segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Filosofia, cultura e linguagem - a pertinência do ensino da Filosofia em língua portuguesa

Fernanda Henriques (Universidade de Évora)
À memória do Professor Manuel Antunes

“A recusa da palavra transcendente, a descoberta da relatividade da linguagem, marcam uma data capital na vida espiritual da humanidade. Babel recapitula a saída do paraíso terrestre […] A catástrofe de Babel abre à actividade humana a empresa da reflexão e a da liberdade.” Gusdorf
[1]

“Lutero fez falar a Bíblia, o Senhor fez falar Homero em Alemão - a maior dádiva que pode ser feita a um povo, pois um povo será bárbaro e não considerará as coisas excelentes que conhece como sua verdadeira propriedade enquanto não aprender a conhecê-las na sua língua […] Assim, gostaria de dizer acerca do meu empenhamento que quero tentar ensinar a Filosofia a falar Alemão. Uma vez chegados a esse ponto, torna-se infinitamente mais difícil dar à trivialidade a aparência de discursar profundo.” Hegel
[2]

Notas ao fim do texto

Preliminares: campos semântico e especulativo implicados no título
· Há uma legitimidade filosófica e uma necessidade cultural de que a prática filosófica se desenvolva no quadro das línguas maternas, afirmação que supõe que não há línguas privilegiadas para filosofar.
· Partindo de uma análise estritamente filosófica não se encontrará legitimidade para se defender a existência de Filosofias nacionais.
· A actividade filosófica, em todas as suas determinações - fazer, ensinar, traduzir Filosofia – pode ser um factor poderoso de enriquecimento cultural e linguístico.

Problemática - A prática filosófica e as línguas nacionais
Gostaria de desenvolver este primeiro ponto da minha reflexão sob a égide das epígrafes deste trabalho: a de Gusdorf e a de Hegel.
Na realidade, ambos os autores nos conduzem ao cerne do sentido que alimenta o conjunto das posições que subtendem a lógica e o conteúdo desta meditação em torno da pertinência do ensino da Filosofia em língua portuguesa.

Linguagem e cultura
O texto de Gusdorf lança-nos, de imediato, no plano da dimensão ontológica da linguagem, ao mesmo tempo que, através de uma interpretação nele implícita acerca do significado do pecado original, propõe uma leitura positiva do sentido das diferentes línguas, que liga à problemática da historicidade humana, co-originária, por sua vez, do exercício da liberdade e da reflexão.
Fazendo do mito de Babel uma recapitulação da expulsão do paraíso e assimilando aquele ao processo humano de expressão de si mesmo, Gusdorf saúda, na confusão das línguas que põe fim à unidade do falar divino, não a sua possível dimensão caótica originadora de desentendimento e separação, mas sim a potencial riqueza transportada pela diversidade dos falares humanos, prenhe de possibilidades sempre outras, e, de cujos cruzamentos e trocas se enriquecerá a humanidade no seu conjunto. O episódio da Torre de Babel aparece ligado com outro episódio bíblico que é a revelação de Pentecostes - o dom das línguas -, pelo que, através dessa relação, nos fica a possibilidade de interpretar este último como representando a aceitação e o sancionamento divinos da diversidade das línguas humanas. No caso vertente, importa-me reter que as diferentes línguas assumem, por esta via, uma legitimação e um sentido que fazem delas lugares de expressão e de reconhecimento de si dos diferentes grupos humanos no processo de se constituírem como povos e como culturas.
Esta citação-epígrafe pertence a uma obra que sempre revisito no percurso da minha investigação sobre a natureza e o estatuto da linguagem. Na realidade, tendo quase meio século, La parole é, a meu ver, ainda hoje um texto incontornável para uma compreensão do papel da linguagem na vida e produções humanas, e, na minha perspectiva, a obra alimenta-se de uma tese fundamental , a saber - a linguagem deve ser interpretada como uma ruptura na continuidade cósmica, sendo ela própria um salto qualitativo em relação ao conjunto das determinações orgânicas, fisiológicas e culturais que a explicam e condicionam. Desta maneira, a linguagem é o paradigma por antonomásia de que o todo é diferente e mesmo, mais, do que a soma das suas partes constituintes.
A exploração e o comentário deste princípio de leitura permitem organizar, por um lado, as categorias básicas da linguagem enquanto interface humano e, por outro, caracterizá-la, do ponto de vista epistemológico, como uma hermenêutica. Deste modo, proponho duas categorias básicas para descrever a linguagem humana - emergência e poder.
Emergência, na medida em que ela é expressão de um modo de explorar e organizar a realidade; poder, porque é também ela que possibilita a sua manipulação.
A primeira categoria enunciada, a emergência, vai permitir encontrar duas novas determinações: o acesso à reflexividade, - isto é, o reconhecimento da diferenciação do sujeito falante em relação à coisa falada e, portanto, a tomada de consciência de si como poder designativo e força mediadora - e também o acesso à significação, - ou seja, a transformação do real em mundo, em um conjunto discriminado de referências.
Por sua vez, a categoria poder transporta consigo as determinações de valoração e tecnicidade como descritores possíveis da linguagem. Sobre isto, diz expressamente Gusdorf: “A linguagem apresenta-se como a mais originária de todas as técnicas. Ela constitui uma disciplina económica de manipulação das coisas e dos seres.”
[3]. Assim entendida, a linguagem tem a forma de uma utensilagem, cuja acção transformadora, molda, realmente, o mundo imprimindo-lhe a marca e o domínio humanos. O poder que a linguagem representa assume, desta maneira, a dupla dimensão de ascendência e instrumentalização; pela primeira, o ser humano dignifica-se e dignifica a realidade, introduzindo nela uma ordem que a transforma em mundo; pela segunda, apodera-se dela em termos de controle e exploração. A este propósito e dentro do mesmo espírito, poder-se-ão invocar outros exemplos da tradição judaico-cristã que explicitam, de forma clara, a consciência do poder ordenador, manipulador e criador da linguagem. Refiro Genesis 2, 19-21, em que a humanidade é convidada a dar nome às criaturas ou o início do Evangelho de S. João que dá à Palavra a co-originaridade de Deus criador.
É desta dupla dimensão da linguagem de ordenadora e manipuladora do real que surge a categoria de valoração, como um outro dos seus atributos mais específicos. Para Gusdorf: “A palavra deve a sua eficácia ao facto de não ser apenas uma notação objectiva, mas um índice de valor [...] Dito de outra maneira, cada palavra é a palavra da situação, a palavra que resume o estado do mundo em função da minha decisão.”
[4]. Do meu ponto de vista, a valoração recapitula e, diria mesmo, subsume todas as características da linguagem, dando-lhe uma equivocidade incontornável, um poder, a um tempo, criador e demoníaco, capaz de todas as mistificações. É por ela que o real se faz mundo, que os entes se tranformam em coisas e funções, a presença em duração e os factos em história; ou seja, é por ela que a cultura emerge porque se nomeia. Contudo, é, igualmente, por ela que a destruição e o caos podem ocorrer e que a ordem se pode fazer tirania, obscurantismo ou discriminação.
Esta equivocidade da linguagem, reverso da sua constitutiva polissemia, tem origem no seu carácter estruturalmente mediador - a linguagem é, efectivamente, o meio e o elemento de todas as relações que o ser humano estabelece ou melhor dizendo, da figura relacional que o ser humano é. Ora, enquanto tal, ela não só organiza como classifica, interpreta, selecciona, hierarquiza, numa palavra, valora. Se retomarmos a anterior citação de La parole, podemos mesmo adiantar que essa valoração é a resultante de determinações objectivas e subjectivas: a palavra, diz o texto, “resume o estado do mundo em função da minha decisão”; poderemos, então, dizer que a palavra humana está marcada de uma radical historicidade e arrasta consigo uma marca ética de liberdade. Em cada momento as pessoas falantes de uma cultura podem tomar a palavra e resumirem o estado do mundo em termos de abertura ou fechamento - para exaltar e reificar o passado, repetindo-o, ou para o desenvolver numa dinâmica de possibilidades futuras, procurando dizer palavras novas. Neste quadro, as línguas dos povos são, diríamos, sistemas valorativos que determinam modos de ver e de dizer. Por isso, a linguagem, como interface humano, tendo com a cultura uma génese recíproca, representa os óculos de que Kant falava, ou seja, o grande transcendental que permite, ao mesmo tempo que condiciona, a nossa instalação na realidade e a marca decisivamente com o traço da interpretação.
Assim sendo, a palavra, o discurso humano, tem um enorme poder na constituição do si mesmo, na sua estrutura identitária, bem como na configuração das visões do mundo, pelo que todas as transformações conceptuais e ideológicas, correspondem, igualmente, a momentos de modificações linguísticas.
[5] Portadoras de uma racionalidade, as línguas humanas determinam modos de viver e agir em comum que postulam quadros de decifração possibilitadores de entendimentos e convergências sociais. É neste espírito que cobra sentido, por exemplo, a imensa cruzada que os estudos sobre as mulheres têm desenvolvido para retirar à linguagem o carácter de universal neutro que algumas posições teóricas lhe querem atribuir, mostrando a importância que tem para o debate feminista a constituição de uma filosofia da linguagem que permita resumir o estado do mundo sobre o assunto em termos de acolhimento de novas formas de analisar e compreender a realidade.

Filosofia e linguagem - Filosofia da linguagem
O texto de Hegel permite-nos ligar mais de perto a questão da Filosofia e das línguas. A citação é retirada do projecto de uma carta a J. H. Voss que foi tradutor de Homero
[6] e, embora se inscreva na perspectiva específica de Hegel de germanização da Filosofia, pode-nos servir como modelo conceptual para pensar, a vários níveis, a problemática da articulação entre fazer e transmitir Filosofia e as línguas nacionais. Destacaria do texto três temas interligados, que se poderão enunciar da seguinte forma: Filosofia e linguagem natural, a prática filosófica e a língua materna e a temática da tradução dos textos filosóficos.
A questão da Filosofia e do filosofar arrasta consigo a da sua expressão, quer ao nível da forma linguística, quer ao nível dos géneros literários. Há uma “forma” própria para decantar o pensar filosófico ou, pelo contrário, o seu exercício tem a mesma latitude da linguagem natural? A genealogia do saber, a busca de fundamentação e a estrutura argumentativa determinam géneros literários específicos da Filosofia?
Esta e outras questões dividiram e dividem ainda hoje as Filosofias e quem delas se ocupa, tendo criado corpos doutrinários que querem instituir a sua legitimidade respectiva. Por seu lado, o telos filosófico, enquanto consciência de si da unidade que se procura, orienta as práticas filosóficas, mesmo subterraneamente, no sentido da figura unificada do todo, intentando para ela o modelo expressivo que corresponda a essa exigência de totalização. É nesta linha que interpreto todos os desejos de uma língua universal que ao longo da História da Filosofia se foram definindo. Todavia, é a mesma História da Filosofia que demonstra o fracasso de tal empreendimento e patenteia como a Filosofia é avessa a formas únicas e a modelos restritos. Diria que nos fica também aqui, como no caso da linguagem, a necessidade de resumir o estado do mundo em função de uma decisão pessoal. Assim o fez Hegel, considerando que qualquer linguagem técnica era redutora e que, posta e realizada em língua alemã, a Filosofia desmascararia todas as “trivialidades” com “a aparência de discursar profundo”.
Tomando como referência o modelo hermenêutico de Ricoeur, que se desenvolve a partir da relação dialógica da Filosofia com a não-Filosofia, esta meditação assenta no axioma de que mais do que poder servir-se da linguagem natural, a prática filosófica deve trabalhar essa linguagem elaborando uma Filosofia da sua natureza e alimentando-se das suas significações e expressões culturais. Esta posição decorre de um reconhecimento duplo: por um lado, que as linguagens artificiais, ao procurarem a univocidade do sentido, impedem que a racionalidade se manifeste nas suas múltiplas facetas e, porque não, contradições; por outro, que é a linguagem natural, como interface humano e cultural, que traz à expressão e ao sentido a experiência ontológica do ser humano, enquanto ser num mundo, situação que faz dela o reservatório logóico que pode alimentar a prática filosófica e constituir-se como seu núcleo temático decisivo.
Esta maneira de ver transporta como corolário uma outra - a de que não há nenhuma língua privilegiada para a Filosofia ou para o filosofar, perspectiva que corta a continuidade com a posição hegeliana
[7] para continuar a defender, com Hegel, que a Filosofia tem de ser falada na língua materna de um povo que “será bárbaro” se não “aprender a conhecer na sua língua” aquilo de que reconheceu a excelência e o sentido.
Diríamos, então, que o desenvolvimento espiritual de uma cultura se poderia medir pela sua capacidade de fazer falar a sua língua e de fazer falar na sua língua os artefactos intelectuais de maior grandeza e sentido. Neste contexto, fazer ou traduzir Filosofia torna-se um imperativo histórico para qualquer língua nacional, por serem actividades que determinam o alargamento e o aprofundamento do seu progresso cultural.
No seu escrito, Sobre a Diversidade da Estruturação das Línguas Humanas e sua Influência sobre o Desenvolvimento Espiritual do Género Humano,
[8] Humboldt articula alguns elementos que permitem a reiteração desta perspectiva. Relevaria desse texto três ideias básicas para o tema em questão:

· a língua é uma actividade e não um produto;
· a língua é um organismo intrinsecamente coerente, cujo desenvolvimento ocorre em função das suas próprias dinâmicas internas;
· a língua é a expressão identitária de um povo.

Distinguindo, em termos de natureza, linguagem e línguas, Humboldt traça um quadro que explicita a sua diferenciação. A linguagem tem um fundo misterioso e inexplicável na sua essência, que lhe confere uma autonomia tal que mais permite concebê-la como um dom do que como uma conquista. Pelo contrário, as línguas têm contornos determinados e dependem das condições específicas do desenvolvimento dos povos. Linguagem e línguas, contudo, manterão entre si ligações secretas, cujos termos talvez se tornem inteligíveis se tomarmos a linguagem, enquanto resposta às recônditas necessidades humanas, como um telos que orienta e impele o desenvolvimento das línguas que, assim concebidas, visariam um estádio que desse satisfação à ânsia humana de domínio da realidade. Diz, igualmente, Humboldt que mesmo nas línguas ditas mais primitivas se encontra um excesso lexical em relação aos instrumentos que seriam necessários para um comércio de mera sobrevivência com o real; esse mais, esse desnecessário para a sobrevivência, poderia advir do tal impulso da linguagem de dentro das suas determinações nas diferentes línguas naturais.
Por outro lado, Humboldt defende, também, que a língua de cada povo radica na sua força espiritual, sendo que ambas, língua e força espiritual, têm um desenvolvimento recíproco. O poder de uma língua está ligado à força criativa do pensamento do povo, e o seu aperfeiçoamento ocorre sempre que se processa um esforço no sentido da expressão de ideias novas e de maior penetração significativa. Contudo, uma vez que cada língua é um organismo, esse aperfeiçoamento decorre de uma dinâmica interior e não pode ser nunca uma mera aquisição ou importação extrínseca. Humboldt caracteriza esta situação dizendo que uma língua apenas pode ser despertada e não ensinada.
Esta posição teórica sublinha a importância de fazer e traduzir Filosofia nas línguas maternas, inscrevendo-se, aliás, na mesma linha reflexiva desenvolvida no primeiro momento deste texto, quando se evidenciou a necessidade de fazer acompanhar qualquer transformação cultural e social da respectiva modificação linguística, de tal modo que fosse instaurada uma nova plataforma de entendimento comunitário. Essa necessidade chamava já a atenção para o pulsar simultâneo do pensamento e da sua expressão, do desenvolvimento e criatividade intelectuais e da palavra que lhes dá figura.
A Filosofia Hermenêutica da linguagem proporciona também pistas reflexivas patenteadoras da legitimidade e da necessidade de fazer e traduzir Filosofia nas diferentes línguas.
Gadamer, na terceira parte do seu Verdade e Método
[9], mostra-o de modo relevante a propósito da temática da tradução, que lhe vai servir de mediação para ilustrar a forma como se realiza o entendimento entre falantes num processo de conversação. O que está em jogo quer na tradução quer na conversação é a coisa mesma que é falada, que é dita, num texto ou numa conversa. Não são as experiências pessoais, as vontades ou as intenções de quem se exprime que se jogam no processo comunicativo e sim aquilo que o discurso traz à linguagem humana e ao seu comércio. Nesta perspectiva, o processo de tradução tem a ver com o trazer à luz, com o iluminar de maneira total (Uberhellung) o sentido de um texto, de modo a poder transportá-lo para uma nova estrutura compreensiva que cada língua representa.[10] Assim sendo, a prática de tradução supõe dois movimentos:

· em primeiro lugar, um trabalho de interpretação - traduzir é, antes de tudo, formular uma interpretação sobre a coisa mesma de que um texto trata e configurar a sua significação, ou seja, concretizá-la numa totalidade compreensiva;
· em segundo lugar, traduzir exige uma tarefa dupla de transposição e integração. Dito de outra maneira: a pessoa que traduz tem de formular em novos termos a significação configurada segundo o quadro linguístico inerente à língua para a qual traduz, de maneira a assegurar a fidelidade ao sentido que emergiu pela interpretação.

Este processo dá origem a duas consequências e à desocultação de uma evidência: por um lado, obriga a língua que traduz a um esforço de diálogo e acolhimento de um outro sistema valorativo da realidade, ao mesmo tempo que pode trazer à luz sistemas compreensivos armazenados pela história da língua e, porventura, remetidos para o esquecimento, pelo não-uso. Em ambos os casos, originar-se-ão, necessariamente, novas organizações internas e novas figuras compreensivas; por outro, revela que a tradução de textos de Filosofia diz respeito a uma actividade eminentemente filosófica, cujo desenvolvimento promove a ampliação do alcance hermenêutico de qualquer língua, deixando nela sedimentações que, por sua vez, podem funcionar como impulsos para novas dinâmicas filosóficas.
Ao avaliar o papel da linguagem no sistema hegeliano, Carmo Ferreira diz o seguinte: “A paciência é a atitude fundamental do filosofar: a escuta tranquila do logos que nasce pro-vocado para essa mesma escuta. [...] A paciência da escuta garante a presença do diálogo”;
[11] aceitarmos as suas palavras, no quadro do que ficou dito, significa reconhecer o imperativo de fazer e traduzir Filosofia em língua materna, para que o diálogo que a escuta supõe se possa desenvolver no interior da língua e, nesse gesto, enriquecer, simultaneamente, a língua e o pensamento.

A questão das filosofias nacionais - prática filosófica adjectivada ou prática filosófica situada?
Como já foi enunciado na introdução, a posição que tem vindo a ser defendida não tem como corolário qualquer perspectiva de uma geo-filosofia
[12].
Obviamente que, configurando a constituição da Filosofia, como ficou referido atrás, a partir do diálogo com a não-filosofia, dando-se a este conceito toda a latitude possível, torna-se inevitável aceitar a existência de alguma ressonância em qualquer prática filosófica da tradição cultural em que se enraíza; mas, convém, também, não esquecer que é a própria tradição filosófica que faz corresponder o acto de filosofar à figura do exilado, do estrangeiro, ou mesmo, do idiota. Há, diríamos, inerente ao processo de filosofar uma certa desterritorialização
[13] que pode, talvez, ter a ver com a dimensão paradoxal da Filosofia que exibe, em simultâneo, a nostalgia de uma terra, de um solo ou lugar originário e o fracasso da sua determinação precisa.
A este respeito, assumirei totalmente a afirmação de Manuel Antunes
[14] quando refere, a propósito da discussão do problema das Filosofias nacionais, que a Filosofia se confronta com uma aporia constitutiva: ou é nacional e, então não é Filosofia, ou é Filosofia e, nesse caso, não pode ser nacional.
Creio, realmente, continuando a situar-me na linha de Manuel Antunes, que a circunstância nacional, que é, sobretudo, uma circunstancialidade cultural e linguística, pode dar ao filosofar “uma certa tonalidade concreta”
[15]; contudo, a análise estritamente filosófica desta questão - e não outro qualquer interesse de carácter estratégico – quer realize uma analítica do corpus teórico que a prática filosófica produziu, quer leve a efeito processos especulativos, terá de renunciar à possibilidade de poder adjectivar a Filosofia.
Por outro lado, penso que hoje, e sem querer apoiar-me na bengala da aldeia global, as Novas Tecnologias da Informação se constituem elas mesmas em força de proximidade cultural e até de universalização de padrões culturais, capazes de criar um espaço virtual de pertença totalmente desterritorializado, o que, certamente, não deixará de trazer novos dados para este debate.

O caso português
Nesta segunda e última parte do trabalho proponho-me, a partir de uma análise muito global do caso português, aplicar a filosofia desenvolvida na primeira parte, para defender, não apenas o interesse cultural e social de ensinar filosofia em língua portuguesa, mas, fundamentalmente, o imperativo histórico e filosófico de o fazer.
[16]

A situação recente do ensino da Filosofia em Portugal
Actualmente, o ensino da Filosofia em Portugal desenvolve-se no ensino secundário e no ensino superior.
Segundo os novos planos de estudos, decorrentes da Reforma Curricular, proveniente da aplicação da Lei nº 46/86 - Lei de Bases do Sistema Educativo -, no ensino secundário, a Filosofia é uma das disciplinas obrigatórias do curriculum dos 10º e 11º anos de escolaridade, onde figura com a designação de Introdução à Filosofia, fazendo parte de um bloco que podemos classificar de formação geral; no 12º ano a disciplina passa a facultativa e toma o nome de Filosofia. Os conteúdos programáticos são completamente distintos num e noutro caso. Enquanto Introdução à Filosofia, o Programa é de cariz temático, comportando seis rubricas que se articulam de modo a constituir um processo de iniciação à filosofia que se desdobra daquilo que pode ser designado como um plano meramente experiencial até a uma dimensão de cariz especulativo
No que concerne à Filosofia, no 12º ano, o Programa tem como centro a obra filosófica, sua análise e comentário, devendo ser trabalhadas, durante o ano lectivo, três obras de uma lista de 23, pertencentes a épocas históricas diferenciadas.
[17]
Desta maneira, todas as pessoas que concluem os estudos secundários em Portugal passaram por uma iniciação filosófica de dois ou três anos.
Quanto ao ensino superior, a licenciatura em Filosofia é ministrada em seis universidades públicas, em duas universidades católicas e em uma privada. Em cinco das universidades públicas e nas católicas, a licenciatura em Filosofia pode revestir a figura terminal de uma especialização em ensino. Esta situação faz com que o caso português do ensino da Filosofia se apresente com uma forte ligação do nível superior ao secundário, uma vez que é este que representa o mercado empregador daquele. Todavia, o facto de haver, em termos profissionais, uma tal dependência entre os dois níveis de ensino, essa ligação nem sempre é assumida, no plano institucional, com as dinâmicas bilaterais que seriam desejáveis.
Neste momento parece-me ser ainda de ressaltar a boa visibilidade nacional adquirida pela investigação filosófica em Portugal no quadro da criação dos Centros de Investigação, cujo financiamento tem proporcionado a possibilidade de desenvolver projectos de investigação em Filosofia, através de equipas, que agrupam docentes das diferentes universidades nacionais e, em alguns casos, também internacionais. É, igualmente, de registar o facto de, em alguns desses Centros, se praticar uma política de abertura no sentido de integrar nos respectivos projectos, docentes oriundos do ensino secundário, situação que, a meu ver, pode contribuir para gerar uma nova forma de os dois níveis de ensino se olharem, se conhecerem e se enriquecerem.
Dentro do mesmo espírito de visibilidade e, porque não, consciência de si, realizaram-se, em Fevereiro passado, as I Jornadas de Filosofia do Ensino Superior onde participaram docentes de todas as Universidades portuguesas com licenciaturas em Filosofia e que, do ponto de vista institucional, permitiram desenhar uma certa figura de Corpo.

O presente e a tradição - uma dinâmica de continuidade e ruptura
Quando em 1759 o Marquês de Pombal expulsou os Jesuitas de Portugal definiu, no plano das determinações legais uma nova situação para o ensino da Filosofia. Com o Alvará de 28/6/1759 cria os Estudos Menores, cujo curriculum comporta, a partir de 1772, a disciplina de Filosofia Racional, disciplina essa indispensável para a admissão no ensino superior. Na mesma altura é criada a Faculdade de Filosofia, em cujo 1º ano se estudaria a disciplina de Filosofia Racional e Moral. Em 1791, por uma carta régia, essa disciplina é eliminada desta Faculdade e transita para o Colégio das Artes. Desta maneira, a partir de 1791, a filosofia passa a ser leccionada, de modo sistemático, em Portugal, apenas ao nível do que pode­remos designar por ensino secundário, até 1859, ano que corresponde à criação do Curso Superior de Letras, em cujo curriculum figurava uma disciplina de Filosofia.
Esta situação, de que gostaria de relevar, antes de tudo, o aspecto positivo de representar que a tradição de ensinar Filosofia em Portugal no secundário é velha de mais de dois séculos, tem, certamente, também em si, uma das raízes responsáveis pelas características da produção filosófica entre nós e por uma dimensão de isolamento e secundaridade que, mais ou menos, acompanharam o ensino da Filosofia naquele nível de escolaridade.
[18]
A reforma pombalina legislou, igualmente, sobre o conteúdo que deveria ter o ensino filosófico, determinando, em 1773 a adopção do Livro de António Genovesi, compêndio que regeria o destino da aprendizagem da Filosofia em Portugal até aos finais do século XIX.
Do ponto de vista propriamente filosófico, o ensino da Filosofia esteve, até quase ao fim do século XIX, ligado ao eclectismo. Todavia, nem todas as investigações nesta área avaliam esse eclectismo do mesmo modo. Por exemplo, para M. M. Carrilho, há uma clara oposição entre a perspectiva ecléctica de setecentos e a de oitocentos, dado que a primeira se caracteriza pelo espírito de inovação e transformação e a segunda pelo envelhecimento e pela conservação.
[19]
Que a docência de Filosofia nos finais do século XIX não deveria satisfazer ninguém parece poder ser provado pela existência do relatório que em 1903 propõe a abolição do ensino de tal disciplina e pela decisão, em 1904, dos próprios docentes que se manifestou no mesmo sentido.
[20] A Filosofia foi contudo mantida, tendo em 1905 surgido um Programa de Ensino que consignava a perspectiva filosófica positivista, perspectiva essa que só viria a ser radicalmente alterada pelo Programa de 1919.
Ao longo de todo o século XX, os Programas de Filosofia sofreram variadíssimas alterações e adaptações, mantendo-se, todavia, a partir de 1931 até à reformulação dos cursos complementares em 1978, uma divisão clássica nesses Programas que consistia no facto de todo o 1º ano de estudo da Filosofia ser preenchido com temas da Psicologia. Uma outra linha de continuidade a assinalar nos Programas é a permanência e o peso que as rubricas ligadas à lógica sempre neles tiveram. De particular relevo me parece ser o registo de indicações pedagógicas e metodológicas contidas nos Programas que apontavam a necessidade e por vezes a obrigatoriedade de serem lidas obras filosóficas na aprendizagem da Filosofia.
[21] Creio que esta tradição que reputo, a todos os títulos, salutar, legitima o formato do actual Programa de 12º ano, composto, como já disse, pelo trabalho sobre obras filosóficas.

A importância cultural de ensinar Filosofia em português
Na primeira parte desta reflexão ficaram configuradas uma concepção de Linguagem e uma concepção de Filosofia convergindo no sentido de legitimar a importância de ensinar, fazer e traduzir Filosofia em qualquer língua materna. Operacionalizando essa posição teórica em função do caso português queria mostrar essa importância, em virtude de motivos culturais e filosóficos.
É axioma de partida desta ilustração a afirmação de que não se pode ensinar Filosofia sem fazer Filosofia e de que uma e outra actividade supõem, além de outras práticas, o trabalho de verter em língua materna os textos filosóficos originários de outras línguas.
Que especificidade pode ter o caso português?
No trabalho que Éduard Fey desenvolveu sobre o Ensino da Filosofia em Portugal surgem três notas que me parecem dignas de registo e reflexão; a primeira diz respeito a um texto de Adolfo Coelho em que este autor reconhece a falta de interesse que em Portugal se tinha pela Filosofia, dado não haver raizes tradicionais que alimentassem o seu desenvolvimento em virtude dos obstáculos que sufocavam “toda a tentativa de emancipação do pensamento”;
[22] a segunda nota que gostaria de salientar refere-se à conferência de Cabral de Moncada na universidade de Berlim em 1938,[23] quando expressa a sua convicção sobre o carácter ecléctico do espírito português a quem conviria sobretudo a “escola da filosofia intermédia”; a última referência corresponde a uma observação do próprio autor do estudo que diz o seguinte: “É característica do pensamento filosófico em Portugal a definição fluente dos conceitos [...] uma corrente de orientação ontológica que poderá, talvez, designar-se como “heracliteana””.[24] Para corroborar a sua asserção, Fey recorre a Antero de Quental e à sua obra Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, a que, afirma, falta o “esforço do conceito”.
Independentemente de se estar ou não de acordo com estas afirmações e mesmo com a sua pertinência, cabe, todavia, perguntar, o que é que cultural e historicamente as alimenta e que significação filosófica poderão ter. Creio que elas relevam de um olhar sobre a nossa situação cultural que estruturaria do seguinte modo:

· por um lado, a existência de um reduzido número de obras originais canonicamente consignadas como filosóficas, bem como a constatação de uma certa retórica de síntese ou de orientação pragmática de alguns textos filosóficos nacionais;
· por outro, o reconhecimento da grande densidade reflexiva transportada pela literatura portuguesa, que faz dela uma poderosa caixa de ressonância especulativa.

Que pensar?
Vamo-nos apoiar numa posição essencialista, sempre ligada ao peso do determinismo, seja qual for a figura que assuma, e considerar que há atavismos inerentes quer à língua quer ao espírito portugueses? Ou, pelo contrário, vamos olhar para a nossa tradição cultural e aceitar uma dinâ­mica histórica criadora de circunstâncias inibidoras do desenvolvimento de um determinado tipo de trabalho reflexivo e facilitadoras ou mesmo impulsionadoras de outros?
Seja qual for a resposta pela qual se optar, uma coisa me aparece como óbvia e imperiosa - a necessidade de fazer falar a Filosofia em língua portuguesa e de desenvolver uma prática filosófica territorialmente situada que subsuma conceptualmente o seu espólio cultural e traga ao plano especulativo o imenso reservatório constituído pelas suas metáforas literárias e poéticas.
Sendo que hoje na Europa a questão das identidades culturais assume uma relevância especial, torna-se premente que um país com uma tradição cultural como a portuguesa, se construa identitariamente também em termos filosóficos e, longe, muito longe, de qualquer pretensão nacionalista ou particularista, dê corpo às figuras universais do ser e do sentido, através de um diálogo prospectivo com a sua cultura que lhe permita dizer palavras próprias e “novas” que sejam, simultaneamente, universais e singulares.Diz P. Ricoeur num dos muitos textos em que se bate pela abertura temática da Filosofia, no quadro, contudo, da sua autonomia metodológica: “A filosofia não começa nada absolutamente: conduzida (portée) pela não-filosofia, ela vive da substância daquilo que já foi compreendido sem ser reflectido”.
[25] Assim sendo, importa ensinar-fazer-traduzir Filosofia em língua materna para que esses movimentos e essas acções representem outros tantos trabalhos de linguagem e sobre ela, de tal modo que fecundem uma real prática filosófica em expressão portuguesa.
Notas
[1] G. Gusdorf, La parole, Paris, PUF, 1990 ( 1ª edição, 1952), p 21.
[2] G.W.F. Hegel, Briefe von und an Hegel, Hamburg, Ed. Hoffmeister, v. I , pp 99-100, Trad. Francesa de Jean Carrère, Correspondance, Paris, Gallimard, 1962, p. 96. A tradução que aqui se apresenta é a de M. J. do Carmo Ferreira, Hegel em Jena. A razão da Liberdade ou a justificação da Filosofia, Lisboa, 1981, Dissertação de Doutoramento, pp. 534-535.
[3] G. Gusdorf, op. cit., p. 13.
[4] Ibidem, p. 12.
[5] Cf. Ibidem, especialmente, pp. 21-36.
[6] Cf. M. J. do Carmo Ferreira, op. cit., p. 534.
[7] Cf. Ibidem, pp. 537-538, onde o autor mostra que, para Hegel, havia uma relação privilegiada entre a língua alemã e o pensamento especulativo.
[8] Cf. J.M. Justo (org. e int.), Ergon ou Energueia, Filosofia da Linguagem na Alemanha, secs.XVIII e XIX, Lisboa, Materiais Críticos, 1986, pp. 107-135.
[9] H-G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tubingen, 1960, Trad. Francesa de Étienne Sacre com revisão de Paul Ricoeur, feita sobre o texto da 2ª edição, 1965, Vérité et Méthode, Les grandes lignes d’une herméneutique philosophique, Paris, Seuil, 1976. A referência de página dirá respeito a esta edição.
[10] Cf. Ibidem, p. 243.
[11] M. J. do Carmo Ferreira, op. cit., p. 579.
[12] A minha posição sobre esta questão ficou muito enriquecida pela hipótese que tive de acompanhar o Seminário Filosofia,Cultura, Ciência e Linguagem, orientado pelo Prof. Dr. J. Cerqueira Gonçalves, na Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 1996/97, em função da excelente qualidade de trabalho que se desenvolveu, quer a partir da orientação do Seminário, quer dos trabalhos apresentados pelo(a)s participantes.
[13] Ver sobre este tema a obra de G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, Paris, Minuit, 1991.
[14] M. Antunes, “Haverá filosofias nacionais?”, in Brotéria. Revista Contemporânea de cultura, Lisboa, 1957, vol. LXIV, nº 5, pp. 535-565. Pode ser interessante ler o comentário à posição de Manuel Antunes em: F. da Gama Caeiro, “A noção de Filosofia na obra de Manuel Antunes: Em torno ao problema das Filosofias Nacionais”, in Ao encontro da palavra. Homenagem a Manuel Antunes, Lisboa, Faculdade de Letras, 1985, pp. 9-42.
[15] M. Antunes, op. cit., p. 561.
[16] A análise que vou desenvolver tem como referência os seguintes documentos textuais: A M. M. Carrilho, Razão e transmissão da Filosofia, Lisboa, IN-CM, 1987; E. Fey, “Ensino da Filosofia em Portugal”, in Brotéria. Cultura e informação, Lisboa, 1978, vol. 107 (nº 1, pp. 19-36; nºs 2-3, pp. 191-208; nº4, pp. 278-295; nº 5, pp. 419-454); Fernanda Henriques e Manuela Bastos (org.), Os actuais programas de Filosofia do Secundário – Balanço e perspectivas, Lisboa, Centro de Fil. Da U.L. – Dep. Do Ens. Sec., 1998; José Trindade Santos, Da Filosofia no Liceu, Lisboa, Seara Nova, 1974; Idem, Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, 1995, nº 51, número especial dedicado ao Ensino da Filosofia; Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal, Lisboa, Gulbenkian, 1986.
[17] Época antiga: Da Natureza, de Parménides; Górgias, de Platão; Fédon, de Platão; Categorias, de Aristóteles. Época medieval: O Mestre, de S. Agostinho; Proslogion, de S. Anselmo; O Ser e a Essência, de S. Tomás; Redução da Ciência à Teologia, de S. Boaventura. Época moderna: Princípios da Filosofia, de Descartes; Carta sobre a Tolerância, de John Locke; Discurso de Metafísica, de Leibniz; Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Kant. Época contemporânea: Introdução à História da Filosofia, de Hegel; As tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, de Antero de Quental; Crise da Cultura Ocidental, de Husserl; A Origem da Tragédia, de Nietzsche; Da certeza, de L. Wittgenstein; Elogio da Filosofia, de Merleau Ponty; “Os problemas da Filosofia”, de B. Russell; “A problemática da Saudade”, de Joaquim Carvalho; Da Essência da Verdade, de Heidegger; Teoria da Interpretação, de Paul Ricoeur.
[18] E. Fey, op. cit., pp. 21-26.
[19] Sobre isto diz o referido autor na obra citada na nota 16: “Enquanto o eclectismo do sec. XVIII visava acolher e introduzir novidades e um espírito e procedimentos inovadores, criadores de novo, o do sec. XIX dirige-se precisamente no sentido oposto, procurando instituir uma filosofia condensada num certo número de verdades indubitáveis, indiscutíveis, socialmente úteis e escolarmente transmissíveis”. p. 242.
[20] Trata-se do relatório de Marnoco e Sousa. Cf. E. Fey, op. cit., pp. 289-290.
[21] É, por ex., o caso do programa de 1919.
[22] Op. cit., p. 23.
[23] Ibidem, p. 192.
[24] Ibidem, p. 19.
[25] P. Ricoeur, Finitude et culpabilité I L’homme faillible, Paris, Aubier-Montaigne, 1960, p. 24.

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