segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Apresentação

Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)

Nunca é demasiado lembrar que a formação da cultura brasileira durante o período colonial deu-se sob a vigência da Ratio Studiorum, método pedagógico criado pelos jesuítas e cuja edição definitiva é de 1599. Como se sabe, a missão educativa da Companhia de Jesus foi concebida no bojo da luta entre aristotélicos e antiaristotélicos que antecede, no século XVI, a irrupção da ciência e da filosofia modernas. Neste quadro de confronto ideológico em que a tradição filosófica do aristotelismo ocidental está em crise, a reforma da Universidade em Portugal, promovida pelo rei D. João III, reveste-se de uma significação especial para o estudo das fontes filosóficas da formação cultural brasileira. Fundado no ano de 1548 em Coimbra, para onde mais uma vez se trasladara a Universidade portuguesa desde 1537, o Colégio das Artes tornou-se, a partir de 1555, ano em que passou a ser administrado pelos jesuítas, um centro de aristotelismo – o aristotelismo português - que se tornou a base da educação brasileira. Desde então, até à expulsão dos jesuítas do ensino pelo Marquês de Pombal, dois séculos mais tarde, o aristotelismo português defendeu no Brasil uma posição semelhante àquela que ocupou no limiar da modernidade.
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Desde Andrônico de Rodes (séc. I a. C.), organizador do Corpus Aristotelicum, o pensamento de Aristóteles começou sua trajetória no Ocidente através dos comentários de Alexandre de Afrodísia (séc. II-III d. C.) às Obras de Aristóteles; passou através dos comentários de Porfírio (séc. III), que não só iniciou a tradição lógica com a sua Isagoge ou Introdução ao tratado aristotélico sobre as categorias, como tornou-se a fonte de uma deficiente interpretação da doutrina aristotélica dos predicáveis que gerou a célebre controvérsia medieval sobre a “questão dos universais”; passou através de Boécio (sécs. V-VI), cujos comentários e traduções latinas das Categorias e do De Interpretatione de Aristóteles, e da Isagoge de Porfírio, configuraram a chamada logica ou ars vetus; passou através das versões de traduções árabes e dos comentários de Avicena (sécs. X-XI) e de Averróis (séc. XII); passou através de Pedro Hispano (séc. XIII), cujo Tractatus (também conhecido como Summulae Logicales), o mais famoso manual de lógica nos século XIII - XVI, supõe a logica ou ars nova, que corresponde ao conhecimento completo do Organon; passou, como que oficialmente, através de São Tomás de Aquino (séc. XIII), quando Aristóteles tornou-se “o filósofo”.
Em verdade, foi com base no uso das doutrinas de Aristóteles, do seu aparato conceitual e do método que utilizou, que os estudos de ciência renasceram na Escolástica. A exemplo de Pierre Duhem e de A. C. Crombie, os historiadores da ciência reconheceram que o aristotelismo escolástico não era só teias de aranha, como pensava Francis Bacon, nem se limitava a uma ruminação interminável do que Aristóteles tinha escrito: era crítico, inovador, matemático e até experimental. Neste sentido, o valor do aristotelismo é eterno.
Mas a perspectiva de assimilação do uso teórico da razão às obras de Aristóteles fez com que o aristotelismo viesse a ser considerado historicamente tanto amigo quanto inimigo do progresso científico. O antiaristotelismo inerente à revolução científica do século XVII teve como princípio exatamente a necessidade de eliminar aquela camisa-de-força em que se tornara a filosofia aristotélica, usada no sistema de ensino como fonte de referência exclusiva para a explicação dos fenômenos naturais. Superado o dogmatismo de que se revestira a autoridade de Aristóteles, nem por isso o valor do Estagirita foi subestimado nas filosofias moderna e contemporânea. Pelo contrário, ainda se faz boa filosofia com base nas obras de Aristóteles.
Na ascensão do aristotelismo até à sua consagração na Universidade de Paris, em 1366, quando a Santa Sé impôs aos candidatos ao Licenciado de Artes a obrigação de ler aqueles mesmos escritos aristotélicos tão longamente interditados pela própria autoridade papal (o livro da Metafísica e aqueles de ciência da natureza), as etapas de transmissão, recepção e adaptação do Corpus Aristotelicum se deram por diferentes vias de pensamento - especialmente através das línguas grega, árabe e latina -, mas em circunstâncias parecidas de progresso cultural. Este fato é importante porque permite distinguir não só a condicionalidade histórica de todo o aristotelismo, como também a pluralidade de suas manifestações, mas sem prejuízo do seu valor universal.
O termo ‘aristotelismo’ exprime dois sentidos que não se confundem nem se excluem: um primeiro sentido universal, em função do qual a fidelidade a Aristóteles assume o caráter de causa exemplar da consciência de si na mesma medida em que um Platão, um Agostinho, um Descartes, um Kant, podem servir de modelo ou exemplo na formação do sujeito espiritual ou pensante, o que em geral se resume ao modo fiel e não servil de considerar o texto como ponto de partida da experiência filosófica; e um segundo sentido singular, em função do qual a fidelidade ao filósofo assume um caráter oficial subordinado à condicionalidade histórica do ensino de Filosofia.
O aristotelismo português envolve ambos os sentidos, pois não só filia-se claramente na linhagem do Aristoteles Latinus, promovido e difundido pelas traduções latinas usadas na Universidade de Paris, como também alinha-se na tradição da Contra-Reforma e do Concílio de Trento (1545-1553).
Entretanto, devo ressaltar a universalidade do aristotelismo português. A sua condicionalidade histórica não impediu a formação de um pensador português original, o jesuíta Pedro da Fonseca, cujas obras (Instituições dialéticas (1564), Isagoge filosófica (1591) e os Comentários à metafísica de Aristóteles (1577-1612)) tiveram grande êxito nos centros universitários europeus até meados do século XVII; nem impediu a realização dos famosos Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, também conhecidos como Curso Conimbricense, cujos comentários centrados nos textos originais de Aristóteles constituíram-se em lugar de passagem obrigatória durante a fase de transição da mentalidade escolástica para a mentalidade moderna.
Essa fama dos Conimbricenses estendeu-se, como se sabe, até à época de Descartes. Mas não me refiro apenas ao fato histórico de que Descartes estudou filosofia naquelas obras produzidas pelos jesuítas em Coimbra. Refiro-me a um certo respeito intelectual evidente em Descartes, que em carta ao Pe. Mersenne, de 30/09/1640, revela sua intenção de submeter previamente aos “conimbres” o texto de suas Meditações, de modo que assim ele ficaria em condições de embargar as “cavilações dos ignorantes que têm vontade de contradizer”.
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No plano ideológico, o século XVI foi registrado na História como um período de transição entre a escolástica e a modernidade, uma época de profundas dissensões, quer do ponto de vista religioso e moral, com a Reforma e a Contra-Reforma, quer do ponto de vista do saber, com o conflito entre aristotélicos e antiaristotélicos.
Um caso memorável no âmbito do ensino foi o confronto acadêmico entre o português Antônio de Gouveia e o francês Pierre de la Ramée (Petrus Ramus). Eram ambos professores de filosofia na Universidade de Paris e o confronto ocorreu a propósito do cerrado antiaristotelismo do francês desde a sua tese de mestrado Quaecumque ab Aristotele dicta essent, commentitia esse (Tudo o que Aristóteles disse é forjado), de 1536.
Na disputa entre os dois humanistas estavam em jogo diferentes conceitos do ensino de lógica. Para os “dialéticos”, entre eles Petrus Ramus (Dialecticae institutiones, de 1543), o estudo da argumentação destinava-se a resolver problemas práticos e questões controversas nos domínios político, jurídico, moral e pedagógico. Contrariamente, Antônio de Gouveia (De conclusionibus commentarius, de 1543), ao ocupar-se dos argumentos que produzem uma conclusão necessária, admitia, em nome da doutrina aristotélica da demonstração científica, que os problemas jurídicos são suscetíveis de soluções categóricas. Este apego injustificado a Aristóteles gerou uma crítica velada de Petrus Ramus ao colega português. Assim surgiu a famosa polêmica entre os dois autores, agudizada quando Antônio de Gouveia defendeu Aristóteles contra os ataques do humanista francês, expressos nas Dialecticae institutiones e nas Aristotelicae animadversiones (1543). Para o efeito, Gouveia publicou Pro Aristotele Responsio adversus Petri Rami calumnias, obra em que ele se propunha representar o protesto dos aristotélicos contra os antiaristotélicos.
Nesse contexto, a condicionalidade histórica do aristotelismo conimbricense foi a reforma da universidade promovida por D. João III, mediante a fundação do Colégio das Artes, no bojo de um movimento geral de restauração do aristotelismo de origem escolástica. Sobre a gênese desse aristotelismo conimbricense não há a menor dúvida: ele nasceu e cresceu dentro da Companhia de Jesus.
Se a sua participação na história da educação brasileira começou com grande destaque nesse mesmo século, através da criação do seu método pedagógico - a Ratio Studiorum -, a verdade é que essa participação ficou marcada pelo conservadorismo, a partir da segunda metade do século XVII, e pelo estigma da expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII.
A partir de seus antecedentes históricos, e uma vez considerado nesse contexto cultural, que espécie de interesse o estudo do aristotelismo poderia despertar em nós brasileiros, que somente após as reformas pombalinas começamos a entrar no compasso da cultura moderna? Como peça de museu? Pelo contrário, o aristotelismo para nós é uma via de acesso independente não só ao limiar da filosofia moderna, mas também à filosofia medieval e daí à filosofia antiga.
Além de nos legar um caminho originário da própria filosofia, o aristotelismo português nos deixou um exemplo de atitude filosófica: seus filósofos souberam adequar ao propósito de estrita fidelidade ao pensamento de Aristóteles a necessidade de rigor inerente ao trabalho filosófico. Por essa via, pode-se compreender, afinal, porque Pedro da Fonseca (1528-1599) não se limitou nem a esquemas escolásticos nem às interpretações oficiais do pensamento aristotélico.
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Eis, portanto, uma forma de justificar, em nome da filosofia brasileira, tanto um interesse mais amplo no aristotelismo e no antiaristotelismo subjacentes à promulgação da Ratio Studiorum, bem como um interesse mais específico, quer no aristotelismo português quer no ensino de filosofia.
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Os textos que compõem este volume foram apresentados no Iº Colóquio Luso-Brasileiro de Pesquisa Filosófica subordinado ao título “400 Anos da Ratio Studiorum - Aristotelismo, Antiaristotelismo e Ensino de Filosofia”, realizado na semana de 23 a 27 de agosto de 1999 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O título e a ordem de apresentação dos textos seguem o espírito do colóquio, fechando com o texto em homenagem a Miguel Reale. O que tem a ver Miguel Reale com o espírito do colóquio? O fato é que a ele deve-se o atual estágio em que se encontram os estudos de filosofia brasileira em sua relação com a filosofia portuguesa.
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O evento ocorreu por iniciativa do Centro de Filosofia Brasileira (CEFIB), por mim dirigido, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ, durante a minha gestão como Coordenador do PPGF, e contou com o apoio de CAPES, CNPq, FAPERJ e Fundação Brasil-Portugal. Contou ainda com o apoio da Reitoria da UFRJ através da Divisão Gráfica SR-4. Finalmente, devo registrar que esta edição foi financiada pela Fundação Universitária José Bonifácio - FUJB.
Agradecimentos pessoais a César de Araújo Fragale e a Julien Charles Bonnin, que estudam sob a minha orientação junto ao CEFIB. Por fim, cabe ainda um agradecimento especial às secretárias do PPGF - Dina e Sonia -, sem as quais eu não teria realizado o colóquio.
Leblon, junho de 2000.
L. A. Cerqueira
cerqueira@ifcs.ufrj.br

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