segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Raízes aristotélicas e tomistas do pensamento ético-político português: séculos XIV-XVI

Pedro Calafate (Universidade de Lisboa)

Procuramos elaborar um ensaio sobre as linhas da reflexão ético-política entre os séculos XIV a XVI em Portugal, pondo em evidência o quanto ela depende de Aristóteles e de S. Tomás de Aquino, pois os livros indubitavelmente mais citados pelos nossos pensadores “políticos” são a Política e a Ética a Nicómaco de Aristóteles, e o Regimento dos Príncipes, de S. Tomás e de Ptolomeu de Luca.
Por outro lado, é nossa intenção mostrar a contribuição decisiva dos pensadores jesuítas do século XVI, com relevo para Francisco Suárez e Luis de Molina, para um aprofundamento destes temas, traduzido numa mais vincada distinção entre as esferas natural e sobrenatural dos actos humanos.
Cumpre em primeiro lugar identificar o leque de questões essenciais a que de um modo ou outro todos os nossos filósofos pretenderem responder. Num cômputo global julgamos poder enunciá-las nos termos seguintes: qual a origem, natureza e finalidade do poder? Se todo o poder tem origem em Deus, como é ele transmitido aos homens? Sendo a virtude também o fim do poder régio espiritual do Papa, como se distinguem os dois poderes? Ou de outro modo: o que diferencia as esferas de acção do estado e da igreja, do império e do sacerdócio? Se têm finalidades específicas quais são elas.? Se não têm quem deverá submeter-se? Quais os princípios que devem regular o comportamento particular do soberano enquanto pessoa moral? Entre as várias formas de governo da sociedade, qual deve ser a preferida? Se o poder existe em função de Deus, como explicar o regime dos tiranos e qual o comportamento da comunidade perante a tirania? Se a manutenção da justiça e da paz é o fundamento do poder, em que circunstâncias a guerra poderá considerar-se justa, e qual a intervenção legítima dos clérigos nas contendas militares?
Não nos será possível enunciar as soluções apresentadas para cada uma destas questões. Em todo o caso poremos em relevo as que apelam de forma mais directa ao suporte aristotélico-tomista.

A origem do poder
A questão essencial a dirimir no que respeita à origem do poder é a de saber se o estado tem ou não fundamento no direito natural? Ou então, por outras palavras, se o poder é ou não constitutivo da natureza humana?
Para dilucidarmos o tema temos de distinguir a abordagem histórica da questão, circunscrita portanto ao plano dos factos, da abordagem lógica, que se orienta para o dos fundamentos.
Uma das linhas-de-força que a este respeito se equaciona é a da origem pecaminosa das primeiras manifestações históricas do poder, baseada na interpretação da algumas passagens bíblicas. Citaremos apenas dois exemplos paradigmáticos: Álvaro Pais (século XIV) e João de Barros (século XVI).
Para o primeiro, no Speculum Regum, no início dos tempos apenas os réprobos receberam o domínio, como manifestação da ambição e da cobiça, pelo que afirma sem pejo que “no princípio do mundo, olhando às pessoas que assumiram o domínio, este procedeu de corrupta intenção, a saber, da soberba e da tirania” (Speculum Regum, vol. I, p. 49).
Para o segundo, na enigmática Ropica Pnefma, o poder nasceu, historicamente falando, de um aproveitamento da simplicidade alheia, pelo que põe uma das personagens do seu diálogo a dizer que onde o direito de Justiniano proclama que “querendo assi o uso e as humanas necessidades, as gentes entre si constituiram lei”, se deveria ler, a bem da verdade histórica, que “querendo a poderosa força, as gentes obedeceram à sua lei” (Ropica Pnefma, vol. II., p. 75), gerando-se então toda uma série de “servidões, cativérios, tributos, e todalas outras cousas ao direito natural contrárias, multiplicando as leis com a posse” (Ibid.).
Assim sendo, esta tese sublinha que a origem do poder reside na cobiça imposta pela força e sustenta-se em várias passagens bíblicas, nomeadamente na da tentação de Cristo pelo Demónio, ao prometer-lhe todos os reinos da terra.
Mas também nas Escrituras Cristo dissera a Pilatos que não teria qualquer poder sobre si se lhe não fosse dado do alto, e S. Paulo proclamara que “não há poder que não venha de Deus”, numa expressão tantas vezes repetida pelos latinos: “non est potestas nisi a Deo”.
A solução para a conciliação entre a tese da natureza diabólica das primeiras manifestações de poder com a tese da origem divina de todo o poder radicava na distinção entre a vontade permissiva e a vontade deliberativa de Deus: Deus não quis a tirania, tal como não quis que o homem pecasse, mas permitiu-a, assim como consentiu no pecado dos homens. Deste modo, a tirania é uma manifestação da justiça divina, pelo que também essas primeiras manifestações históricas tiveram origem em Deus, que as permitiu
A corroborar esta leitura da origem pecaminosa do poder parecia estar uma expressão do XIX livro da Cidade de Deus de Sto. Agostinho, em que este lembra a passagem bíblica em que Deus diz criar o homem para que domine os peixes do mar, as aves do céu e os animais da terra, sublinhando Sto. Agostinho que “Deus não disse: para que domine os outros homens”.
Esta linha de interpretação da questão do poder inscreve-se naquilo a que Jean Arquilière chamou “o agostinismo político” congregando um conjunto de autores que não atribuiam ao poder e ao estado um fundamento no direito natural.
Ora, quem equacionou de forma clara esta questão, para além das contribuições também dadas por S. Gregório (Ep. V, 59) e por Sto. Irineu (Adv Haer., V, 24), foi S. Tomás de Aquino que, apoiando-se em Aristóteles, defendeu abertamente a natureza social do homem e consequentemente a dimensão constitutiva do poder em relação à natureza humana.
Para tanto, na nonagésima sexta questão da Suma Teológica, S. Tomás distingue o dominium servile do dominium politicum, acrescentando que o primeiro não poderia existir no estado de inocência, mas que o segundo é inerente à sociedade dos homens, logo, sendo o homem um ser social, o poder político é também uma realidade inalienável. Foi a posição de S. Tomás que vingou inegavelmente na globalidade dos nossos pensadores escolásticos, vindo a ser magistralmente comentada por Francisco Suárez no De Legibus (Lib. III, I, 12).
Para tanto, revelou-se fundamental o suporte aristotélico em que, sobretudo a partir de S. Tomás, a escolástica se desenvolveu. Entendia de facto Tomás de Aquino que todas as criaturas dotadas de fim próprio deveriam possuir as faculdades necessárias para o atingir, e sendo a comunidade uma entidade transpessoal dotada de fins próprios, deveria também possuir as faculdades necessárias para os realizar, consistindo estas, nomeadamente, no poder político.
De facto, o interesse particular não coincide necessariamente com o bem comum, verdadeira finalidade do poder, e até por vezes se lhe opõe, pelo que para S. Tomás, o homem apenas dispensaria o poder se vivesse só e em exclusiva relação com Deus.
Voltamos assim a Frei Álvaro Pais que, no Speculum Regum entende que onde há pluralidade de criaturas ordenadas para um fim é necessário que uma ou algumas se encarreguem especialmente de ordenar esses movimentos plurais, reduzindo-os a Deus como primeiro motor. Por isso, escreve: “sendo os reis em governar os motores do orbe, importa que o movimento do seu regime se reduza a Deus como primeiro motor” (Speculum Regum, vol. 1, p. 57).
Por isso, a referência por si feita à natureza pecaminosa e diabólica das primeiras manifestações do poder não impede que análise a questão no plano dos fundamentos teóricos e não já no dos factos históricos, e se o fundamento aristotélico do seu pensamento não deixa dúvidas, o mesmo sucede com o texto ainda mais explícito em que diz: “Prova o Filósofo no oitavo livro dos físicos que nos moventes e nos movidos não existe o ir para o infinito” e se a providência “compreende as outras criaturas num devido e ordenado fim, muito mais compreende a criatura capaz de raciocinar, como o homem, o que é patente quando a governa e a regula por meio dos seus representantes que são os reis, os príncipes e os prelados […] pois que proveu este mundo com eles para que cada um prossiga o seu estado em vista do devido fim” (Speculum Regum, vol. 1, p.59).
Este quadro de pensamento supõe por sua vez a teoria aristotélica do movimento, e muito especialmente a física dos lugares naturais, à luz da qual o movimento supõe uma carência de actualidade, pelo que os corpos tendem a deslocar-se para os seus lugares naturais a título de realização da sua natureza.
Veja-se o que diz o Infante D. Pedro, na Virtuosa Benfeitoria, ao escrever: “Conclusão é de Aristóteles em o segundo livro da natural filosofia que a natureza é começo de movimento e de folgança. E para declaração disto aprendamos que cada uma cousa tem qualidade pela qual se move ao seu próprio lugar quando está fora dele, entendendo ali ser conservada melhor. E por aquela mesma propriedade faz assossegamento, e folga depois que está onde sua natureza requer” (Virtuosa Benfeitoria, p. 659), posto o que refere o exemplo dos movimentos no espaço infralunar, com referência ao movimento da pedra, também utilizado por Aristóteles na Física: “Exemplo disto é a pedra que pela sua graveza e peso descende ao lugar que lhe pertençe, e depois que o percalça não se move mais” (Ibid., p. 659).
Por isso, ou seja, em vista da orientação da vida humana para a eminência do seu fim sobrenatural, diz o Infante D. Pedro que ainda que o homem não tivesse pecado haveria um “senhorio em liberdade” que não suporia a servidão ou a escravatura: “Houvera polícia em o primeiro estado dos homens, e fora senhorio em liberdade, ainda que o pecado não subjugasse o mundo”, distinguindo-o do domínio servil, “o qual não houvera se não houvessemos pecado” (Ibid.).
Por isso também refere Diogo Lopes Rebelo, já nos finais do século XV, no De gobernanda republica per regem, que o poder político é uma emanação necessária da razão, como necessidade comum a todas as nações e povos, emanando do princípio de conservação da vida, comum a todos os seres que por isso se reúnem em sociedade (De gobernanda, p. 57).
Por sua vez, dando um tom mais vincadamente humanista, ao seu pensamento, refere D. Jerónimo Osório, também ele Bispo de Silves no nosso século XVI, que a comunidade política é uma “singularíssima fatalidade”, imitando a ordem e a harmonia da natureza, tendo o cuidado de distinguir, como S. Tomás, que uma coisa é o guia e outra o amo, pois que enquanto o primeiro “visa à salvação daqueles que dirige”, o segundo “tudo refere à utilidade própria” (Tratado da Nobreza Civil, p. 111).
Por seu turno, no De regis institutione et disciplina lembra o mesmo autor que Homero chamava aos reis cosmeteras, ou seja, obreiros de coisas perfeitas, e que os gregos se serviam do vocábulo cosmon para exprimir a harmonia e beleza da natureza, servindo a mesma palavra para exprimir a perfeição do mundo da natureza, como a perfeição do conjunto dos homens unidos pelo direito (De regis, p. 372).
Ora, a imprescindibilidade da sociedade política, para D. Jerónimo Osório, advém ainda de outro princípio também enunciado por Aristóteles e S. Tomás, expresso desta feita no Tratado da Nobreza Civil, quando considera que aquilo que concorre para a felicidade actual de cada indivíduo não é de tanta importância como aquilo que concorre para a conservação e prosperidade da sociedade, princípio que supõe afinal a prevalência do bem comum sobre o interesse particular e imediato de cada um.
Todavia, esta referência ao privilégio do bem comum sobre o interesse particular não pressupunha de modo algum o desprezo pela dignidade ética da pessoa humana, mas apontava para um misto de universalismo e individualismo, exposto nomeadamente por Jerónimo Osório, quando explica que “numa república organizada de acordo com a razão, se alguém for oprimido em seus interesses, não há dúvida de que poderá com muito maior facilidade ser satisfeito de seus agravos e restituído dos seus bens, do que numa situação de desassossego generalizado” (Tratado da Nobreza Civil, p. 107).
Posição idêntica expressa Suárez nas suas lições em Coimbra, posteriormente compiladas no tratado De Legibus: a soberania é uma emanação natural da razão, pois sendo o homem um ser por natureza sociável, a soberania é uma fatalidade à qual os homens não podem esquivar-se, uma vez tomada a decisão de se constituirem em comunidade, sendo neste ponto acompanha do pelo seu colega Luis de Molina para quem, no De Iustitia et Iure, o poder é uma emanação natural da congregação dos homens em sociedade, pelo que, uma vez constituída, a comunidade política passa a constituir uma entidade própria – uma pessoa – distinta dos indivíduos particulares que a formam, pelo que se apresenta dotada de autonomia.
É por sua vez interessante verificar que nem em D. Jerónimo Osório, nem em Suárez, nem em Molina se notem referências à tese da origem pecaminosa das primeiras manifestações do poder, chegando Suárez a negá-la e a considerá-la falsa, em nome do que julgamos ser a sua preocupação de dignificar a natureza humana,teorizando-a, como foi comum ao seu colega Luis de Molina, num contexto de maior dignidade.

A transmissão do poder de Deus aos homens
A solução apresentada por S. Tomás de Aquino a respeito do poder político como emanação necessária da dimensão social do homem, ou melhor dito, como emanação natural da comunidade, permitiu sustentar em moldes mais profundos a antiga doutrina dos jurisconsultos romanos sobre a origem popular do poder, com destaque para a chamada lex regia de Ulpiano, sustentando que no início da monarquia romana o populus, através da lex regia transferiu o poder para o rex, herdado pelo Imperador, de que posteriormente se consideravam também herdeiros os reis medievais.
Para os escolásticos, que aprofundaram esta tradição, tendo o poder origem em Deus, este não o transmite directamente ao soberano, servindo-se antes de um medianeiro, ou seja, da comunidade ou populus, com a importante ressalva de que por populus devemos entender, na definição de Cícero, ou seja, um grupo reunido em unidade de direito e de proveito. Por esta razão, cumpre desde já acentuar que as alegações do Doutor João das Regras nas cortes de Coimbra de 1385, relatadas por Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, nada têm de revolucionário ou de inovador, constituindo antes o apelo a uma doutrina já estabelecida desde há séculos e retomada com vigor a partir do século XII.
Nesta conformidade, o poder exercido pelos soberanos tem origem imediata no povo e mediata em Deus, à luz das fórmulas omnis potestas a deo per populum e popolo faciente et deo inspirante. A excepção a este princípio foi Álvaro Pais, que no século XIV defendeu abertamente a hierocracia e o conceito de mediação papal, expresso também na bula Manifestis Probatum (século XII), na qual o papa dizia conceder a D. Afonso Henriques o reino de Portugal, bem como aos seus descendentes. Para Álvaro Pais, o rei recebia o poder das mãos do Papa, exercendo-o por delegação, como sucede com a interpretação que nos dá da coroação de Carlos Magno, no ano de 800.
Em todo o caso a fórmula mais síntética e elaborada desta concepção da soberania inicial do populus será formulada pelo jesuíta Francisco Suárez nas suas lições de Direito em Coimbra: “quem dá o elemento determinante da essência de uma coisa, dá também o que dessa essência se segue, logo, quem é autor próximo da comunidade, parece ser também autor e dador desse poder”, conciliando com esta expressão a tese paulina da origem divina do poder, com a doutrina dos jurisconsultos romanos, sobre a origem popular da soberania. De facto, sendo autor próximo da comunidade, Deus é também o autor do poder, embora o não transmita directamente, como sucedeu nas excepções de Saul e David, dado que “segundo a providência geral e ordinária, o poder não se transmite desse modo, porque os homens, segundo a ordem da natureza nas coisas civis, não se regem por revelações, mas sim pela razão natural” (De Legibus, III, IV, 2), pelo que, na transmissão do poder, Deus serve-se da comunidade, entedida como “causa segunda proporcionada”. O que há de essencial a reter nesta tradição aprofundada pelos juristas da Companhia de Jesus é a tese de que o soberano não recebe o poder de Deus, mas do povo.
No entanto, esta tese não obriga à eleição do rei após a sua morte, supondo antes uma eleição inicial, a qual só obrigaria a nova eleição uma vez quebrada a linha de sucessão directa. Foi o que sucedeu entre nós em 1383. Por isso também, quando trata dos justos títulos de aquisição do poder (eleição, herança, guerra justa, instituição por um superior dotado de jurisdictio), Francisco Suárez refere que “sempre haverá que reduzir o poder real a alguém que o adquiriu por justa eleição ou consentimento do povo” (De Legibus, III, IV, 4), repetindo aliás concepção idêntica expressa anos antes por Diogo de Sá no Tratado dos Estados Civil e Eclesiástico.
Por sua vez, importa não esquecer que o juramento e a aclamação do rei quando da sua posse, funcionava como um reconhecimento tácito dos povos, perpetuando o princípio do pactum e do consensus populi.
De um modo geral todos os nossos jurisconsultos se pronunciaram pela tese da soberania inicial do povo. Fizeram-no Fernão Lopes e o Doutor João das Regras em 1385, fê-lo o Infante D. Pedro, Diogo Lopes Rebelo, Jerónimo Osório, Suárez e Molina, Diogo de Sá, Martinho de Azpilcueta Navarro, para citar apenas os mais conhecidos.
Aliás, na segunda metade do século XVI, a defesa deste princípio pelos membros da Companhia de Jesus, bem como dos arautos da Contra-Reforma, como D. Jerónimo Osório, ia também de encontro aos interesses do papado na sua luta contra o absolutismo e a divinização nos reis dos países da reforma, dado que Lutero professava abertamente o direito divino dos reis, considerando o povo como Satanás, agindo Deus através dele como outrora agia através do anjo do mal. De facto, ao considerar a graça superior à liberdade, Lutero contribuiu fortemente para o desenvolvimento do autoritarismo. É também por esta razão que ao lermos no século XVIII os manifestos pombalinos contra os jesuítas, estes surjam classificados como “perturbadores dos tronos” e “amotinadores dos povos”, esquecendo-se os homens do Marquês de que essa tese não lhes era exclusiva nem fora por eles criada.

A Justiça como fundamento do poder político
Posto isto é em Aristóteles, S. Tomás e também em Santo Agostinho que os pensadores portugueses se apoiarão para teorizar os fundamentos do poder, situando-os na virtude, ou seja, na justiça como fundamento da paz e da harmonia social, arvorando-se, no século XVI, contra as doutrinas consideradas ímpias de Francisco Guicciardini e de Maquiavel.
Como é sabido, a tradição estóica e cristã consagrou o termo “virtudes cardeais” como exprimindo os quatro pilares da acção do soberano, mas não restam dúvidas de que o modo como as teorizaram remonta à Ética de Aristóteles.
A doutrina do justo-meio, que Aristóteles refere a propósito das virtudes éticas é comumente aceite, bem como o direito de estruturação das demais, que Aristóteles atribuía à justiça. Por sua vez, não é difícil determinar a importância da prudência, como pólo estruturante do que Aristóteles chamava as virtudes dianoéticas, como sucede em Diogo Lopes Rebelo, ao considerar a prudência como recta ratio rerum agibilium (Do governo, p. 78) (recta razão das coisas agíveis), o que supõe a prudência como “virtude intelectual que rectamente dirige as virtudes morais e os actos delas” (Ibid.).
Vincando também a sua permeabilidade a Aristóteles no que concerne à justiça, diz ainda Lopes Rebelo que “o poder judicial é inerente à dignidade real, e para o exercer foram os reis criados e investidos na república. Por isso, o povo inteiro, em tempos antigos, pôs à sua frente um rei” (Ibid., p. 87).
Entre o conjunto das virtudes régias, não restam pois dúvidas sobre o papel central atribuído à justiça enquanto esta se apresenta, como queria Aristóteles, como dando ou interpretando o carácter da medida correcta das demais virtudes. Di-lo Frei António de Beja, na sua Breve Doutrina, quando considera que a justiça é a “mais clara e excelente das virtudes, e Aristóteles lhe dá o nome de toda a virtude, dizendo que a justiça é toda a virtude” (Breve Doutrina, p. 132), o que corresponde de facto ao que escreve Aristóteles no livro V da Ética a Nicómaco; Di-lo Amador de Arrais para quem a justiça “é uma congregação de todas as virtudes, e ela as contém todas em si, dando a cada uma a sua rectidão” (Das condições do bom príncipe, p. 365), o que corresponde à doutrina aristotélica da justiça como interpretação da justa medida de todas as outras virtudes; Di-lo Jerónimo Osório, considerando que “nesta disciplina de civismo o principal quinhão cabe à justiça, na qual se contém o esplendor máximo da virtude” (Tratado da Nobreza Civil, p. 115); e citamos para terminar Suárez, que proclama que se o fim do poder civil é a paz e a felicidade “temporal” do estado humano, e se este fim só se obtém mediante a observância da justiça, segue-se que “só a justiça é a matéria própria da lei civil” (De legibus, III, XII).

A finalidade do poder político
Quanto à finalidade do poder político, e para os autores mais dependentes da influência augustiniana, ele reside no encaminhar os homens para o seu fim, ao nível dos assuntos temporais, ou seja, para Deus, pelo que o poder tem uma finalidade espiritual ou sobrenatural, a qual se dissipará progressivamente à medida do acentuar das teses do direito natural, sobretudo entre os jesuítas.
De facto, para muitos teóricos da Idade Média, muito em especial para Frei Álvaro Pais, o poder tem uma finalidade espiritual, pois a sua missão é encaminhar o homem para Deus, como puro espírito, e assim, a finalidade do poder régio temporal confundia-se com a finalidade do poder régio espiritual, embora exercendo-se sobre matéria diferente e também com diferentes meios, o que deu origem a inúmeras quesílias entre o império e o sacerdócio. Já para os teóricos da Companhia de Jesus, dotados de um humanismo enriquecido pela realidade dos novos povos descobertos no contexto dos Descobrimentos, a esfera do direito natural ganha uma nova projecção e autonomia, razão por que a finalidade do poder civil é tão-só e apenas a de garantir a felicidade externa dos cidadãos.
O que estava em causa para os teóricos da Companhia, nomeadamente para Luis de Molina, tanto no De Concordia como no De Iustitia et Iure, era a distinção entre a esfera natural e sobrenatural dos actos humanos, contribuindo para a valorização da natureza humana, seja quando defendia a capacidade natural do intelecto para aceder aos actos de fé sem a intervenção da revelação e, portanto, sem a auxílio da iluminação interior de que falava Sto. Agostinho, quer quando admitia a possibilidade do heroísmo das acções extremas sem auxílio divino, ou ainda a capacidade de todos os humanos, cristãos ou pagãos, para acederem naturalmente ao arrependimento ou dor moral, desembocando na tese cimeira do concurso entre a acção divina e a acção humana, mediante a qual supera a tese da praemotio physica, defendida pelos dominicanos em Salamanca.
No caso de Francisco Suárez, vemos que analisa o poder civil nos estritos limites do direito natural, delimitando uma esfera comum a todos os homens e a todos os povos, independentemente da fé e dos costumes. Para o jesuíta, o poder civil, tal como afecta originariamente a natureza humana, e, portanto, prescindindo da fé, não se orienta para a felicidade e salvação verdadeira e interna do homem, mas para a sua felicidade externa na vida presente, pelo que a lei civil, em si própria, não visa um fim sobrenatural (De Legibus, p. 237), assim se distinguindo do poder eclesiástico e da lei canónica. Considera assim que “a lei civil atende à utilidade temporal e honesta da república humana; em contrapartida a lei canónica atende principalmente à salvação da alma e a que se evitem os pecados” (De Legibus, III, XI, 6).
Esta separação de planos é essencial no quadro das novas realidades jurídicas e culturais da segunda metade do século XVI, sendo nela que se sustentava a tese da legitimidade dos justos títulos de poder entre os povos descobertos, e a recusa da tese do cardeal Ostiense, defendendo que o poder dos pagãos, depois da vinda de Cristo, se deveria considerar ilegítimo, pois Cristo transferira todo o poder para os cristãos, através de si próprio. A esta tese responde Suárez com outra radicalmente oposta: “o poder dos príncipes cristãos, em si mesmo, não é maior nem de distinta natureza do que foi entre os príncipes pagãos; logo, em si próprio não tem outra matéria nem outro fim” (De Legibus, III, XII, 9). A consequência directa desta tese é a de que nem a fé, nem a superioridade civilizacional, constituem justo título de conquista e de domínio dos povos descobertos, pelo que a fé só pode ser pregada pelo magistério da palavra e nunca imposta, como quiseram também Manuel da Nóbrega e António Vieira no Brasil.
Já no caso da guerra justa, como título legítimo de aquisição do poder, Suárez preocupou-se em mostrar que ele não contrariava a tese do consentimento dos povos então vergados ao novo domínio, pois tratava-se não de um consentimento prestado, mas de um consentimento devido.
Todavia, tal não implicava que, de acordo com a conhecida expressão de S. Tomás de Aquino, para quem a graça não contraria a natureza, mas aperfeiçoa-a, se não considerasse que depois da fundação da Igreja de Roma, o poder civil fosse mais perfeito do que ateriormente, pois que os principes cristãos, ao darem as suas leis “podem, e em parte devem, atender ao fim sobrenatural” (De Legibus, III, XII, 9).

O personalismo régio
Outro aspecto interessante em que a escola da Companhia de Jesus se distancia da tradição do pensamento político anterior foi a desestruturação da tese do chamado personalismo régio, pois não só encarou a política num plano autónomo em relação à fé, como a separou também do comportamento pessoal do soberano. À luz das teorias do personalismo régio foram muitos dos nossos repúblicos levados a admitir uma relação de causalidade entre a conduta e o comportamento pessoal do soberano e os actos da sua administração, pelo que um rei que não soubesse governar o seu reino interior, tão-pouco saberia governar o seu reino exterior, até porque os povos agiam a exemplo dos seus chefes, e o mau exemplo era por si só impeditivo do bom governo e da harmonia da comunidade política. Para esta concepção concorria uma longa tradição que se vinha avolumando desde a antiguidade: lembremos a célebre frase de Sólon, referida por Diógenes de Laércio, para quem o soberano deveria rectificar-se a si primeiro que ao povo, caso contrário seria como quem quer endireitar a sombra de uma vara torta; lembremos a expressão de Aristóteles ao proclamar que mais nos moviam exemplos que palavras; ou finalmente Séneca, quando entende que o mau autor faz a obra torpe.
Esta tradição será largamente referida pelos nossos teóricos da Idade Média e do Renascimento. Veja-se o caso de Fernão Lopes, quando na Crónica de D. Pedro I, refere que o rei é a regra da lei, pelo que este “se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ela fazer”, sendo “cousa torpe de ver” um reino com boas leis alicerçadas em maus costumes (Crónica de D. Pedro I, p. 5).
Não será no entanto essa a posição de Francisco Suárez, o qual no De legibus, admite perfeitamente que as leis justas possam coexistir com os maus costumes do rei, negando portanto a existência de relações de expressão entre a conduta pessoal do soberano e o conteúdo das leis. Pode haver uma concomitância entre os maus costumes do rei e a justiça da sua administração, o que é dizer que a anterior ligação entre a pessoa do rei e a sua administração é quebrada em favor da autonomização crescente da instância política: “Muitos inconvenientes surgiriam se o poder civil dependesse da fé e dos bons costumes particulares do príncipe, porque não haveria paz nem obediência no estado e qualquer súbdito se julgaria no direito de julgar o seu superior e de lhe desobedecer, o que é um grandessíssimo absurdo” (De Legibus, III, XI, 10).

A excelência da monarquia e o paternalismo régio
Outro dos aspectos fortemente marcados pelo pensamento de Aristóteles é o que se refere à classificação das formas de governo. Os pensadores portugueses desta época assumirão como válida a divisão feita por Aristóteles no livro II da Política e no livro VIII da Ética e tomarão para si o elogio de Aristóteles à monarquia, ao considerar que a realeza era melhor das constituições políticas (Política, III, 14-18; Ética a Nicómaco, VIII, 12).
O argumento mais comumente bramido é o do primado da unidade sobre a multiplicidade, com referência ao livro XII da Metafísica aristotélica. Assim como a pluralidade das coisas produzidas é regida por uma primeira causa, assim como a pluralidade dos soldados são regidos pelo seu general, assim também na sociedade política. Escreve a propósito Diogo Lopes Rebelo: “Na sua Política, diz Aristóteles que a república é melhor governada por um supremo príncipe ou rei do que por vários, devido à unidade de um só a quem se defere a conservação de todas as coisas” (Do governo, p. 61).
Tratava-se de governar a sociedade tal como Deus governava o universo, pois assim como havia um só Deus que governava todas as coisas, mantendo-as na sua perfeita harmonia, também na comunidade política deveria haver um só rei, governador e reitor de toda a república. O mesmo argumento, visto agora sob um prisma mais cristianizado é utilizado por Álvaro Pais: se o fim do governo é encaminhar o homem para a iminência do seu fim, e sendo esse fim a suprema unidade, melhor conduzirá o homem para a unidade aquele que é um do que sendo vários.
A bem dizer, e considerando as três formas legitimas de governo, qualquer delas era aceitável, e tal como dissera Aristóteles, a despeito da excelência da realeza, a melhor constituição é a que tiver os melhores governadores, todavia, a tese mais frequente era a de que a monarquia reunia as melhores condições prévias para assegurar a realização do bem comum, sempre com a prevenção de que, à luz do direito natural, os povos não estão obrigados a escolhê-la.
Posição interessante é também a de D. Jerónimo Osório que não utiliza o argumento da primazia da unidade sobre a multiplicidade, mas sim um argumento de inércia, ou seja, tão criminoso seria transformar uma boa república em monarquia, como transformar uma boa monarquia em república, residindo a razão do crime na grave perturbação da ordem e da paz pública que tais alterações sempre acarretam.
Outro aspecto importante que decorria da excelência da monarquia, bem como da fundamentação ética do poder político era a concepção paternalista que desde sempre vingou na monarquia portuguesa.
Aristóteles considerara, na Ética a Nicómaco, que a comunidade existente entre o pai e os seus filhos é do tipo real, pois que tanto o pai como o rei têm por missão cuidar dos filhos, e acrescenta: “daí resulta que Homero designa Zeus pelo nome de pai, porque o ideal da realeza é o de um governo paternal” (Ética, VIII, 12; Veja-se também Política, 12, 1259 b, 10-17).
Somos assim entrados naquele que é porventura o núcleo mais relevante do nosso pensamento político, pois é o que mais o distancia das concepções mecanicistas do estado que vingarão no período moderno, bem como das concepções de Guicciardini, Maquiavel, Giovanni Botero e Traiano Boccalini.
No caso português, a concepção paternalista do estado e da realeza fez vingar uma atmosfera de familiaridade na relação entre os reis e os súbditos que está longe de se esgotar na tecnicidade dos códigos jurídicos. Como escreveu Martim de Albuquerque, o paternalismo não se traduz num sistema de leis, mas num quadro de sentimentos, cuja mais perfeita e acabada expressão é a Virtuosa Benfeitoria do Infante D. Pedro, ao propor uma comunidade em que os laços sociais se estabelecem no quadro da amizade e da protecção não obrigada nem constrangida, porque assente no amor que as criaturas mutuamente se devem, fundamentando desse modo o conceito de lealdade já teorizado por seu irmão, o rei D. Duarte.
Os reis são pais e tutores dos seus vassalos, e devem agir como pais da pátria, tal era o tópico sempre repetido pelos repúblicos portugueses ao longo destes três séculos, partindo-se daí para a equação do célebre par amor e temor.
É conhecido o passo em que Maquiavel, n’O príncipe refere que o ideal era ter um príncipe temido e também amado. Mas que não sendo possível manter a equidade dos dois sentimentos, era preferível o temor ao amor. Como não será difícil de antever, uma comunidade política cujo fundamento assente na virtude, preferirá sempre o amor ao temor, o justo meio à violência, até porque era máxima de Aristóteles que nenhuma violência podia ser duradoira, pelo que bem poderiam morar na mesma sede o amor e a majestade.
Hão-de os reis procurar ser mais amados do que temidos, pois como dizia Frei Heitor Pinto, figura cimeira do nosso humanismo renascentista, assim como mais nos servimos do braço direito do que do esquerdo, assim devemos mais favorecer virtudes do que castigar vícios, pois na primeira resplandece o amor, e na segunda o temor (Imagem da vida cristã, p. 155). Os reinos e os Impérios, como sobre a queda de Roma escreveu Jerónimo Osório em resposta a Maquiavel, não caem por falta de muros, que são fáceis de erguer, mas por falta de virtude, que é bem mais difícil de manter, e que em Roma se não manteve, tendo-se por isso perdido o Império.
O outro aspecto que daqui decorria era o par justiça e paz, pois que, o primado da justiça sobre a paz supõe o primado da ética sobre a política, sendo a inversa também verdadeira. Por esta razão os pensadores portugueses sempre sustentaram que a paz é a segunda coisa que através da justiça se alcança, ou que a justiça do rei é a paz dos povos, escrevendo a propósito o humanista Heitor Pinto, no diálogo sobre a justiça que “onde há esta justiça há aí paz” (Imagem da Vida Cristã, p. 153).

O direito de resistência
Este quadro em que se afirma o primado da ética sobre a política, a excelência da virtude e a justiça como “harmonia da boa governação” coloca-nos agora o problema de saber qual a atitude legítima dos povos perante as leis injustas e o governo dos tiranos.
Quanto ao problema da lei injusta, se a justiça é o fundamento da lei, consideravam os nossos repúblicos, seguindo aqui uma tradição também vincada por Sto. Agostinho, que uma lei injusta não é lei e como tal não deve nem pode ser obedecida. Na tradição do cristianismo, a injustiça da lei aferia-se sobretudo pela sua desconformidade com o direito divino e com o direito natural. Dissera-o o Doutor João das Regras nas Cortes de Coimbra de 1385, ao proclamar que mais devemos obedecer a Deus que aos homens, e dissera-o também Álvaro Pais. Assim como o dinheiro falso não é dinheiro, assim como a falsa justiça não é justiça, assim também uma lei injusta não é lei.
A atitude dos cristãos perante a lei injusta, e também perante o fenómeno da tirania conduziu muitos dos nossos pensadores a fundamentarem o direito de resistência passiva, mas não faltou quem entre nós defendesse, em determinadas circunstâncias, o direito de reistência activa, como o tiranicídeo, como sucedeu com Diogo Lopes Rebelo e Suárez.
Em todo o caso, estavamos perante uma questão melindrosa, muitas vezes apagada subtilmente pelos nossos autores como sucedeu com o Infante D. Pedro que, ao referir-se ao pacto de sujeição e ao consensus populi, não aborda a questão do incumprimento desse mesmo pacto.
Sobre ela pesava ainda a tradição bíblica que mandava, pela pena dos Apóstolos Pedro e Paulo, citados no Regimento dos Príncipes por S. Tomás, obedecer mesmo aos maus reis e aos tiranos, sustentando que quem desobedece aos rei desobedece a Deus.
Podemos a este respeito citar a posição paradigmática de Diogo Lopes Rebelo, que nos parece acompanhar de perto a posição de S. Tomás, quando o fundador da escolástica considerava que a excelência da dignidade régia era de tal ordem, que mesmo o mau rei dela se não dissocia: é certo que Aristóteles dissera que a honra é dada em testemunho da virtude e que por isso só a virtude é causa da concessão da honra, donde se poderia concluir que não deveremos honrar os reis perversos. Simplesmente a conclusão é apressada, porque dizer que a virtude é a causa da honra pode entender-se de dois modos: “de um modo a virtude é própria, e assim ao virtuoso é devida a honra; e doutro, a virtude é alheia, e assim os príncipes e prelados, ainda que maus, devem ser honrados, enquanto representam a pesoa de Deus e da comunidade a que presidem. E por esta razão os pais e senhores, ainda que maus e perversos, devem ser honrados” (Do governo, p. 165).
No entanto, Lopes Rebelo distingue o tirano que assume o poder de modo legítimo do que o assume ilegitimamente, sendo que neste último caso defende abertamente o tiranicídio.Posição também relevante é a que Francisco Suárez assume na Defensio fidei, ao admitir o direito de risistência activa contra o tirano, podendo conduzir ao tiranicídio, tendo em vista a quebra do pactum e do consensus, embora com o cuidado de referir que se trata de uma atitude extrema, devendo, sempre que possível ser evitada.

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