, passando por Tobias Barreto), e ao mesmo tempo serve para introduzir a tese nuclear do culturalismo de Miguel Reale, a saber - a tese de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.
[6]

Essa temática corresponde à necessidade de superação do determinismo da natureza. Uma vez considerada no âmbito da projeção do aristotelismo português no Brasil, a questão acerca da necessidade de superação do determinismo da natureza levou-nos a considerar apenas um autor ao longo de todo o período colonial: o Pe. Antônio Vieira.

A presença de Antônio Vieira
Identificamos no Pe. Antônio Vieira, S. J. (1608-1697), a primeira expressão de um espírito universal inteiramente formado sob o aristotelismo português no Brasil. Não obstante as críticas de Luís Antônio Vernei ao seu estilo, acusando-o de seguir “a Metafísica das escolas”, comparando os seus sermões a “teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém”,
[7] o fato é que os inúmeros estudos, literários e filosóficos, estão aí para provar, três séculos depois de sua morte, a universalidade e a originalidade do seu pensamento.

Do ponto de vista da melhor tradição aristotélica portuguesa, há que considerar primeiramente a sua competência dialética. No Sermão da sexagésima, Vieira ensina a mesma técnica de discorrer que aprendera com seus mestres jesuítas na Bahia:


“Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto”.
[8]

O que são estes ensinamentos senão os mesmos que encontramos em Fonseca:

“Há três modos gerais de discorrer, os quais se dividem ainda, bastante pormenorizadamente, em muitos outros. São eles: a divisão, a definição e a argumentação”.[9]

Parece evidente também que a estrutura do sermão em Vieira, juntando o rigor demonstrativo da lógica aristotélica à arte da retórica latina, corresponde perfeitamente àquela passagem de Fonseca onde se adverte que, do mesmo modo que “se arguirão os matemáticos e os filósofos que tratarem de coisas matemáticas e filosóficas ao modo da oratória”, “será acusado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser tecer o seu discurso de razões matemáticas ou de pura filosofia”.[10] O que não parece evidente é se e em que medida é possível a tematização filosófica do seu pensamento quanto à necessidade de superação do determinismo da natureza, não só na projeção do aristotelismo português no Brasil, mas, sobretudo, na perspectiva da tese do culturalismo brasileiro de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.

Tendo em vista essa dupla significação do pensamento de Vieira - na projeção do aristotelismo português no Brasil e em face do contemporâneo culturalismo brasileiro -, consideramos apenas duas questões pertinentes à tematização em pauta (a necessidade de superação do determinismo da natureza), a saber: a questão da consciência de si, a partir do problema da conversão, e a questão da identidade ontológica, a partir do problema da injustiça social. Para a primeira questão, levamos em conta o Sermão da sexagésima, que representa, segundo o próprio Vieira na edição princeps dos sermões, uma teorização sobre a oratória sacra; para a segunda questão, concentramo-nos basicamente no Sermão de Santo Antônio (Lisboa, 1642).
A questão da consciência de si a partir do problema da conversãoA questão da consciência de si como condição de o homem libertar-se do determinismo da natureza, transformando-se em princípio de conhecimento e de ação, pode ser levantada na filosofia brasileira a partir do problema da conversão em Vieira. “Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?”, proclamava Vieira no Sermão da sexagésima:

“Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz [...] Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”.


Ora, se “o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”, tudo indica que a conversão, no sentido dessa “visão interior” de si mesmo como criatura de Deus implica a consciência de si como uma inteligência. Para essa consciência concorreria a ação doutrinária e educativa do pregador. Mas a ação doutrinária e educativa para esse fim não se justificaria sem uma compreensão clara da necessidade do intelecto como “luz interior”. Essa compreensão, no âmbito do aristotelismo português, a encontramos em Pedro da Fonseca, que, depois de explicar a concepção do objeto de conhecimento na base da distinção aristotélica entre o intelecto agente e o intelecto possível ou paciente, assim se exprime:


"Efetivamente, o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles".
[11]

Tal explicação está de acordo com São Tomás de Aquino, pois, segundo este:
“nada passa da potência para o ato senão por um ser em ato; assim, o sentido torna-se atual pelo sensível atual. Logo, é necessário admitir-se uma virtude, no intelecto, que atualize os inteligíveis, abstraindo as espécies das condições materiais. E essa é a necessidade de se admitir um intelecto agente”.[12]

Além disso, acrescenta São Tomás, já agora apoiado em Averróis, que “a luz é necessária para a visão [...] para que torne lúcido o meio em ato” (grifos nossos).
[13] Assim, uma vez justificada a conversão pela necessidade da “luz interior” inerente ao intelecto agente, resta saber: Como e em que medida pode faltar aos olhos humanos a “visão interior” de si mesmo, uma vez que, segundo Vieira, o concurso da “luz interior” por parte de Deus não falta nem pode faltar?

A resposta a essa pergunta envolve a idéia de participação da luz divina pela criatura racional. Nesse sentido, diz São Tomás que “é necessário admitir-se, além da alma intelectiva humana, um intelecto superior, do qual a alma obtém a virtude de inteligir”, do que se segue que “a alma humana torna-se intelectiva por participação da virtude intelectual”,
[14] para finalmente concluir afirmando que “é necessário um intelecto mais alto que ajude a alma a inteligir”.[15] Desse modo, só poderia faltar a “visão interior” de si mesmo por causa do fracasso da ação doutrinária e educativa em elevar o intelecto à luminosidade da luz do Criador, sob a qual o homem torna-se capaz de ver a si mesma na estranha ambiguidade de objeto e sujeito de conhecimento.

Desse ponto de vista, da necessidade de ver-se a si sob a luminosidade da luz divina e criadora, o problema da conversão em Vieira corresponde ao problema histórico, que enfrenta o pregador, de elevar a consciência empírica ao nível de universalidade da mensagem cristã, mas sem reduzir a interpretação do texto religioso a uma concepção racionalista da linguagem. Nesse sentido, a ação doutrinária e educativa do pregador também não se justificaria sem uma teoria acerca do uso das palavras.


“Antigamente convertia-se o Mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras [...] Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?”.
[16]

Evidentemente, Vieira não concebe a palavra apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. Para ele, assim como para toda a filosofia cristã, desde Sto. Agostinho, o falar revela o “homem interior” no sentido de que ele usa de um sistema de sinais para significar a própria vontade.[17] Por isso Vieira interpela os pregadores sobre o nível de universalidade em que se deve usar das palavras na pregação: se devemos (i) “trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos”, ou (ii) se “não havemos de querer o que elas dizem”. Na primeira hipótese, acusa ele, “muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam”;[18] na segunda hipótese (para alcançarmos o nível de universalidade da palavra divina), pergunta se é “esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja”, se é “esse o sentido da mesma gramática das palavras”.[19]

Deste modo, o sermão não realiza coisa alguma, isto é, não converte a ninguém se antes o pregador não se revela a si mesmo mediante o que ele quer dizer. Porque na verdade as palavras, na medida em que significam por convenção, a priori já “querem” dizer. Por isso não se reveste de autoridade o pregador (ou o mestre) que apenas sabe o que as palavras no texto significam ou querem dizer, sendo necessário também querer o que elas dizem: o sermão, enquanto instrumento da conversão, se subordina à intencionalidade do ato de fala na medida em que o ato de fala realiza aquilo mesmo que significa.


Esta compreensão é evidente, por exemplo, em Pedro da Fonseca, quando ele ensina que:

“na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas condições: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para se saber o que se diz; esta, para se querer o que se diz”.[20]

“Significar nada mais é que representar algo a uma potência cognoscente [...] Por isso, quando se diz que aquele que fala ou escreve significa a sua sentença, ou vontade, isto não se deve entender senão no mesmo sentido em que se diz que aquele que põe fogo à lenha ele mesmo queima a lenha”.[21]

Assim sendo, como e em que medida se realiza pela palavra a conversão, se o ato de fala pressupõe um sistema de princípios e regras de significação?
Em Vieira, a conversão se realiza na participação dos princípios e regras que definem a língua portuguesa, tendo em vista o fim que ele se propõe. Porque o fim, enquanto querido, como que move o indivíduo a agir em conformidade à razão, aprendendo e conhecendo, subordinando-se a princípios, regras e leis. O sentido dessa virtude intelectual no contexto do aristotelismo português encontra-se, primeiramente, em São Tomás de Aquino, onde ele se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[22] Sua origem, naturalmente, encontra-se em Aristóteles, quando define o bem como um fim desejável apoiado na “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.[23] Mas Aristóteles distingue a virtude, ou excelência, da simples função, quando a esta se acrescenta, como um excesso, o querer aquilo que se sabe fazer.[24]

Tal excesso se observa em Vieira enquanto autor estético. E ao que parece, muito contribui para isso a dialética como se concebe em Pedro da Fonseca “como arte que ensina todas as formas de discorrer, isto é, de revelar pela oração o desconhecido a partir do conhecido”.
[25] A autoridade religiosa de que se revestiu o Pe. Antônio Vieira permitiu-lhe usar de todos os recursos dialéticos para convencer e persuadir, razão pela qual o seu discurso tem um caráter literário e, por isso mesmo, um valor estético. Mesmo que um homem se recuse a seguir até onde Vieira se esforça por conduzi-lo, o sermão enquanto obra estética pode, por si só, realizar alguma coisa: obrigá-lo a tornar-se atento, obrigá-lo a pensar as palavras, obrigá-lo a julgar. Como autor estético, Vieira se propõe cativar os piores ouvintes, os de vontades endurecidas e os de entendimento agudo, que “vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galanterias, a avaliar pensamentos”.[26]

Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a idéia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Porque “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”, recomenda Vieira.
[27]

Nesta perspectiva de entendimento, a conversão à consciência de si como autor implica uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma experiência da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade.


Vieira critica aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a apartarem-se dos fatos e da experiência:

“São fingimentos, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédias, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes”.[28]

Mais uma vez, a fonte é Aristóteles, onde ele afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam”, e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro”.[29]

Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a linguagem, de modo que o uso da palavra em Vieira exprime uma unidade de pensamento e ação subjacente à sua personalidade múltipla de missionário, conselheiro real, diplomata e, principalmente, de escritor, havemos de considerar que a consciência empírica em Vieira implica a consciência de si como uma consciência originária e necessária da identidade de si mesmo que é, ao mesmo tempo, a consciência de uma unidade, igualmente necessária, do eu em sua existência histórica e em sua pluralidade de significações.

A questão da identidade ontológica
Na medida em que assume como ponto de partida dos seus estudos o problema ontológico de Tobias Barreto, acerca da diferença entre os objetos que constituem o mundo da natureza e os objetos que constituem o mundo da cultura ou dos valores, Miguel Reale introduz o assim chamado culturalismo como sendo, segundo suas próprias palavras, “talvez a única corrente filosófica brasileira constituída na imanência de nossas circunstâncias”.
[30]

Sem negar ao pensador sergipano a origem do culturalismo, em cuja trajetória Miguel Reale passou do universo kantiano de Tobias Barreto para Hegel e para Husserl, acreditamos que o problema assimilado por Miguel Reale tem raízes mais profundas na história da cultura de língua portuguesa, a saber: na tradição ético-política inerente ao pensamento de Antônio Vieira. Deduzida da idéia de valor em Tobias Barreto, que aparece sobretudo onde ele afirma que “a cultura é [...] a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom” (ver citação da nota 4), a tese nuclear do culturalismo, de que “o ser do homem é o seu dever-ser”, é apresentada por Miguel Reale da seguinte forma:


“As realizações da espécie humana [...] jamais se desvinculam de sua base ou raiz fundante, que é dada pelo homem mesmo, tomado [...] não em sua individualidade empírica circunscrita, mas como eu participante de outros eus, isto é, como pessoa, que é o indivíduo em sua dimensão intersubjetiva. Destarte, os eventos históricos [...] se contêm dentro do âmbito de legitimação ética que se projeta fundamentalmente do valor-fonte que é o valor da pessoa humana, por ser o homem o único ente que, de maneira originária, tanto é como deve ser: o valor da pessoa humana [...] representa, portanto, o pressuposto da conduta ética [..] A afirmação por mim tantas vezes feita de que o homem é enquanto deve ser, ou de que o ser do homem é o seu dever ser, não tem alcance puramente ôntico [...] porque implica uma tomada de posição radical de ordem deontológica [...] tanto vale dizer que o dever ser é o ser do homem (determinação ôntico-axiológica do homem) como dizer que o ser do homem deve ser respeitado e atualizado como tal (afirmação do homem no plano da ação) [...] Se digo que o homem é enquanto deve ser, nessa afirmação está implícita a identidade ontológica de todos os homens, coincidindo todos nós [...] naquela “condição transcendental ontológica e deontológica de sermos pessoas”, verdade da qual nos damos conta através da história, mas que é logicamente anterior a ela, como seu fundamento radical [...] É a razão pela qual pode-se concluir que a pessoa é o homem em sua concreta atualização [...] enquanto o eu toma consciência de si mesmo e dos outros, na sociedade do nós”.
[31]

Vemos aí a postulação clara de uma fundamentação da experiência (no sentido kantiano de que a experiência implica o princípio de relatividade e, em consequência, a relatividade dos valores) a partir de uma concepção ética do homem. Essencialmente, afirma-se, como um princípio, (i) a necessidade de transformação do homem natural em pessoa mediante a superação do ser pelo dever-ser; com base nesse princípio, recorre-se ao conceito de participação para explicar que (ii) o eu se transforma em pessoa na medida em que participa de outros eus; finalmente, recorre-se ao termo ‘ato’ (actus), em sua dupla acepção aristotélica[32] de ação (energeia) e de fim (teloV) para explicar que (iii) o dever-ser é o ser do homem atualizado no plano da ação.

É evidente a ligação dessas idéias com o pensamento de Tobias Barreto, quando este propõe uma “idéia geral do homem [como] um animal que prende-se, que doma-se a si mesmo”,
[33] argumentando que “o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade”,[34] com base no princípio, de inspiração kantiana,[35] de “serem as leis da liberdade as mesmas leis da natureza”.[36]

Entretanto, o sentido essencial do problema, isto é, a superação do modo natural do ser pelo dever-ser, é evidente em nossa cultura desde Antônio Vieira. No Sermão de Santo Antônio, realizado na festa que se fez ao Santo na Igreja das Chagas, aos 14 de setembro de 1642, tendo-se publicado as Côrtes para o dia seguinte, o Pe. Antônio Vieira, preocupado com o problema da injustiça social no reino português, argumenta da seguinte maneira:


“Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo [...] Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade [...] Boa doutrina estava esta, se não fora dificultosa, e, ao que parece, impraticável. Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados [clero, nobreza e povo] do reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão-de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? Já se sabe que há-de ser: Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: vós sois semelhantes ao sal; senão: vos estis. Vós sois sal. Não é necessária filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão-de transformar os homens, e que hão-de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação. Por isso tendo Cristo constituído aos Apóstolos ministros da Redenção, e conservadores do mundo, não os considera sal por semelhança, senão sal por realidade [...] porque o ofício há-de se transformar em natureza, a obrigação há-de se converter em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício; porque cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve”.

Segundo esta argumentação, há dois modos do ser: o ser “dado por natureza” e o dever-ser. O primeiro, é o modo do ser em que a existência das coisas, inclusive do próprio homem, não depende da inteligência nem da vontade humanas, senão da determinação absoluta de leis universais e eternas; o segundo, é o modo do ser cuja existência, a começar pelo próprio homem, depende da participação dessas mesmas leis, naquele mesmo sentido em que São Tomás de Aquino se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[37]

Nesse sentido, se o homem há de transformar-se, se ele há de deixar de ser o que é por natureza, isto supõe a conversão, isto é, a “visão interior” de si mesmo obrigado à natureza. O sentido ontológico dessa transformação está em que a existência das coisas não é nunca requerida como necessária pelo próprio dado, sendo assim sempre contingente; somente a conversão, através da participação intelectual das leis universais que determinam a própria existência, poderia levar o homem a revestir de necessidade a própria existência.

Assim, há de libertar-se o homem do mecanismo da natureza pela consciência de si como aquele cujo ser é obrigado à natureza, não só pelo conhecimento das leis universais que determinam a própria existência, como também pelo modo necessário como realiza a própria vontade por imitação da natureza. Somente pela conversão o homem seria capaz não só de ver a si mesmo como criatura de Deus, obrigado a leis universais, mas, acima de tudo, seria capaz de reconhecer tal obrigação como essencial.
Quando Vieira diz “a obrigação há-de se converter em essência”, isto deve ser entendido no mesmo sentido em que se diz, nas ações humanas, “é necessário que assim seja, é necessário que assim se faça”; neste sentido, a obrigação (enquanto obrigação a regras e leis) é princípio de eficiência da ação pelo que ela tem de essencial e não de acidental.
Quando Vieira diz “o ofício há-de se transformar em natureza”, isto deve ser entendido no sentido de que o ofício (officium), como obrigação a regras e leis, como dever, converte-se em essência sem prejuízo da própria vontade. Tal exigência se cumpre na medida em que ao homem, enquanto criado à imagem e semelhança de Deus, não basta conhecer a mecânica das leis da natureza, mas também querer o que elas realizam. Primeiro o conhecimento, na medida em que é necessária uma ciência das coisas para se ir ao encontro da natureza e não contra a natureza; ao saber acrescenta-se o sentimento do dever, no sentido de que é necessário não apenas saber como se determina existência das coisas por leis universais, mas também querer as próprias coisas assim determinadas.

Desse modo, “devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem” no mesmo sentido em que Aristóteles, ao definir a vida como ato ou exercício, reconhece como própria e essencial uma “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.
[38]

Ao calar o nome da pessoa e dizer o nome do ofício (Ego sum vox), o ser do homem se revela como dever-ser, isto é, como pessoa, como sendo “o homem em sua concreta atualização”, para lembrar aqui as palavras de Miguel Reale.
[39] Em outras palavras, “o ofício há-de se transformar em natureza” na medida em que o homem supera o determinismo da natureza sem prejudicá-la, o que vai ao encontro do princípio de que nenhuma vontade é virtuosa senão quando se transforma em lei para si mesma.

Assim sendo, se em algum sentido os homens se igualam, isto só é possível em virtude do sentimento da obrigação, porque tal sentimento pressupõe o sentido da participação pela razão e pela vontade livre. As fontes deste entendimento, como já referimos, são Aristóteles e São Tomás de Aquino. Esta referência, entretanto, passa pelo aristotelismo medieval português. No Tratado da virtuosa benfeitoria, o Infante D. Pedro entende que “os sobdictos offereçem ledos e uoluntariosos seruiços aaquelles a que por natureza uiuem sogeytos, e som obrigados por o bem que rreçebem”,
[40] mas esclarece que essa sujeição não é virtuosa se não é desejada:

“Cousa he perteeçente de sabermos o que nos moue a fazer bem. E pera declaraçom daquesto, aprendamos que diz aristotilles no iij liuro da alma que a uoontade he mouedor per outrem mouido. E pera sse mostrar aquesta conclusom. Saybhamos que no ij liuro dos fisicos he scripto. Que a arte , aaquall pertençe a fim, moue per seu mandado as artes que trabalham em os meyos perque a fim há de seer gaançada [...] Semelhauelmente a uoontade sguardando o bem comuũ que he fim de todallas obras, moue as outras uirtudes e poderyos da alma, que teem cuydado de cada huũ bem particullar. E portanto he scripto no primeyro liuro da poliçia, que a uoontade moue per seu mandado os poderyos defenssor e deseiador. Os quaaes lhe obedeeçem, nom como seruos em costrangida sobieeçom, mas segundo homeẽs liures em obedeença deseiosa”.

Notas

[1] Cf. Leonel Franca, O método pedagógico dos jesuítas. O “Ratio Studiorum”. Rio de Janeiro, Agir, 1952, p. 159.
[2] Idem, p. 160.
[3] Cf. “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, in: Obras. Rio de Janeiro, Garnier, 1865.
[4] Cf. “Sobre uma nova intuição do direito”, Estudos de filosofia, in: Obras completas. Rio de Janeiro, Record/INL, 1990.
[5] Cf. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo, Convívio, 1987 (4ª ed.). Cf. também do mesmo autor A escola eclética. Universidade de Londrina, 1996.
[6] Ver Experiência e cultura. São Paulo, Grijalbo/EDUSP, 1977; ver também do mesmo autor Verdade e conjetura. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, especialmente “Ontologia da liberdade e do valor”.
[7] Cf. Verdadeiro método de estudar, ed. de A. Salgado Júnior. Lisboa, Sá da Costa, 1950, vol. II.
[8] Obras escolhidas. Lisboa, Sá da Costa, 1951.
[9] Cf. Instituições dialécticas, introd. e estabelecimento do texto latino, trad. e notas por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de coimbra, 1964, vol. I, p. 25.
[10] Idem, vol. II, p. 515.
[11] Cf. Isagoge filosófica. Introd., edição do texto latino e trad. por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de Coimbra, 1965, pp. 54s.
[12] :Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologica I, q. LXXIX, a. III, apoiado em Aristóteles, Metaph. III, IX.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 8.
[18] Sermão da Sexagésima.
[19] Ibidem.
[20] Cf. Instituições dialécticas, vol. II, p. 575.
[21] Idem, vol. I, p. 35.
[22] Summa theologiae, prima secundae, q. XCI, a. II.
[23] Ética a Nicômaco, I, 7.
[24] Ibidem.
[25] Instituições dialécticas, vol. I, 1.
[26] Sermão da sexagésima.
[27] Sermão de Santo Antônio (1642).
[28] Sermão da sexagésima.
[29] Ética a Nicômaco, I, 3.
[30] Cf. “Primórdios do culturalismo no Brasil”. In: Estudos de filosofia brasileira. Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, p. 113.
[31] Experiência e cultura, pp. 195s.
[32] Metaph. 8.
[33] Cf. “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações anti-sociológicas”. Idem, ibidem.
[34] Ibidem.
[35] Ver Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, Terceira Seção.
[36] “Glosas...”.
[37] Ver nota 22.
[38] Ética a Nicômaco, I, 7.
[39] Ver citação da nota 31.
[40] In: Obras dos Príncipes de Avis. Porto, Lello, 1981, p. 533.
[41] Ibidem, p. 567.

Miguel Reale na História da Filosofia Brasileira

Antonio Paim (IBF)

A Miguel Reale,
em presença do filósofo,
pela sua obra obra,
pelos 50 anos do Instituto Brasileiro de Filosofia-IBF,
e pelos 48 anos da Revista Brasileira de Filosofia.
IFCS/UFRJ, 27/08/1999

O posicionamento de Miguel Reale na Filosofia Brasileira pode ser considerado de vários ângulos. Antes de mais nada, com sua obra projetou-a nos círculos filosóficos internacionais. Pode-se dizer, sem exagero ou falso ufanismo, que no âmbito da Filosofia do Direito figura entre os grandes nomes desta segunda metade do século. A teoria tridimensional do direito, a que deu feição melhor acabada, é estudada nos principais centros universitários da América Latina. Na Europa, tem despertado grande interesse notadamente na Itália e na Espanha, mas igualmente na Alemanha. Seus principais livros dessa temática estão traduzidos ao espanhol e ao italiano.
Em matéria de filosofia geral, o desenvolvimento que deu ao neokantismo deve alcançar repercussão na Europa. Essa minha convicção decorre do fato de que, com o fim da guerra fria – que lamentavelmente refletiu-se em todos os campos da cultura inclusive na filosofia –, a tradição kantiana, que parecia ultrapassada na Alemanha, volta a aparecer com todo vigor. Fala-se ali hoje em neoneokantiano, o que tem repercutido tanto na Itália como nos Estados Unidos. Nesses dois países, a bibliografia recente dedicada ao fenômeno cresce sem cessar. Tendo acompanhado tais desdobramentos tenho verificado que muitos dos problemas com que estão se defrontando encontraram solução mais criativa na obra de Reale. Indico apenas um exemplo.
Na medida em que a obra de Herman Cohen (1842/1918) não dava conta da especificidade da ética, da história, etc., aparece a Escola de Baden, também chamada de culturalista devido à sua preferência pela problemática da cultura. No novo contexto emerge a figura meteórica mas extremamente fecunda de Emil Lask (1875/1915). Meteórica porque viveu apenas 40 anos. Ao chamar a atenção para os caminhos seguidos pela filosofia alemã, em fins da década de vinte, Gurvitch assim refere o fenômeno Lask: “Morreu na frente russa, uma das miseráveis vítimas da guerra, repousando sobre ele, segundo constatação unânime de seus necrologistas, o talento filosófico mais forte e original de sua geração”.
(1) Extremamente fecunda na medida em que deu encaminhamento à solução do dilema que dividia partidários de Cohen e culturalistas. Ocorreu a Lask que os problemas suscitados pela dedução transcendental das categorias, efetivada por Kant, decorriam da circunstância de que o grande mestre de Koenigsberg não se tenha dado conta de que precisaria do que chamou de metalógica, mais precisamente, de uma teoria geral dos objetos. E indicou ainda que, além de juízos naturais e ideais, seria necessário distinguir juízos referidos a valores.
Cohen morreu no fim da guerra. O país, além de derrotado, esteve ameaçado de sucumbir às insurreições bolchevistas. As décadas seguintes, como sabemos, foram extremamente tumultuadas, culminando com a ascensão do nazismo, a fuga em massa de professores e uma nova guerra. Tudo isto contribuiu para obscurecer o feito de Lask. Nicolai Hartmann (1882/1950) substituiu a Cohen em Marburgo e não obstante haja enriquecido vários aspectos do culturalismo, não tomou conhecimento da contribuição de Lask. Esta sobreviveu graças a Gustav Radbruch (1878/1949), que se valeu de um ensaio de Lask, de 1905, dedicado à Filosofia do Direito. As idéias de Radbruch, inclusive a nova teoria dos objetos, foram divulgadas entre nós por Cabral de Moncada (1888/1974).
(2) Tendo se iniciado no neokantismo pela Filosofia do Direito, Miguel Reale deu-se conta do significado da contribuição de Lask e a desenvolveu de modo muito coerente.
Sem embargo dos múltiplos aspectos dessa obra tão fecunda, ao apontar em Nicolai Hartmann a lacuna de não ter percebido a possibilidade ensejada pela compreensão dessa terceira esfera de objetos (referidos a valores), Experiência e cultura (1977) torna-se um dos textos capitais da filosofia contemporânea. Poderia referir outros exemplos de desenvolvimento criativo do neokantismo em mãos de Reale mas o que indiquei parece suficiente para justificar a minha crença de que o seu culturalismo deverá alcançar reconhecimento nos círculos filosóficos alemães. A tradução dessa obra para o francês certamente contribuirá neste sentido.
(3)
Além de haver projetado a Filosofia Brasileira nos mais importantes círculos filosóficos mundiais, Miguel Reale elaborou metodologia que vem permitindo não apenas reconstituir as suas principais trajetórias como equacionar de uma vez por todas a questão das filosofias nacionais.
Abordo sucintamente o segundo aspecto para em seguida indicar as principais tradições filosóficas estruturadas em nosso país, evidenciadas com a participação de Miguel Reale.
A propósito das filosofias nacionais, o pensador português José Marinho (1904/1975) fez uma observação muito curiosa. Disse ele que sendo a capacidade de voar a característica distintiva das aves, não devem ser criticadas pelo fato de que têm pernas. O mesmo se dá com a filosofia. Caracterizando-se pela universalidade, é sempre produto de um pensador situado num país e numa época.
Miguel Reale facultou-nos as indicações fundamentais para deslindar o intrincado problema. No livro O direito como experiência (1968) apontou pela primeira vez o que chamou de perspectivas filosóficas fundamentais, a transcendente, acreditando na possibilidade de termos acesso à realidade última, que estaria por traz daquilo que aparece, da transcendental, que pretende devamos ater-nos à experiência possível. Essa idéia brilhante permitiu compreender que não se confundem perspectivas e sistemas. Completando esse quadro, vinha insistindo em que os problemas filosóficos é que fazem a tessitura permanente desse tipo de saber, enquanto os sistemas apresentam-se como transitórios. Assim, a filosofia tem uma certa estrutura, na qual as perspectivas são inultrapassáveis. A elaboração da perspectiva transcendental completada por Kant não afastou do cenário a perspectiva transcendente, criação de Platão a que Aristóteles atribuiu imanência sem alterar-lhe basicamente o sentido. Essa contribuição de Miguel Reale corresponde a um passo importante para dar maior consistência ao estudo da história da filosofia, na trilha aberta por Hegel. Como nos ensinou Rodolfo Mondolfo (1877/1976):
“Como sistema é evidente que o pensamento filosófico, apesar de sua pretensão, sempre asseverada, de uma contemplação sub specie aeterni, não consegue na realidade afirmar-se senão sub specie temporis, isto é, vinculado necessariamente com a fase de desenvolvimento espiritual próprio de sua época e de seu autor, destinado a ser superado por outras épocas e outros autores sucessivos. Ao contrário, no aspecto dos problemas que coloca, ainda que subordinado sempre ao tempo de sua geração e desenvolvimento progressivo, o pensamento filosófico mostra-se não obstante como uma realização gradual de um processo eterno. Os sistemas, com efeito, passam e caem; mas sempre ficam os problemas colocados, conquistas imorredouras apesar da variedade das soluções que se intentam e das próprias formas em que são colocados, porque esta variação representa o aprofundamento progressivo da consciência filosófica”. (Problemas y métodos de investigación en la história de la filosofía – 1949).
Com a compreensão de que as perspectivas, a partir das quais se formularam os sistemas, também são permanentes, completa-se uma compreensão adequada da filosofia, única capaz de propiciar fundamentos sólidos à sua historiografia.
Na visão de Reale, as filosofias nacionais distinguem-se umas das outras pela preferência por determinados problemas.
Essas idéias ainda não fecundaram, com a amplitude que seria de desejar, nos cursos de filosofia de nossas Universidades, onde continua-se acreditando na possibilidade de reproduzir o clima cultural encontrado pelo docente nessa ou naquela instituição estrangeira em que adquiriu sua formação. Mas nem por isto a circunstância impediu que venham sendo inventariadas as nossas principais tradições filosóficas.
Com essa indicação passo ao que seria o terceiro elo de ligação entre Miguel Reale e a Filosofia Brasileira.
Num ensaio dos anos cinqüenta, intitulado “Momentos olvidados do pensamento brasileiro”, posteriormente incluído no livro Filosofia em São Paulo (1962), Miguel Reale traçou o programa que iria alterar completamente o quadro dos estudos dedicados à filosofia brasileira, realizados por ele mesmo, diretamente, em grande medida, e pelos diversos discípulos que soube formar e estimular.
Transcrevemos aqui os principais de tais enunciados:

1º) “Se não há laços lógicos ou genéticos entre as diversas doutrinas que ocuparam por mais largo decurso de tempo o cenário espiritual do País, e se não queremos nos contentar com a sucessão extrínseca das teorias, analisando-as em seus puros valores abstratos e formais, é mister correlacioná-las com as circunstâncias histórico-culturais que condicionaram, pelo menos em parte, a sua recepção. [...] O perigo em estudos dessa natureza, reconheço-o desde logo, consiste em perder-se o plano da pesquisa filosófica, ou mesmo da “sociologia do conhecimento”, para se contentar o estudioso com uma coleção de anedotas ou fatos banais...”

2º) “A segunda conclusão a que me leva o raciocínio expendido, é a de que há certos momentos ainda obscuros ou pouco elucidados na história do pensamento nacional, cujo conhecimento melhor talvez possa vir a preencher certas lacunas, deitando luz sobre múltiplas atitudes de alguns dos nossos pensadores mais representativos: há, em suma, momentos olvidados, mas nem por isto menos decisivos, correspondentes a “elos”, a “derivações” ou a “constantes” na história de nossas idéias”.

3º) “Finalmente, cabe prevenir-nos contra certas atitudes ostensiva ou implicitamente polêmicas na análise de nossos filosóficos ou filosofantes, a fim de superarmos definitivamente a “Filosofia em mangas de camisa”. [...] É a razão pela qual seria de toda conveniência proceder-se a uma revisão na história da Filosofia no Brasil, não só pelas lacunas que adiante apontarei, como pela deformação que resulta da crítica formulada segundo as perspectivas nem sempre desapaixonadas desta ou daquela escola. [...] Não ignoro que é impossível uma história da Filosofia sem certa perspectiva (não fosse a Filosofia sempre uma tomada necessária de posição axiológica perante a realidade das coisas e dos homens) mas o que deve ser evitado é a crítica externa das obras. Só a crítica interna, que nos torna partícipes do ângulo ou da “circunstância” do pensador criticado, é que pode-se considerar autêntica, mesmo quando chegue a conclusões negativas quanto ao mérito dos trabalhos”.

Através de um conjunto de estudos, Miguel Reale demonstrou cabalmente a existência de uma tradição kantiana, que começa antes mesmo da Independência com Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1775/1844), irmão de José Bonifácio, e com a grande figura de nossa história política Diogo Antonio Feijó (1784/1843). Com vistas a permitir avaliação direta da densidade filosófica dessa primeira manifestação, reeditou Cadernos de Filosofia (1967) deste último, manuscrito das aulas que o autor ministrou sobre a filosofia de Kant. Martim Francisco também deixou alguns cadernos dedicados ao mesmo tema, que, infelizmente, não se preservaram. “O kantismo do padre Diogo Antonio Feijó” é longamente estudado no mencionado Filosofia em São Paulo. Essa primeira manifestação tem prosseguimento nos pensadores krausistas da Faculdade de Direito de São Paulo. Reale teria oportunidade de analisá-los no livro mencionado (“O socialismo filantrópico de João Teodoro e as lições de Galvão Bueno”).
A repercussão no Brasil do movimento de “volta a Kant”, iniciado na Alemanha a partir dos anos sessenta do século passado, foi também por ele estabelecida nos ensaios que dedicaria à Escola do Recife. Graças a isto, a obra de Tobias Barreto (1839/1889) aparece numa visão inteiramente renovada.
No estudo publicado na Revista Brasileira de Filosofia (nº 93, 1974), intitulado “Filosofia alemã no Brasil”, retomando abordagem realizada ainda em 1949 (A doutrina de Kant no Brasil), propiciou diversas indicações sobre o kantismo na última década do século passado e nas primeiras do presente, indicações que foram pesquisadas e aprofundadas por Rosa Mendonça de Brito em tese de doutorado (A filosofia de Kant no Brasil – ciclo do neokantismo, 1984), onde estuda a obra dos cultores da filosofia das ciências de inspiração kantiana, movimento que ensejaria expressivas comemorações do bicentenário do filósofo, em 1924. Como o demonstra Rosa Mendonça de Brito, os vínculos com a meditação de Kant são retomados nas teses de Djacir Meneses (Kant e a idéia do direito, 1932) e Miguel Reale (Fundamentos do direito, 1940).
Antes de Reale, essa longa tradição kantiana sequer era suspeitada. Hoje pode-se desconhecê-la, como fazem muitos dos nossos professores de filosofia que se envergonham da condição de brasileiros e desejariam de fato inserir-se em tradições alienígenas. Mas negar a sua existência tornou-se rigorosamente impossível.
Os discípulos do prof. Reale pesquisaram o positivismo brasileiro, demonstrando como entronca a tradição cientificista iniciada pelo marquês de Pombal. Mas nessa investigação não ficou evidenciada a “consciência crítica” que a filosofia positiva desencadeou, ao ultrapassar os marcos fixados por Comte, desempenhando papel altamente positivo na evolução posterior da meditação brasileira. A esse propósito escreve Miguel Reale: “Como é sabido – referindo-se a Comte –, o fundador da Sociologia (e, penso eu, seria difícil contestar-lhe esse mérito) deu lugar a duas correntes de pensamento: uma ortodoxa ou integral, abrangendo tanto a filosofia científica como a religião da humanidade; uma outra heterodoxa, na linha de Littré, a qual foi progressivamente se transformando numa ampla e aberta Filosofia Positiva, ou científica, na qual se conciliavam, tal como se deu mesmo em alguns países da Europa, as idéias de A. Comte, Haeckel, Stuart Mill, H. Spencer e Ardigó. Note-se que, não obstante a repercussão da ortodoxia comteana no seio das forças armadas, sob a influência da religião da humanidade, cultivada por Teixeira Mendes e seus adeptos – até o ponto do lema “ordem e progresso”, de Comte, figurar até hoje na bandeira republicana – os nossos pensadores e jusfilósofos mais representativos, como Tobias Barreto, Silvio Romero, Pedro Lessa, Clóvis Beviláqua (autor do Projeto que se converteu no Código Civil de 1916) ou Rui Barbosa, situam-se antes num amplo quadro da Filosofia Positiva”.
(4) Figura impar desse conjunto seria Euclides da Cunha (1866/1909), de quem Miguel Reale vem de proporcionar-nos compreensão inteiramente nova.(5)
Ao invés do positivista moldado pelas idéias de Comte, interpretação mais ou menos difundida entre nós, Miguel Reale mostra-nos um homem capaz de aprender com as limitações do saber positivo, que vieram a ser-lhe evidenciadas. Além disto, aparece plenamente o conflito entre a realidade do homem sertanejo e a doutrina, com a qual comungava, geralmente aceita na época, da inferioridade dos povos mestiços. Numa nota à reedição de Os sertões, para a qual Miguel Reale chama a atenção, Euclides esclarece que enxergava “no tipo sertanejo uma categoria étnica formada, liberta pelas condições históricas”. Ao que acrescenta: “Era natural que, admitida a arrojada e animadora conjetura de que estamos destinados à integridade nacional eu visse naqueles rijos caboclos o núcleo de força da nossa constituição futura, a rocha viva de nossa raça”. Donde se conclui, acrescenta Reale, “que, na visão de Euclides, a unidade étnica da gente brasileira, não obstante a multiplicidade dos caldeamentos, poderá e deverá ser o resultado da civilização comum, da vivência histórica da nacionalidade autônoma, o que, penso eu, os fatos vêm confirmando”. O livro insere alguns textos de Euclides da Cunha, notadamente os últimos, onde se comprova a sua evolução filosófica no sentido do empiriocriticismo de Ernst Mach e do convencionalismo gnoseológico de Henri Poincaré.
Miguel Reale fixou ainda os principais balizamentos do pensamento jurídico brasileiro, em estudos como Cem anos de ciência do direito no Brasil (1973); nos diversos textos dedicados a Rui Barbosa; nos estudos da obra de Pimenta Bueno, Teixeira de Freitas e Pontes de Miranda, incluídos no livro Figuras da inteligência brasileira (1984), tendo ainda traçado um interessante roteiro para o entendimento da evolução da sociologia brasileira, na revista Humanidades (1983, então editada pela Universidade de Brasília.
Traço notável da personalidade de Miguel Reale é a capacidade que tem revelado de aglutinar pesquisadores da Filosofia Brasileira e de estimulá-los na realização de seus trabalhos. Em que pese os seus múltiplos afazeres, sempre encontrou tempo para participar de defesas de tese e outros eventos relacionados ao tema. De sorte que o sucesso do trabalho realizado nessa esfera deve em grande medida ser-lhe creditado.
O programa traçado por Miguel Reale e que vem sendo realizado ininterruptamente nos últimos cinqüenta anos deve desembocar na atitude assim descrita por ele mesmo:

“Quando pesar no espírito de nossos pensadores toda a força do presente, não como instante imediato e fugaz, mas como a concreção de nosso passado e de nosso futuro; quando vivermos realmente inseridos na problemática de nossas circunstâncias, natural e espontaneamente, sem sentirmos mais a necessidade de proclamá-lo a todo instante, quando houver essa atitude nova, saberemos conversar sobre nós mesmos e entre nós mesmos, recebendo idéias estrangeiras como acolhemos uma visita que nos enriquece, mas não chega a privar-nos da intimidade de nosso lar”.

Notas

(1) Les tendences actuelles de la philosophie allemande (1930). Paris, Vrin, 1949, p. 154.
(2) Traduziu a Filosofia do direito de Radbruch em 1932.
(3) Expérience et culture. Fondement d’une théorie générale de l’expérience. Bordeaux, Editions Biere, 1990.
(4) Nova fase do direito moderno. São Paulo, Saraiva, 1990, p. 223.
(5) Face oculta de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro, Topbooks, 1993.

Filosofia, cultura e linguagem - a pertinência do ensino da Filosofia em língua portuguesa

Fernanda Henriques (Universidade de Évora)
À memória do Professor Manuel Antunes

“A recusa da palavra transcendente, a descoberta da relatividade da linguagem, marcam uma data capital na vida espiritual da humanidade. Babel recapitula a saída do paraíso terrestre […] A catástrofe de Babel abre à actividade humana a empresa da reflexão e a da liberdade.” Gusdorf
[1]

“Lutero fez falar a Bíblia, o Senhor fez falar Homero em Alemão - a maior dádiva que pode ser feita a um povo, pois um povo será bárbaro e não considerará as coisas excelentes que conhece como sua verdadeira propriedade enquanto não aprender a conhecê-las na sua língua […] Assim, gostaria de dizer acerca do meu empenhamento que quero tentar ensinar a Filosofia a falar Alemão. Uma vez chegados a esse ponto, torna-se infinitamente mais difícil dar à trivialidade a aparência de discursar profundo.” Hegel
[2]

Notas ao fim do texto

Preliminares: campos semântico e especulativo implicados no título
· Há uma legitimidade filosófica e uma necessidade cultural de que a prática filosófica se desenvolva no quadro das línguas maternas, afirmação que supõe que não há línguas privilegiadas para filosofar.
· Partindo de uma análise estritamente filosófica não se encontrará legitimidade para se defender a existência de Filosofias nacionais.
· A actividade filosófica, em todas as suas determinações - fazer, ensinar, traduzir Filosofia – pode ser um factor poderoso de enriquecimento cultural e linguístico.

Problemática - A prática filosófica e as línguas nacionais
Gostaria de desenvolver este primeiro ponto da minha reflexão sob a égide das epígrafes deste trabalho: a de Gusdorf e a de Hegel.
Na realidade, ambos os autores nos conduzem ao cerne do sentido que alimenta o conjunto das posições que subtendem a lógica e o conteúdo desta meditação em torno da pertinência do ensino da Filosofia em língua portuguesa.

Linguagem e cultura
O texto de Gusdorf lança-nos, de imediato, no plano da dimensão ontológica da linguagem, ao mesmo tempo que, através de uma interpretação nele implícita acerca do significado do pecado original, propõe uma leitura positiva do sentido das diferentes línguas, que liga à problemática da historicidade humana, co-originária, por sua vez, do exercício da liberdade e da reflexão.
Fazendo do mito de Babel uma recapitulação da expulsão do paraíso e assimilando aquele ao processo humano de expressão de si mesmo, Gusdorf saúda, na confusão das línguas que põe fim à unidade do falar divino, não a sua possível dimensão caótica originadora de desentendimento e separação, mas sim a potencial riqueza transportada pela diversidade dos falares humanos, prenhe de possibilidades sempre outras, e, de cujos cruzamentos e trocas se enriquecerá a humanidade no seu conjunto. O episódio da Torre de Babel aparece ligado com outro episódio bíblico que é a revelação de Pentecostes - o dom das línguas -, pelo que, através dessa relação, nos fica a possibilidade de interpretar este último como representando a aceitação e o sancionamento divinos da diversidade das línguas humanas. No caso vertente, importa-me reter que as diferentes línguas assumem, por esta via, uma legitimação e um sentido que fazem delas lugares de expressão e de reconhecimento de si dos diferentes grupos humanos no processo de se constituírem como povos e como culturas.
Esta citação-epígrafe pertence a uma obra que sempre revisito no percurso da minha investigação sobre a natureza e o estatuto da linguagem. Na realidade, tendo quase meio século, La parole é, a meu ver, ainda hoje um texto incontornável para uma compreensão do papel da linguagem na vida e produções humanas, e, na minha perspectiva, a obra alimenta-se de uma tese fundamental , a saber - a linguagem deve ser interpretada como uma ruptura na continuidade cósmica, sendo ela própria um salto qualitativo em relação ao conjunto das determinações orgânicas, fisiológicas e culturais que a explicam e condicionam. Desta maneira, a linguagem é o paradigma por antonomásia de que o todo é diferente e mesmo, mais, do que a soma das suas partes constituintes.
A exploração e o comentário deste princípio de leitura permitem organizar, por um lado, as categorias básicas da linguagem enquanto interface humano e, por outro, caracterizá-la, do ponto de vista epistemológico, como uma hermenêutica. Deste modo, proponho duas categorias básicas para descrever a linguagem humana - emergência e poder.
Emergência, na medida em que ela é expressão de um modo de explorar e organizar a realidade; poder, porque é também ela que possibilita a sua manipulação.
A primeira categoria enunciada, a emergência, vai permitir encontrar duas novas determinações: o acesso à reflexividade, - isto é, o reconhecimento da diferenciação do sujeito falante em relação à coisa falada e, portanto, a tomada de consciência de si como poder designativo e força mediadora - e também o acesso à significação, - ou seja, a transformação do real em mundo, em um conjunto discriminado de referências.
Por sua vez, a categoria poder transporta consigo as determinações de valoração e tecnicidade como descritores possíveis da linguagem. Sobre isto, diz expressamente Gusdorf: “A linguagem apresenta-se como a mais originária de todas as técnicas. Ela constitui uma disciplina económica de manipulação das coisas e dos seres.”
[3]. Assim entendida, a linguagem tem a forma de uma utensilagem, cuja acção transformadora, molda, realmente, o mundo imprimindo-lhe a marca e o domínio humanos. O poder que a linguagem representa assume, desta maneira, a dupla dimensão de ascendência e instrumentalização; pela primeira, o ser humano dignifica-se e dignifica a realidade, introduzindo nela uma ordem que a transforma em mundo; pela segunda, apodera-se dela em termos de controle e exploração. A este propósito e dentro do mesmo espírito, poder-se-ão invocar outros exemplos da tradição judaico-cristã que explicitam, de forma clara, a consciência do poder ordenador, manipulador e criador da linguagem. Refiro Genesis 2, 19-21, em que a humanidade é convidada a dar nome às criaturas ou o início do Evangelho de S. João que dá à Palavra a co-originaridade de Deus criador.
É desta dupla dimensão da linguagem de ordenadora e manipuladora do real que surge a categoria de valoração, como um outro dos seus atributos mais específicos. Para Gusdorf: “A palavra deve a sua eficácia ao facto de não ser apenas uma notação objectiva, mas um índice de valor [...] Dito de outra maneira, cada palavra é a palavra da situação, a palavra que resume o estado do mundo em função da minha decisão.”
[4]. Do meu ponto de vista, a valoração recapitula e, diria mesmo, subsume todas as características da linguagem, dando-lhe uma equivocidade incontornável, um poder, a um tempo, criador e demoníaco, capaz de todas as mistificações. É por ela que o real se faz mundo, que os entes se tranformam em coisas e funções, a presença em duração e os factos em história; ou seja, é por ela que a cultura emerge porque se nomeia. Contudo, é, igualmente, por ela que a destruição e o caos podem ocorrer e que a ordem se pode fazer tirania, obscurantismo ou discriminação.
Esta equivocidade da linguagem, reverso da sua constitutiva polissemia, tem origem no seu carácter estruturalmente mediador - a linguagem é, efectivamente, o meio e o elemento de todas as relações que o ser humano estabelece ou melhor dizendo, da figura relacional que o ser humano é. Ora, enquanto tal, ela não só organiza como classifica, interpreta, selecciona, hierarquiza, numa palavra, valora. Se retomarmos a anterior citação de La parole, podemos mesmo adiantar que essa valoração é a resultante de determinações objectivas e subjectivas: a palavra, diz o texto, “resume o estado do mundo em função da minha decisão”; poderemos, então, dizer que a palavra humana está marcada de uma radical historicidade e arrasta consigo uma marca ética de liberdade. Em cada momento as pessoas falantes de uma cultura podem tomar a palavra e resumirem o estado do mundo em termos de abertura ou fechamento - para exaltar e reificar o passado, repetindo-o, ou para o desenvolver numa dinâmica de possibilidades futuras, procurando dizer palavras novas. Neste quadro, as línguas dos povos são, diríamos, sistemas valorativos que determinam modos de ver e de dizer. Por isso, a linguagem, como interface humano, tendo com a cultura uma génese recíproca, representa os óculos de que Kant falava, ou seja, o grande transcendental que permite, ao mesmo tempo que condiciona, a nossa instalação na realidade e a marca decisivamente com o traço da interpretação.
Assim sendo, a palavra, o discurso humano, tem um enorme poder na constituição do si mesmo, na sua estrutura identitária, bem como na configuração das visões do mundo, pelo que todas as transformações conceptuais e ideológicas, correspondem, igualmente, a momentos de modificações linguísticas.
[5] Portadoras de uma racionalidade, as línguas humanas determinam modos de viver e agir em comum que postulam quadros de decifração possibilitadores de entendimentos e convergências sociais. É neste espírito que cobra sentido, por exemplo, a imensa cruzada que os estudos sobre as mulheres têm desenvolvido para retirar à linguagem o carácter de universal neutro que algumas posições teóricas lhe querem atribuir, mostrando a importância que tem para o debate feminista a constituição de uma filosofia da linguagem que permita resumir o estado do mundo sobre o assunto em termos de acolhimento de novas formas de analisar e compreender a realidade.

Filosofia e linguagem - Filosofia da linguagem
O texto de Hegel permite-nos ligar mais de perto a questão da Filosofia e das línguas. A citação é retirada do projecto de uma carta a J. H. Voss que foi tradutor de Homero
[6] e, embora se inscreva na perspectiva específica de Hegel de germanização da Filosofia, pode-nos servir como modelo conceptual para pensar, a vários níveis, a problemática da articulação entre fazer e transmitir Filosofia e as línguas nacionais. Destacaria do texto três temas interligados, que se poderão enunciar da seguinte forma: Filosofia e linguagem natural, a prática filosófica e a língua materna e a temática da tradução dos textos filosóficos.
A questão da Filosofia e do filosofar arrasta consigo a da sua expressão, quer ao nível da forma linguística, quer ao nível dos géneros literários. Há uma “forma” própria para decantar o pensar filosófico ou, pelo contrário, o seu exercício tem a mesma latitude da linguagem natural? A genealogia do saber, a busca de fundamentação e a estrutura argumentativa determinam géneros literários específicos da Filosofia?
Esta e outras questões dividiram e dividem ainda hoje as Filosofias e quem delas se ocupa, tendo criado corpos doutrinários que querem instituir a sua legitimidade respectiva. Por seu lado, o telos filosófico, enquanto consciência de si da unidade que se procura, orienta as práticas filosóficas, mesmo subterraneamente, no sentido da figura unificada do todo, intentando para ela o modelo expressivo que corresponda a essa exigência de totalização. É nesta linha que interpreto todos os desejos de uma língua universal que ao longo da História da Filosofia se foram definindo. Todavia, é a mesma História da Filosofia que demonstra o fracasso de tal empreendimento e patenteia como a Filosofia é avessa a formas únicas e a modelos restritos. Diria que nos fica também aqui, como no caso da linguagem, a necessidade de resumir o estado do mundo em função de uma decisão pessoal. Assim o fez Hegel, considerando que qualquer linguagem técnica era redutora e que, posta e realizada em língua alemã, a Filosofia desmascararia todas as “trivialidades” com “a aparência de discursar profundo”.
Tomando como referência o modelo hermenêutico de Ricoeur, que se desenvolve a partir da relação dialógica da Filosofia com a não-Filosofia, esta meditação assenta no axioma de que mais do que poder servir-se da linguagem natural, a prática filosófica deve trabalhar essa linguagem elaborando uma Filosofia da sua natureza e alimentando-se das suas significações e expressões culturais. Esta posição decorre de um reconhecimento duplo: por um lado, que as linguagens artificiais, ao procurarem a univocidade do sentido, impedem que a racionalidade se manifeste nas suas múltiplas facetas e, porque não, contradições; por outro, que é a linguagem natural, como interface humano e cultural, que traz à expressão e ao sentido a experiência ontológica do ser humano, enquanto ser num mundo, situação que faz dela o reservatório logóico que pode alimentar a prática filosófica e constituir-se como seu núcleo temático decisivo.
Esta maneira de ver transporta como corolário uma outra - a de que não há nenhuma língua privilegiada para a Filosofia ou para o filosofar, perspectiva que corta a continuidade com a posição hegeliana
[7] para continuar a defender, com Hegel, que a Filosofia tem de ser falada na língua materna de um povo que “será bárbaro” se não “aprender a conhecer na sua língua” aquilo de que reconheceu a excelência e o sentido.
Diríamos, então, que o desenvolvimento espiritual de uma cultura se poderia medir pela sua capacidade de fazer falar a sua língua e de fazer falar na sua língua os artefactos intelectuais de maior grandeza e sentido. Neste contexto, fazer ou traduzir Filosofia torna-se um imperativo histórico para qualquer língua nacional, por serem actividades que determinam o alargamento e o aprofundamento do seu progresso cultural.
No seu escrito, Sobre a Diversidade da Estruturação das Línguas Humanas e sua Influência sobre o Desenvolvimento Espiritual do Género Humano,
[8] Humboldt articula alguns elementos que permitem a reiteração desta perspectiva. Relevaria desse texto três ideias básicas para o tema em questão:

· a língua é uma actividade e não um produto;
· a língua é um organismo intrinsecamente coerente, cujo desenvolvimento ocorre em função das suas próprias dinâmicas internas;
· a língua é a expressão identitária de um povo.

Distinguindo, em termos de natureza, linguagem e línguas, Humboldt traça um quadro que explicita a sua diferenciação. A linguagem tem um fundo misterioso e inexplicável na sua essência, que lhe confere uma autonomia tal que mais permite concebê-la como um dom do que como uma conquista. Pelo contrário, as línguas têm contornos determinados e dependem das condições específicas do desenvolvimento dos povos. Linguagem e línguas, contudo, manterão entre si ligações secretas, cujos termos talvez se tornem inteligíveis se tomarmos a linguagem, enquanto resposta às recônditas necessidades humanas, como um telos que orienta e impele o desenvolvimento das línguas que, assim concebidas, visariam um estádio que desse satisfação à ânsia humana de domínio da realidade. Diz, igualmente, Humboldt que mesmo nas línguas ditas mais primitivas se encontra um excesso lexical em relação aos instrumentos que seriam necessários para um comércio de mera sobrevivência com o real; esse mais, esse desnecessário para a sobrevivência, poderia advir do tal impulso da linguagem de dentro das suas determinações nas diferentes línguas naturais.
Por outro lado, Humboldt defende, também, que a língua de cada povo radica na sua força espiritual, sendo que ambas, língua e força espiritual, têm um desenvolvimento recíproco. O poder de uma língua está ligado à força criativa do pensamento do povo, e o seu aperfeiçoamento ocorre sempre que se processa um esforço no sentido da expressão de ideias novas e de maior penetração significativa. Contudo, uma vez que cada língua é um organismo, esse aperfeiçoamento decorre de uma dinâmica interior e não pode ser nunca uma mera aquisição ou importação extrínseca. Humboldt caracteriza esta situação dizendo que uma língua apenas pode ser despertada e não ensinada.
Esta posição teórica sublinha a importância de fazer e traduzir Filosofia nas línguas maternas, inscrevendo-se, aliás, na mesma linha reflexiva desenvolvida no primeiro momento deste texto, quando se evidenciou a necessidade de fazer acompanhar qualquer transformação cultural e social da respectiva modificação linguística, de tal modo que fosse instaurada uma nova plataforma de entendimento comunitário. Essa necessidade chamava já a atenção para o pulsar simultâneo do pensamento e da sua expressão, do desenvolvimento e criatividade intelectuais e da palavra que lhes dá figura.
A Filosofia Hermenêutica da linguagem proporciona também pistas reflexivas patenteadoras da legitimidade e da necessidade de fazer e traduzir Filosofia nas diferentes línguas.
Gadamer, na terceira parte do seu Verdade e Método
[9], mostra-o de modo relevante a propósito da temática da tradução, que lhe vai servir de mediação para ilustrar a forma como se realiza o entendimento entre falantes num processo de conversação. O que está em jogo quer na tradução quer na conversação é a coisa mesma que é falada, que é dita, num texto ou numa conversa. Não são as experiências pessoais, as vontades ou as intenções de quem se exprime que se jogam no processo comunicativo e sim aquilo que o discurso traz à linguagem humana e ao seu comércio. Nesta perspectiva, o processo de tradução tem a ver com o trazer à luz, com o iluminar de maneira total (Uberhellung) o sentido de um texto, de modo a poder transportá-lo para uma nova estrutura compreensiva que cada língua representa.[10] Assim sendo, a prática de tradução supõe dois movimentos:

· em primeiro lugar, um trabalho de interpretação - traduzir é, antes de tudo, formular uma interpretação sobre a coisa mesma de que um texto trata e configurar a sua significação, ou seja, concretizá-la numa totalidade compreensiva;
· em segundo lugar, traduzir exige uma tarefa dupla de transposição e integração. Dito de outra maneira: a pessoa que traduz tem de formular em novos termos a significação configurada segundo o quadro linguístico inerente à língua para a qual traduz, de maneira a assegurar a fidelidade ao sentido que emergiu pela interpretação.

Este processo dá origem a duas consequências e à desocultação de uma evidência: por um lado, obriga a língua que traduz a um esforço de diálogo e acolhimento de um outro sistema valorativo da realidade, ao mesmo tempo que pode trazer à luz sistemas compreensivos armazenados pela história da língua e, porventura, remetidos para o esquecimento, pelo não-uso. Em ambos os casos, originar-se-ão, necessariamente, novas organizações internas e novas figuras compreensivas; por outro, revela que a tradução de textos de Filosofia diz respeito a uma actividade eminentemente filosófica, cujo desenvolvimento promove a ampliação do alcance hermenêutico de qualquer língua, deixando nela sedimentações que, por sua vez, podem funcionar como impulsos para novas dinâmicas filosóficas.
Ao avaliar o papel da linguagem no sistema hegeliano, Carmo Ferreira diz o seguinte: “A paciência é a atitude fundamental do filosofar: a escuta tranquila do logos que nasce pro-vocado para essa mesma escuta. [...] A paciência da escuta garante a presença do diálogo”;
[11] aceitarmos as suas palavras, no quadro do que ficou dito, significa reconhecer o imperativo de fazer e traduzir Filosofia em língua materna, para que o diálogo que a escuta supõe se possa desenvolver no interior da língua e, nesse gesto, enriquecer, simultaneamente, a língua e o pensamento.

A questão das filosofias nacionais - prática filosófica adjectivada ou prática filosófica situada?
Como já foi enunciado na introdução, a posição que tem vindo a ser defendida não tem como corolário qualquer perspectiva de uma geo-filosofia
[12].
Obviamente que, configurando a constituição da Filosofia, como ficou referido atrás, a partir do diálogo com a não-filosofia, dando-se a este conceito toda a latitude possível, torna-se inevitável aceitar a existência de alguma ressonância em qualquer prática filosófica da tradição cultural em que se enraíza; mas, convém, também, não esquecer que é a própria tradição filosófica que faz corresponder o acto de filosofar à figura do exilado, do estrangeiro, ou mesmo, do idiota. Há, diríamos, inerente ao processo de filosofar uma certa desterritorialização
[13] que pode, talvez, ter a ver com a dimensão paradoxal da Filosofia que exibe, em simultâneo, a nostalgia de uma terra, de um solo ou lugar originário e o fracasso da sua determinação precisa.
A este respeito, assumirei totalmente a afirmação de Manuel Antunes
[14] quando refere, a propósito da discussão do problema das Filosofias nacionais, que a Filosofia se confronta com uma aporia constitutiva: ou é nacional e, então não é Filosofia, ou é Filosofia e, nesse caso, não pode ser nacional.
Creio, realmente, continuando a situar-me na linha de Manuel Antunes, que a circunstância nacional, que é, sobretudo, uma circunstancialidade cultural e linguística, pode dar ao filosofar “uma certa tonalidade concreta”
[15]; contudo, a análise estritamente filosófica desta questão - e não outro qualquer interesse de carácter estratégico – quer realize uma analítica do corpus teórico que a prática filosófica produziu, quer leve a efeito processos especulativos, terá de renunciar à possibilidade de poder adjectivar a Filosofia.
Por outro lado, penso que hoje, e sem querer apoiar-me na bengala da aldeia global, as Novas Tecnologias da Informação se constituem elas mesmas em força de proximidade cultural e até de universalização de padrões culturais, capazes de criar um espaço virtual de pertença totalmente desterritorializado, o que, certamente, não deixará de trazer novos dados para este debate.

O caso português
Nesta segunda e última parte do trabalho proponho-me, a partir de uma análise muito global do caso português, aplicar a filosofia desenvolvida na primeira parte, para defender, não apenas o interesse cultural e social de ensinar filosofia em língua portuguesa, mas, fundamentalmente, o imperativo histórico e filosófico de o fazer.
[16]

A situação recente do ensino da Filosofia em Portugal
Actualmente, o ensino da Filosofia em Portugal desenvolve-se no ensino secundário e no ensino superior.
Segundo os novos planos de estudos, decorrentes da Reforma Curricular, proveniente da aplicação da Lei nº 46/86 - Lei de Bases do Sistema Educativo -, no ensino secundário, a Filosofia é uma das disciplinas obrigatórias do curriculum dos 10º e 11º anos de escolaridade, onde figura com a designação de Introdução à Filosofia, fazendo parte de um bloco que podemos classificar de formação geral; no 12º ano a disciplina passa a facultativa e toma o nome de Filosofia. Os conteúdos programáticos são completamente distintos num e noutro caso. Enquanto Introdução à Filosofia, o Programa é de cariz temático, comportando seis rubricas que se articulam de modo a constituir um processo de iniciação à filosofia que se desdobra daquilo que pode ser designado como um plano meramente experiencial até a uma dimensão de cariz especulativo
No que concerne à Filosofia, no 12º ano, o Programa tem como centro a obra filosófica, sua análise e comentário, devendo ser trabalhadas, durante o ano lectivo, três obras de uma lista de 23, pertencentes a épocas históricas diferenciadas.
[17]
Desta maneira, todas as pessoas que concluem os estudos secundários em Portugal passaram por uma iniciação filosófica de dois ou três anos.
Quanto ao ensino superior, a licenciatura em Filosofia é ministrada em seis universidades públicas, em duas universidades católicas e em uma privada. Em cinco das universidades públicas e nas católicas, a licenciatura em Filosofia pode revestir a figura terminal de uma especialização em ensino. Esta situação faz com que o caso português do ensino da Filosofia se apresente com uma forte ligação do nível superior ao secundário, uma vez que é este que representa o mercado empregador daquele. Todavia, o facto de haver, em termos profissionais, uma tal dependência entre os dois níveis de ensino, essa ligação nem sempre é assumida, no plano institucional, com as dinâmicas bilaterais que seriam desejáveis.
Neste momento parece-me ser ainda de ressaltar a boa visibilidade nacional adquirida pela investigação filosófica em Portugal no quadro da criação dos Centros de Investigação, cujo financiamento tem proporcionado a possibilidade de desenvolver projectos de investigação em Filosofia, através de equipas, que agrupam docentes das diferentes universidades nacionais e, em alguns casos, também internacionais. É, igualmente, de registar o facto de, em alguns desses Centros, se praticar uma política de abertura no sentido de integrar nos respectivos projectos, docentes oriundos do ensino secundário, situação que, a meu ver, pode contribuir para gerar uma nova forma de os dois níveis de ensino se olharem, se conhecerem e se enriquecerem.
Dentro do mesmo espírito de visibilidade e, porque não, consciência de si, realizaram-se, em Fevereiro passado, as I Jornadas de Filosofia do Ensino Superior onde participaram docentes de todas as Universidades portuguesas com licenciaturas em Filosofia e que, do ponto de vista institucional, permitiram desenhar uma certa figura de Corpo.

O presente e a tradição - uma dinâmica de continuidade e ruptura
Quando em 1759 o Marquês de Pombal expulsou os Jesuitas de Portugal definiu, no plano das determinações legais uma nova situação para o ensino da Filosofia. Com o Alvará de 28/6/1759 cria os Estudos Menores, cujo curriculum comporta, a partir de 1772, a disciplina de Filosofia Racional, disciplina essa indispensável para a admissão no ensino superior. Na mesma altura é criada a Faculdade de Filosofia, em cujo 1º ano se estudaria a disciplina de Filosofia Racional e Moral. Em 1791, por uma carta régia, essa disciplina é eliminada desta Faculdade e transita para o Colégio das Artes. Desta maneira, a partir de 1791, a filosofia passa a ser leccionada, de modo sistemático, em Portugal, apenas ao nível do que pode­remos designar por ensino secundário, até 1859, ano que corresponde à criação do Curso Superior de Letras, em cujo curriculum figurava uma disciplina de Filosofia.
Esta situação, de que gostaria de relevar, antes de tudo, o aspecto positivo de representar que a tradição de ensinar Filosofia em Portugal no secundário é velha de mais de dois séculos, tem, certamente, também em si, uma das raízes responsáveis pelas características da produção filosófica entre nós e por uma dimensão de isolamento e secundaridade que, mais ou menos, acompanharam o ensino da Filosofia naquele nível de escolaridade.
[18]
A reforma pombalina legislou, igualmente, sobre o conteúdo que deveria ter o ensino filosófico, determinando, em 1773 a adopção do Livro de António Genovesi, compêndio que regeria o destino da aprendizagem da Filosofia em Portugal até aos finais do século XIX.
Do ponto de vista propriamente filosófico, o ensino da Filosofia esteve, até quase ao fim do século XIX, ligado ao eclectismo. Todavia, nem todas as investigações nesta área avaliam esse eclectismo do mesmo modo. Por exemplo, para M. M. Carrilho, há uma clara oposição entre a perspectiva ecléctica de setecentos e a de oitocentos, dado que a primeira se caracteriza pelo espírito de inovação e transformação e a segunda pelo envelhecimento e pela conservação.
[19]
Que a docência de Filosofia nos finais do século XIX não deveria satisfazer ninguém parece poder ser provado pela existência do relatório que em 1903 propõe a abolição do ensino de tal disciplina e pela decisão, em 1904, dos próprios docentes que se manifestou no mesmo sentido.
[20] A Filosofia foi contudo mantida, tendo em 1905 surgido um Programa de Ensino que consignava a perspectiva filosófica positivista, perspectiva essa que só viria a ser radicalmente alterada pelo Programa de 1919.
Ao longo de todo o século XX, os Programas de Filosofia sofreram variadíssimas alterações e adaptações, mantendo-se, todavia, a partir de 1931 até à reformulação dos cursos complementares em 1978, uma divisão clássica nesses Programas que consistia no facto de todo o 1º ano de estudo da Filosofia ser preenchido com temas da Psicologia. Uma outra linha de continuidade a assinalar nos Programas é a permanência e o peso que as rubricas ligadas à lógica sempre neles tiveram. De particular relevo me parece ser o registo de indicações pedagógicas e metodológicas contidas nos Programas que apontavam a necessidade e por vezes a obrigatoriedade de serem lidas obras filosóficas na aprendizagem da Filosofia.
[21] Creio que esta tradição que reputo, a todos os títulos, salutar, legitima o formato do actual Programa de 12º ano, composto, como já disse, pelo trabalho sobre obras filosóficas.

A importância cultural de ensinar Filosofia em português
Na primeira parte desta reflexão ficaram configuradas uma concepção de Linguagem e uma concepção de Filosofia convergindo no sentido de legitimar a importância de ensinar, fazer e traduzir Filosofia em qualquer língua materna. Operacionalizando essa posição teórica em função do caso português queria mostrar essa importância, em virtude de motivos culturais e filosóficos.
É axioma de partida desta ilustração a afirmação de que não se pode ensinar Filosofia sem fazer Filosofia e de que uma e outra actividade supõem, além de outras práticas, o trabalho de verter em língua materna os textos filosóficos originários de outras línguas.
Que especificidade pode ter o caso português?
No trabalho que Éduard Fey desenvolveu sobre o Ensino da Filosofia em Portugal surgem três notas que me parecem dignas de registo e reflexão; a primeira diz respeito a um texto de Adolfo Coelho em que este autor reconhece a falta de interesse que em Portugal se tinha pela Filosofia, dado não haver raizes tradicionais que alimentassem o seu desenvolvimento em virtude dos obstáculos que sufocavam “toda a tentativa de emancipação do pensamento”;
[22] a segunda nota que gostaria de salientar refere-se à conferência de Cabral de Moncada na universidade de Berlim em 1938,[23] quando expressa a sua convicção sobre o carácter ecléctico do espírito português a quem conviria sobretudo a “escola da filosofia intermédia”; a última referência corresponde a uma observação do próprio autor do estudo que diz o seguinte: “É característica do pensamento filosófico em Portugal a definição fluente dos conceitos [...] uma corrente de orientação ontológica que poderá, talvez, designar-se como “heracliteana””.[24] Para corroborar a sua asserção, Fey recorre a Antero de Quental e à sua obra Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, a que, afirma, falta o “esforço do conceito”.
Independentemente de se estar ou não de acordo com estas afirmações e mesmo com a sua pertinência, cabe, todavia, perguntar, o que é que cultural e historicamente as alimenta e que significação filosófica poderão ter. Creio que elas relevam de um olhar sobre a nossa situação cultural que estruturaria do seguinte modo:

· por um lado, a existência de um reduzido número de obras originais canonicamente consignadas como filosóficas, bem como a constatação de uma certa retórica de síntese ou de orientação pragmática de alguns textos filosóficos nacionais;
· por outro, o reconhecimento da grande densidade reflexiva transportada pela literatura portuguesa, que faz dela uma poderosa caixa de ressonância especulativa.

Que pensar?
Vamo-nos apoiar numa posição essencialista, sempre ligada ao peso do determinismo, seja qual for a figura que assuma, e considerar que há atavismos inerentes quer à língua quer ao espírito portugueses? Ou, pelo contrário, vamos olhar para a nossa tradição cultural e aceitar uma dinâ­mica histórica criadora de circunstâncias inibidoras do desenvolvimento de um determinado tipo de trabalho reflexivo e facilitadoras ou mesmo impulsionadoras de outros?
Seja qual for a resposta pela qual se optar, uma coisa me aparece como óbvia e imperiosa - a necessidade de fazer falar a Filosofia em língua portuguesa e de desenvolver uma prática filosófica territorialmente situada que subsuma conceptualmente o seu espólio cultural e traga ao plano especulativo o imenso reservatório constituído pelas suas metáforas literárias e poéticas.
Sendo que hoje na Europa a questão das identidades culturais assume uma relevância especial, torna-se premente que um país com uma tradição cultural como a portuguesa, se construa identitariamente também em termos filosóficos e, longe, muito longe, de qualquer pretensão nacionalista ou particularista, dê corpo às figuras universais do ser e do sentido, através de um diálogo prospectivo com a sua cultura que lhe permita dizer palavras próprias e “novas” que sejam, simultaneamente, universais e singulares.Diz P. Ricoeur num dos muitos textos em que se bate pela abertura temática da Filosofia, no quadro, contudo, da sua autonomia metodológica: “A filosofia não começa nada absolutamente: conduzida (portée) pela não-filosofia, ela vive da substância daquilo que já foi compreendido sem ser reflectido”.
[25] Assim sendo, importa ensinar-fazer-traduzir Filosofia em língua materna para que esses movimentos e essas acções representem outros tantos trabalhos de linguagem e sobre ela, de tal modo que fecundem uma real prática filosófica em expressão portuguesa.
Notas
[1] G. Gusdorf, La parole, Paris, PUF, 1990 ( 1ª edição, 1952), p 21.
[2] G.W.F. Hegel, Briefe von und an Hegel, Hamburg, Ed. Hoffmeister, v. I , pp 99-100, Trad. Francesa de Jean Carrère, Correspondance, Paris, Gallimard, 1962, p. 96. A tradução que aqui se apresenta é a de M. J. do Carmo Ferreira, Hegel em Jena. A razão da Liberdade ou a justificação da Filosofia, Lisboa, 1981, Dissertação de Doutoramento, pp. 534-535.
[3] G. Gusdorf, op. cit., p. 13.
[4] Ibidem, p. 12.
[5] Cf. Ibidem, especialmente, pp. 21-36.
[6] Cf. M. J. do Carmo Ferreira, op. cit., p. 534.
[7] Cf. Ibidem, pp. 537-538, onde o autor mostra que, para Hegel, havia uma relação privilegiada entre a língua alemã e o pensamento especulativo.
[8] Cf. J.M. Justo (org. e int.), Ergon ou Energueia, Filosofia da Linguagem na Alemanha, secs.XVIII e XIX, Lisboa, Materiais Críticos, 1986, pp. 107-135.
[9] H-G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tubingen, 1960, Trad. Francesa de Étienne Sacre com revisão de Paul Ricoeur, feita sobre o texto da 2ª edição, 1965, Vérité et Méthode, Les grandes lignes d’une herméneutique philosophique, Paris, Seuil, 1976. A referência de página dirá respeito a esta edição.
[10] Cf. Ibidem, p. 243.
[11] M. J. do Carmo Ferreira, op. cit., p. 579.
[12] A minha posição sobre esta questão ficou muito enriquecida pela hipótese que tive de acompanhar o Seminário Filosofia,Cultura, Ciência e Linguagem, orientado pelo Prof. Dr. J. Cerqueira Gonçalves, na Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 1996/97, em função da excelente qualidade de trabalho que se desenvolveu, quer a partir da orientação do Seminário, quer dos trabalhos apresentados pelo(a)s participantes.
[13] Ver sobre este tema a obra de G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991.
[14] M. Antunes, “Haverá filosofias nacionais?”, in Brotéria. Revista Contemporânea de cultura, Lisboa, 1957, vol. LXIV, nº 5, pp. 535-565. Pode ser interessante ler o comentário à posição de Manuel Antunes em: F. da Gama Caeiro, “A noção de Filosofia na obra de Manuel Antunes: Em torno ao problema das Filosofias Nacionais”, in Ao encontro da palavra. Homenagem a Manuel Antunes, Lisboa, Faculdade de Letras, 1985, pp. 9-42.
[15] M. Antunes, op. cit., p. 561.
[16] A análise que vou desenvolver tem como referência os seguintes documentos textuais: A M. M. Carrilho, Razão e transmissão da Filosofia, Lisboa, IN-CM, 1987; E. Fey, “Ensino da Filosofia em Portugal”, in Brotéria. Cultura e informação, Lisboa, 1978, vol. 107 (nº 1, pp. 19-36; nºs 2-3, pp. 191-208; nº4, pp. 278-295; nº 5, pp. 419-454); Fernanda Henriques e Manuela Bastos (org.), Os actuais programas de Filosofia do Secundário – Balanço e perspectivas, Lisboa, Centro de Fil. Da U.L. – Dep. Do Ens. Sec., 1998; José Trindade Santos, Da Filosofia no Liceu, Lisboa, Seara Nova, 1974; Idem, Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, 1995, nº 51, número especial dedicado ao Ensino da Filosofia; Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal, Lisboa, Gulbenkian, 1986.
[17] Época antiga: Da Natureza, de Parménides; Górgias, de Platão; Fédon, de Platão; Categorias, de Aristóteles. Época medieval: O Mestre, de S. Agostinho; Proslogion, de S. Anselmo; O Ser e a Essência, de S. Tomás; Redução da Ciência à Teologia, de S. Boaventura. Época moderna: Princípios da Filosofia, de Descartes; Carta sobre a Tolerância, de John Locke; Discurso de Metafísica, de Leibniz; Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Kant. Época contemporânea: Introdução à História da Filosofia, de Hegel; As tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, de Antero de Quental; Crise da Cultura Ocidental, de Husserl; A Origem da Tragédia, de Nietzsche; Da certeza, de L. Wittgenstein; Elogio da Filosofia, de Merleau Ponty; “Os problemas da Filosofia”, de B. Russell; “A problemática da Saudade”, de Joaquim Carvalho; Da Essência da Verdade, de Heidegger; Teoria da Interpretação, de Paul Ricoeur.
[18] E. Fey, op. cit., pp. 21-26.
[19] Sobre isto diz o referido autor na obra citada na nota 16: “Enquanto o eclectismo do sec. XVIII visava acolher e introduzir novidades e um espírito e procedimentos inovadores, criadores de novo, o do sec. XIX dirige-se precisamente no sentido oposto, procurando instituir uma filosofia condensada num certo número de verdades indubitáveis, indiscutíveis, socialmente úteis e escolarmente transmissíveis”. p. 242.
[20] Trata-se do relatório de Marnoco e Sousa. Cf. E. Fey, op. cit., pp. 289-290.
[21] É, por ex., o caso do programa de 1919.
[22] Op. cit., p. 23.
[23] Ibidem, p. 192.
[24] Ibidem, p. 19.
[25] P. Ricoeur, Finitude et culpabilité I L’homme faillible, Paris, Aubier-Montaigne, 1960, p. 24.