João Lupi (UFSC)
Um antagonismo complementar
No item 3 da Introdução a Giordano Bruno, na edição da Gulbenkian do Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, Victor Matos e Sá traça um breve paralelo entre Bruno e Francisco Suárez: nascidos no mesmo ano de 1548, ambos adeptos da liberdade de pensamento – mas com diretrizes diferentes – inseridos em contextos culturais distintos mas definidos dentro do mesmo limite entre o humanismo renascentista e o barroco, vivendo em tensões políticas e religiosas marcadas pelos mesmos contrastes (mas com posições pessoais quase antagônicas), objeto de atenções opostas pelo mesmo Cardeal Borghese – o Papa Paulo V – ambos mediadores de tradições de pensamento antigas, mas orientando-se com princípios metafísicos e perspectivas cosmológicas incompatíveis...
Este paralelismo, certamente paradoxal, serve a Victor Matos e Sá para apresentar as duas filosofias como “dialeticamente complementares” o que significa que, estando em tantos aspetos em oposição, mas podendo definir-se essas oposições por estarem dentro de um mesmo contexto de impulsos intelectuais e de conflitos de toda a ordem, o entendimento de uma ajuda a compreender a outra.
É com esta intenção – a de interpretar o aristotelismo da época através de um seu notável opositor - que vamos explorar certas opiniões de Giordano Bruno, começando por recordar as invectivas e críticas – por vezes verdadeiras explosões de furor demolidor – contra os peripatéticos e contra o próprio Aristóteles.
O ataque
Comecemos por esse estilo demolidor, para entender o seu alcance. Uma das noções fundamentais para argumentar a respeito da infinitude do universo é a de lugar; e sobre a sua definição por Aristóteles diz Bruno que ela é inútil, confusa, contraditória em si mesma, e enfim ridícula, “prejudicando a dignidade da natureza divina e universal” (IUM d. 1; P:17; G:30-31). O problema do lugar tem a ver com o vácuo ou vazio, e neste ponto ele diz que Aristóteles é um sofista que faz castelos no ar, considerações superficiais nas quais só acreditam aqueles que não têm juízo nenhum (IUM d. 2, P: 29; G:55 e 57) e assim ele perverteu toda a especulação natural – note-se que o termo pejorativo sofista aplicado a Aristóteles aparece em muitas passagens.
Sobre o fato de Aristóteles não admitir a existência de um corpo infinito diz Bruno que as idéias dele são tão pobres que parece um mendigo (IUM d.2; P:30; G:58) e tão contraditório que o que ele (o adversário) afirma é mais que estupidez, é uma irracionalidade – em outras passagens e contextos Bruno acusa várias vezes Aristóteles de pobreza de espírito (CPU d. 4; 111). E sobre a mesma questão, na relação entre finito e infinito, diz textualmente:
“É impossível encontrar outro, que com título de filósofo, imaginasse hipóteses mais vãs e criasse posições tão estúpidas e contrárias, para dar lugar a tanta leviandade como se vê nos raciocínios dele”. (IUM, P:31; G: 60)
Pouco depois completa com sarcasmo: o argumento de Aristóteles acerca da gravidade e da leveza “é um dos frutos mais lindos da árvore da estúpida ignorância” (ib. P:32; G:62). “Leviandade”, continua Giordano, e “palavras jogadas ao vento, é o que ele diz sobre a impossibilidade do infinito grave – é até uma vergonha falar disto” (ib. P:33; G: 64).
“Aristóteles não respeita os outros filósofos, desconsidera-os, e é com eles injurioso e ambicioso (porque quer estar acima de todos); e no entanto é tão vulgar que só tem boas idéias quando as copia de outros.” (CPU d. 3, 83)
Neste ponto Giordano Bruno chega a ser cruel:
“Aristóteles, como sofista muito seco, árido e pobre, com malignas explicações e com afirmações sem fundamento, quis perverter as sentenças dos antigos e opor-se à verdade, talvez não tanto por sua tacanhez de intelecto, mas por inveja e ambição”. (CPU d. 5, 122)
Enfim, “coitado do Aristóteles, bem que ele tentou compreender o mundo, mas não o conseguiu” (CPU conclusão).
Desta breve resenha de críticas e acusações podemos já tirar três diretrizes:
1. Que Giordano Bruno não se volta só contra a degeneração e corrupção das doutrinas aristotélicas entre os peripatéticos seus contemporâneos, mas contra os próprios fundamentos da doutrina do mesmo Aristóteles; de fato, ao ler os insultos que em muitas partes Giordano faz aos filósofos do seu tempo que ele tacha de enfatuados e superficiais somos tentados a julgar que a crítica é circunstancial, ao modo de os peripatéticos se comportarem; essa crítica existe sim, mas o que fica claro desde o início é que a raiz da incapacidade das doutrinas universitárias e acadêmicas contra as quais ele se volta, está, no entender de Giordano, na incapacidade do seu próprio inspirador, Aristóteles, que é pobre de idéias, vazio, leviano, mal intencionado, estúpido, confuso, e contraditório.
2. Este vocabulário agressivo, contundente, e panfletário não deve também nos enganar, levando-nos a supor que seu autor é apenas um demolidor infatigável : pelo contrário, Bruno não só cria, em cada diálogo, doutrinas extremamente inovadoras, interessantes e coerentes, como arrasa as posições opostas com argumentos bem construídos, articulados com pleno conhecimento das doutrinas que está atacando – como é nossa intenção demonstrar.
3. A artilharia de Bruno dirige-se contra a metafísica aristotélica, e particularmente contra as noções de substância, causa, ato e potência, e matéria e forma; mas também contra a física e sobretudo contra os conceitos de lugar, vácuo ou vazio, e contra a teoria da impossibilidade do infinito material e da pluralidade dos mundos – mas de passagem destrói outros conceitos de menos importância para o que pretende: peso, gravidade, movimento, dimensão...
Vejamos, uma por uma, as principais argumentações contra a física aristotélica, para depois terminar com algumas interpretações.
O lugar
O ponto de partida de Bruno a respeito do que seja lugar e como refutá-lo em Aristóteles é a inconveniência da definição aristotélica de lugar na sua aplicação ao mundo, inconveniência que se caracteriza por ser uma definição abstrata, matemática, que não é adequada a uma realidade física:
“A definição de lugar, proposta por Aristóteles, não convém ao primeiro, maior e mais comum dos lugares. Nem vale tomar a superfície próxima e imediata ao conteúdo, e outras leviandades que fazem do lugar uma coisa matemática e não física”. (IUM, Argumento do 1º Diálogo, 5º)
Mais adiante explica-se com maior desenvolvimento, dizendo, em síntese, que se o lugar é o estar contido em outra coisa, ele se definiria pela superfície do continente em contato com o contido, deste modo:
“Se o mundo é finito, e fora do mundo está o nada, pergunto a vocês: onde se encontra o mundo? Onde o universo? Aristóteles responde: em si mesmo. O convexo do primeiro céu é lugar universal; sendo ele o que tudo contém, não é contido por outro, porque o lugar não é nada a não ser superfície e extremidade de um corpo continente; do que se deduz que tudo o que não possui corpo continente não possui lugar”. (IUM, Diálogo 1; P:16; G: 29)
Consequentemente, conclui Giordano, se o lugar é apenas o estar contido em alguma coisa, e fora do mundo não existe nada, o mundo está contido no nada, ou seja, não se encontra, não está em lugar nenhum, não existe. A definição de Aristóteles é pois em si mesma portadora de um absurdo, se se tem em conta a realidade física do mundo e não a sua abstração.
Porém, se para evitar esta contradição, Aristóteles afirma que fora do mundo ou para além do mundo está o ser intelectual e divino, cai em nova contradição: a de que uma coisa física e com dimensões seja contida por um ser incorpóreo; além disso seria impróprio dizer que a função da divindade é preencher o vazio. Aristóteles responderia, continua Giordano Bruno (isto é, Filóteo) que onde não há nada também não há lugar, e portanto não é preciso pensar que o mundo esteja em algum lugar que não seja ele mesmo; mas as razões que ele dá para essa afirmação parecem desculpas e fantasias, meras palavras que não satisfazem (ib. G:30).
Ou seja, para Giordano, Aristóteles afirma gratuitamente uma teoria que não pode provar, cujos argumentos são contraditórios, e que levaria “a menosprezar a dignidade da natureza divina e universal” (ib). E acrescenta o argumento tirado de Lucrécio (que cita na Introdução): “se estendesse a mão para fora do mundo ela não estaria em nenhum lugar e portanto não existiria” (ib, P:17; G:30).
Há ainda uma outra contradição, na noção aristotélica de lugar: se o lugar não é espaço, mas a superfície do corpo continente (Física IV) então das duas uma: ou o mundo tem, fora dele, alguma coisa que o contém (e cuja superfície é o seu lugar) ou não tem, e nesse caso está em lugar nenhum: “eis como aquela definição é vã, confusa, e destruidora de si mesma”. (ib, P:17; G:31)
O vácuo
Empregando a própria argumentação de Aristóteles, Bruno afirma que, se o universo tem limites físicos que o contêm, então para lá deles não há nada, ou seja, há o vazio, o vácuo. “Não se pode fugir ao vácuo supondo o mundo finito, se o vácuo é aquilo em que nada existe – não podemos fugir ao vácuo se quisermos admitir o universo finito” (IUM, Argumento do 1º Diálogo, 6º, repetido no 1º Diálogo, P:17; G:32). Ora o vácuo é, se existe, a incapacidade de existência seja do que for, o que Bruno explica deste modo:
“Onde não existe nada não existe diferença alguma; onde não existe diferença não existem diferentes aptidões; e provavelmente não existe aptidão alguma onde não existe coisa alguma [...] Sendo inane [inerte] não possui aptidão alguma para receber e muito menos deve ter para repelir o mundo” (ib. Diálogo 1, P:17; G:32).
Assim, na concepção aristotélica o vácuo seria a incapacidade de existência de qualquer coisa – não haveria aí nem lugar nem espaço, nem sequer se poderia dizer dele: “aí”. Giordano considera tal concepção de vácuo contraditória e irracional, resumindo essa posição nesta frase: “só ele define o vácuo como sendo o nada, no qual nada está nem nada pode estar” (ib. 2º Diálogo, P:29; G:55). E assim, conclui, “esse sofista ao eliminar o nome pensa ter eliminado a coisa mesma”.
Finito x infinito
Quando demonstra a possibilidade da existência real do corpo infinito diz Bruno que “se torna mais evidente a inconsistência dos argumentos de Aristóteles que, para atacar as posições daqueles que consideram o mundo infinito, pressupõe o meio e a circunferência, pretendendo que a terra ocupe o centro no finito ou no infinito” (IUM Argumento do 2º Diálogo, 4º). Ora se o universo for considerado infinito, não há nem meio nem circunferência nem nada que ocupe o centro, porque o centro está em toda a parte. Portanto, diz Bruno, Aristóteles tem uma concepção errada de infinito material – por considerá-la impossível.
Isto se prova por outros meios, a saber: a questão das partes do infinito. O infinito não tem partes finitas, porque a composição de um conjunto tem que ser proporcional (adequada) à consideração desse conjunto; por isso a especulação de Aristóteles “procede por fundamentos que não são naturais, querendo juntar todas as partes do infinito, sendo que o infinito não pode possuir partes” (ib. Diálogo 2, P: 38). Porque as partes de dimensão finita “são apenas partes do finito e somente a ele podem ser todas proporcionais” e por isso não podem ser consideradas partes do infinito “com o qual não têm proporção” (ib. P: 39).
Segue-se ainda que a demonstração de Aristóteles também não é correta, porque “do fato de haver inúmeras partes no infinito e de entre si se sofrerem e agirem, não se segue que cada uma das ações e paixões (recepções da ação) seja infinita, pois se dão entre elementos finitos” (ib, P:39). De modo semelhante “o finito não é absorvido pelo infinito, porque a ação e a recepção da ação se dão entre partes próximas, e não no infinito como um todo” (ib. p. 40).
Enfim, toda a demonstração de Aristóteles se volta para provar que o universo não pode ser infinito, e daí ele concluir pela posição mais razoável, a saber, que nada existe para além do universo porque não pode haver lugar onde não há corpo sensível, o que Giordano considera “razões grosseiras” (ib. P 40).
E mais duas suposições aristotélicas são impossíveis nesta sequência de argumentos: a de que os sete céus são entre si equidistantes, porque essa suposição depende da “falsíssima suposição da fixidez da terra; contra o que brada toda a natureza, clama toda a razão e sentencia todo intelecto reto e bem informado” (ib. P 41). E a outra é a afirmação de “que o universo acaba e termina onde finda a experiência dos nossos sentidos”; ora, diz Bruno, os nossos sentidos se enganam, acham próxima a estrela que se vê melhor, e longínqua a que se vê menos, quando sabemos que pode ser o contrário. Portanto a razão desmente os sentidos, e é possível supor que o universo alcança para além do que os sentidos conseguem ver.
Pluralidade dos mundos
“As teorias de Aristóteles exigem que, se houvesse vários mundos, eles tivessem que convergir para um só mundo, e portanto é um só o mundo que existe” (IUM, d.4; P 62-63). Mas nós, diz Giordano:
“Afirmamos a existência de verdadeira semelhança entre todos os astros, entre todos os mundos, e da mesma organização desta terra e das outras”.
É o princípio, desde então aceito pela astrofísica, da homogeneidade do universo quanto às leis que o governam e quanto à identidade de composição da matéria. Contudo, neste ponto Giordano não critica as razões de Aristóteles, apenas lhe contrapõe as suas começando por dizer que Aristóteles “considerou o mundo segundo uma significação imprópria, criando um universo fantástico e corpóreo” (ib.62). Só mais adiante (68) surge algum tipo de refutação: o movimento dos corpos simples dirige-se, segundo Aristóteles, para um mesmo lugar – é certo, responde Giordano, para um lugar da mesma espécie, sim, mas não para um único lugar – “o mesmo lugar particular e individual”, pois, como já dissera antes (63) esta terra permanece no seu lugar como as outras terras permanecem no lugar delas, e assim “como não é conveniente que esta se mova para o lugar das outras, não é tampouco conveniente que as outras se movam para o lugar desta”.
Quanto à objeção de Aristóteles – que, se houvesse muitos mundos, haveria muitos centros de mundo, e que isso seria impossível pois teriam que coincidir – responde Giordano que “ela não tem fundamento, pois não há contradição em que cada mundo tenha o seu próprio centro de referência orgânico”; e compara com os animais, que têm vários centros de referência, que são cada um dos órgãos importantes. Assim, no conjunto orgânico cada parte exerce uma função de referência, e deste mesmo modo se organiza o universo; contra esta teoria, continua Bruno, nada valem as teorias de Aristóteles: pelo contrário, “o intelecto se ofende” contra as “inépcias relatadas” por ele (69).
A questão do equilíbrio e proporção entre os mundos tem outras consequências: Bruno afirma que “assim como cada um dos infinitos mundos é finito e possui região finita assim seus movimentos são convenientes ou proporcionais às suas partes, o que implica, portanto, que todos os movimentos sejam finitos [...] e que existam infinitos mundos” (70). E ainda ridiculariza Aristóteles quando diz que “se argumentarmos com ele não só chegaremos à conclusão de que o universo é finito e o mundo é um só mas também que os macacos nascem sem rabo [...] e os morcegos produzem lã”. Outra consequência diz respeito à velocidade: “dado que a velocidade é proporcional à distância, se o mundo fosse infinito e houvesse distâncias infinitas as velocidades seriam infinitas” (69). Parece que Bruno deduz de Aristóteles que nesse caso a grandeza infinita se anularia. Ora, responde ele, “os movimentos são locais e portanto são locais as distâncias, e como cada corpo vai para o seu lugar natural próximo, a velocidade é finita e proporcional”.
Em resumo, num universo composto de infinitos mundos as leis da física de Aristóteles não valem.
O modo de contra-argumentar
Quando conclui, no quinto diálogo (IUM) refutando os doze argumentos aristotélicos de Albertino, Giordano começa por reafirmar que:
“Não se deve procurar se fora do céu existe lugar, vácuo, ou tempo; porque único é o lugar geral, único o espaço imenso (...) onde existem inumeráveis e infinitos globos(...). Este espaço nós o chamamos infinito, porque não existe razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que deva limitá-lo”.
E logo adiante Albertino acrescenta que a verdade exposta por Giordano Bruno “não é até agora menos verosímil do que seu contraditório” (IUM, P 82).
Podemos assim indicar três movimentos no raciocínio de Giordano:
1. Mostra que os argumentos de Aristóteles são contraditórios em si mesmos e não se sustentam;
2. Apresenta os seus como mais razoáveis e bem construídos;
3. Ao mesmo tempo sabe que não tem como demonstrar cabalmente seu raciocínio, tal como Aristóteles não podia provar empiricamente os seus acerca da mecânica celeste; mas Bruno quer que se aceite que os seus argumentos são mais verosímeis, mais conformes à razão, do que os do adversário.
Além disso é preciso atender ao conjunto dos argumentos: não é cada um por si só que se sustenta sozinho, mas é preciso, como diz Albertino, entender o todo (ib. P 84) “porque uma dúvida leva a outra e uma verdade demonstra a outra”. E o mesmo Albertino acrescenta mais adiante (ib. P 86): “como você me mostrou serem inconvenientes as coisas que eu julgava necessárias, todas as outras que pela mesma ou semelhante razão considero necessárias, tornam-se suspeitas”. Podemos perceber, diz Albertino no final, que não temos um conhecimento completo, mas o que podemos vislumbrar é suficiente para começar uma nova visão de mundo “afim de que, com a luz de semelhante contemplação, a passos mais seguros, possamos proceder rumo ao conhecimento da natureza” (ib. final, P 91).
É o mesmo princípio da verosimilhança aplicado à visão geral do mundo: ela é mais aceitável mesmo que cada argumento não possa ser completamente provado; mas há uma concepção global que dá consistência a cada parte. Ou como diz Filóteo: “porque como de um erro deriva outro, assim de uma verdade descoberta sucede outra” (ib. P 85). Afinal, Aristóteles não está errado, só está menos certo dentro das probabilidades de certeza – o que, é claro, Bruno evita dizer, embora pareça estar presente no seu modo de argumentar.
Da mesma forma, os princípios que presidem à organização do mundo não são demonstráveis, mas apenas mais explicativos, como aquele de Aristóteles que Bruno considera “extremamente falso: que os contrários estejam afastados ao máximo” (ib. P 85). ao qual ele opõe o princípio recebido de Nicolau de Cusa: “em todas as coisas os contrários vêm naturalmente juntos e unidos, não consistindo o universo (...) senão em tal conjunção e união”. Giordano Bruno argumenta e afirma “que a proposição peripatética é inconstante, quer examinada segundo a verdade da natureza, quer medida pelos próprios princípios e fundamentos”; mas o que é interessante é que ele sabe que a sua refutação é racional e não empiricamente provada, como se estivesse pedindo que alguém fizesse a refutação empírica de Aristóteles. Aliás no quinto diálogo Giordano já não refuta os argumentos de Aristóteles expostos por Albertino, apenas lhes contrapõe as suas teorias como sendo mais aceitáveis.
Quando, noutro diálogo (CPU 2, p.55) Dicson diz: “para que uma coisa seja verdadeira não basta que se possa defendê-la, pois é preciso também poder prová-la” depois de muito esforço argumentativo Teófilo concorda que não deu provas nem respondeu a dúvidas, e só pode contra-argumentar com uma comparação.
Anexo: algumas opiniões correntes acerca de Giordano Bruno
“Italian hermetic thinker”. Chambers Biographical Dictionary, ed. Melanie Parry, Edimburgo/Nova Iorque 1997 (1897) p.287. Diz ainda: “his pantheistic philosophy ─ whereby God animated the whole of creation as world-soul”.
“Italian philosopher, opponent of scholasticism and the Roman Catholic Church, fervent advocate of the materialist world outlook, which he conceived in the form of pantheism [...]. Consistently identifying an infinite deity with nature [...] maintaining the infinity of nature itself [...] held that matter was an active self-moving substance, and man and his consciousness part of nature, which was a single whole”.
Rosenthal M., Yudin P., A Dictionary of Philosophy. Trad.Richard R. Dixon e Murad Saifulin. Moscou, Progress Publishers, 1967, p. 59.
“Arremeteu acremente contra todas as doutrinas da fé cristã; batalhou com grande energia pela liberdade da filosofia e da ciência, ridicularizou mordazmente a corrupção escolástica. Bruno refutava os dogmas do cristianismo, tais como a Santíssima Trindade e o sacramento da comunhão.”
Shcheglov. Compêndio de História da Filosofia. Rio de Janeiro, Ed.Vitória, 1945, p. 69.
E o mesmo autor continua (69-70): “Bruno, filósofo das forças sociais progressistas é cheio de otimismo. Em sua unidade íntegra e seu aspecto infinito o mundo não conhece o mal nem a morte; é perfeito e harmonioso.”
Obras do autor
. Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos. Trad. Helda Barraco e Nestor Deola. São Paulo, Nova Cultural, Os Pensadores, 1988.
. Acerca do infinito, do universo e dos mundos. Intr. Victor Matos e Sá. Trad. notas, bibl. Aura Montenegro. Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 3.a ed. 1984.
. A Causa, o princípio e o uno. Trad. Attilio Cancian. São Paulo, Nova Stella/Instituto Italo-Brasileiro, 1988.
Comentadores
. Brian P Copenhaver, Charles B. Schmitt. Renaissance Philosophy. Oxford/Nova Iorque, Oxford U.P., 1992, 285-303.
. Frederick Copleston, A History of Philosophy. Vol.III “Ockham to Suárez”.
Birmingham/Nova Iorque, Search Press/Paulist Press, 1983 (1953) 258-263.
. Júlio Fragata. História da Filosofia Moderna. Faculdade de filosofia de Braga, 1968/69, mimeografado, 34-46.
. Guillermo Fraile. Historia de la Filosofia. VolII. Madrid, BAC, 1978, 2ª ed, 181-197.
. Péricles Prade. Paracelso & Giordano Bruno. Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1994, 37-76.
. Victor Matos e Sá. Introdução a Giordano Bruno, na edição de Acerca do Infinito da Gulbenkian, V – L II e 119 notas.
. Hélène Védrine. As Filosofias do Renascimento. Trad. Marina Alberty Mem Martins, Europa-América, 2.a ed, s.d., 77-88 (PUF 1971).
Bibliografia citada nos comentários, mas não disponível:
. M. Ciliberto. Lessico di Giordano Bruno. Roma, 1979.
. Giovanni Gentile. Giuordano Bruno e il pensiero del rinascimento 1991 (reed).
. A. Insegno. Cosmologia e filosofia nel pensiero di Giordano Bruno, Florença, 1978.
. P.-H. Michel. La cosmologie de Giordano Bruno. Paris, 1962.
. Hélène Védrine. La conception de nature chez Giordano Bruno. Paris, 1967.
Siglas:
IUM: Sobre o infinito, o universo e os mundos
P: na tradução de Os Pensadores
G: na tradução da Gulbenkian
CPU: A Causa, o princípio e o uno
Um antagonismo complementar
No item 3 da Introdução a Giordano Bruno, na edição da Gulbenkian do Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, Victor Matos e Sá traça um breve paralelo entre Bruno e Francisco Suárez: nascidos no mesmo ano de 1548, ambos adeptos da liberdade de pensamento – mas com diretrizes diferentes – inseridos em contextos culturais distintos mas definidos dentro do mesmo limite entre o humanismo renascentista e o barroco, vivendo em tensões políticas e religiosas marcadas pelos mesmos contrastes (mas com posições pessoais quase antagônicas), objeto de atenções opostas pelo mesmo Cardeal Borghese – o Papa Paulo V – ambos mediadores de tradições de pensamento antigas, mas orientando-se com princípios metafísicos e perspectivas cosmológicas incompatíveis...
Este paralelismo, certamente paradoxal, serve a Victor Matos e Sá para apresentar as duas filosofias como “dialeticamente complementares” o que significa que, estando em tantos aspetos em oposição, mas podendo definir-se essas oposições por estarem dentro de um mesmo contexto de impulsos intelectuais e de conflitos de toda a ordem, o entendimento de uma ajuda a compreender a outra.
É com esta intenção – a de interpretar o aristotelismo da época através de um seu notável opositor - que vamos explorar certas opiniões de Giordano Bruno, começando por recordar as invectivas e críticas – por vezes verdadeiras explosões de furor demolidor – contra os peripatéticos e contra o próprio Aristóteles.
O ataque
Comecemos por esse estilo demolidor, para entender o seu alcance. Uma das noções fundamentais para argumentar a respeito da infinitude do universo é a de lugar; e sobre a sua definição por Aristóteles diz Bruno que ela é inútil, confusa, contraditória em si mesma, e enfim ridícula, “prejudicando a dignidade da natureza divina e universal” (IUM d. 1; P:17; G:30-31). O problema do lugar tem a ver com o vácuo ou vazio, e neste ponto ele diz que Aristóteles é um sofista que faz castelos no ar, considerações superficiais nas quais só acreditam aqueles que não têm juízo nenhum (IUM d. 2, P: 29; G:55 e 57) e assim ele perverteu toda a especulação natural – note-se que o termo pejorativo sofista aplicado a Aristóteles aparece em muitas passagens.
Sobre o fato de Aristóteles não admitir a existência de um corpo infinito diz Bruno que as idéias dele são tão pobres que parece um mendigo (IUM d.2; P:30; G:58) e tão contraditório que o que ele (o adversário) afirma é mais que estupidez, é uma irracionalidade – em outras passagens e contextos Bruno acusa várias vezes Aristóteles de pobreza de espírito (CPU d. 4; 111). E sobre a mesma questão, na relação entre finito e infinito, diz textualmente:
“É impossível encontrar outro, que com título de filósofo, imaginasse hipóteses mais vãs e criasse posições tão estúpidas e contrárias, para dar lugar a tanta leviandade como se vê nos raciocínios dele”. (IUM, P:31; G: 60)
Pouco depois completa com sarcasmo: o argumento de Aristóteles acerca da gravidade e da leveza “é um dos frutos mais lindos da árvore da estúpida ignorância” (ib. P:32; G:62). “Leviandade”, continua Giordano, e “palavras jogadas ao vento, é o que ele diz sobre a impossibilidade do infinito grave – é até uma vergonha falar disto” (ib. P:33; G: 64).
“Aristóteles não respeita os outros filósofos, desconsidera-os, e é com eles injurioso e ambicioso (porque quer estar acima de todos); e no entanto é tão vulgar que só tem boas idéias quando as copia de outros.” (CPU d. 3, 83)
Neste ponto Giordano Bruno chega a ser cruel:
“Aristóteles, como sofista muito seco, árido e pobre, com malignas explicações e com afirmações sem fundamento, quis perverter as sentenças dos antigos e opor-se à verdade, talvez não tanto por sua tacanhez de intelecto, mas por inveja e ambição”. (CPU d. 5, 122)
Enfim, “coitado do Aristóteles, bem que ele tentou compreender o mundo, mas não o conseguiu” (CPU conclusão).
Desta breve resenha de críticas e acusações podemos já tirar três diretrizes:
1. Que Giordano Bruno não se volta só contra a degeneração e corrupção das doutrinas aristotélicas entre os peripatéticos seus contemporâneos, mas contra os próprios fundamentos da doutrina do mesmo Aristóteles; de fato, ao ler os insultos que em muitas partes Giordano faz aos filósofos do seu tempo que ele tacha de enfatuados e superficiais somos tentados a julgar que a crítica é circunstancial, ao modo de os peripatéticos se comportarem; essa crítica existe sim, mas o que fica claro desde o início é que a raiz da incapacidade das doutrinas universitárias e acadêmicas contra as quais ele se volta, está, no entender de Giordano, na incapacidade do seu próprio inspirador, Aristóteles, que é pobre de idéias, vazio, leviano, mal intencionado, estúpido, confuso, e contraditório.
2. Este vocabulário agressivo, contundente, e panfletário não deve também nos enganar, levando-nos a supor que seu autor é apenas um demolidor infatigável : pelo contrário, Bruno não só cria, em cada diálogo, doutrinas extremamente inovadoras, interessantes e coerentes, como arrasa as posições opostas com argumentos bem construídos, articulados com pleno conhecimento das doutrinas que está atacando – como é nossa intenção demonstrar.
3. A artilharia de Bruno dirige-se contra a metafísica aristotélica, e particularmente contra as noções de substância, causa, ato e potência, e matéria e forma; mas também contra a física e sobretudo contra os conceitos de lugar, vácuo ou vazio, e contra a teoria da impossibilidade do infinito material e da pluralidade dos mundos – mas de passagem destrói outros conceitos de menos importância para o que pretende: peso, gravidade, movimento, dimensão...
Vejamos, uma por uma, as principais argumentações contra a física aristotélica, para depois terminar com algumas interpretações.
O lugar
O ponto de partida de Bruno a respeito do que seja lugar e como refutá-lo em Aristóteles é a inconveniência da definição aristotélica de lugar na sua aplicação ao mundo, inconveniência que se caracteriza por ser uma definição abstrata, matemática, que não é adequada a uma realidade física:
“A definição de lugar, proposta por Aristóteles, não convém ao primeiro, maior e mais comum dos lugares. Nem vale tomar a superfície próxima e imediata ao conteúdo, e outras leviandades que fazem do lugar uma coisa matemática e não física”. (IUM, Argumento do 1º Diálogo, 5º)
Mais adiante explica-se com maior desenvolvimento, dizendo, em síntese, que se o lugar é o estar contido em outra coisa, ele se definiria pela superfície do continente em contato com o contido, deste modo:
“Se o mundo é finito, e fora do mundo está o nada, pergunto a vocês: onde se encontra o mundo? Onde o universo? Aristóteles responde: em si mesmo. O convexo do primeiro céu é lugar universal; sendo ele o que tudo contém, não é contido por outro, porque o lugar não é nada a não ser superfície e extremidade de um corpo continente; do que se deduz que tudo o que não possui corpo continente não possui lugar”. (IUM, Diálogo 1; P:16; G: 29)
Consequentemente, conclui Giordano, se o lugar é apenas o estar contido em alguma coisa, e fora do mundo não existe nada, o mundo está contido no nada, ou seja, não se encontra, não está em lugar nenhum, não existe. A definição de Aristóteles é pois em si mesma portadora de um absurdo, se se tem em conta a realidade física do mundo e não a sua abstração.
Porém, se para evitar esta contradição, Aristóteles afirma que fora do mundo ou para além do mundo está o ser intelectual e divino, cai em nova contradição: a de que uma coisa física e com dimensões seja contida por um ser incorpóreo; além disso seria impróprio dizer que a função da divindade é preencher o vazio. Aristóteles responderia, continua Giordano Bruno (isto é, Filóteo) que onde não há nada também não há lugar, e portanto não é preciso pensar que o mundo esteja em algum lugar que não seja ele mesmo; mas as razões que ele dá para essa afirmação parecem desculpas e fantasias, meras palavras que não satisfazem (ib. G:30).
Ou seja, para Giordano, Aristóteles afirma gratuitamente uma teoria que não pode provar, cujos argumentos são contraditórios, e que levaria “a menosprezar a dignidade da natureza divina e universal” (ib). E acrescenta o argumento tirado de Lucrécio (que cita na Introdução): “se estendesse a mão para fora do mundo ela não estaria em nenhum lugar e portanto não existiria” (ib, P:17; G:30).
Há ainda uma outra contradição, na noção aristotélica de lugar: se o lugar não é espaço, mas a superfície do corpo continente (Física IV) então das duas uma: ou o mundo tem, fora dele, alguma coisa que o contém (e cuja superfície é o seu lugar) ou não tem, e nesse caso está em lugar nenhum: “eis como aquela definição é vã, confusa, e destruidora de si mesma”. (ib, P:17; G:31)
O vácuo
Empregando a própria argumentação de Aristóteles, Bruno afirma que, se o universo tem limites físicos que o contêm, então para lá deles não há nada, ou seja, há o vazio, o vácuo. “Não se pode fugir ao vácuo supondo o mundo finito, se o vácuo é aquilo em que nada existe – não podemos fugir ao vácuo se quisermos admitir o universo finito” (IUM, Argumento do 1º Diálogo, 6º, repetido no 1º Diálogo, P:17; G:32). Ora o vácuo é, se existe, a incapacidade de existência seja do que for, o que Bruno explica deste modo:
“Onde não existe nada não existe diferença alguma; onde não existe diferença não existem diferentes aptidões; e provavelmente não existe aptidão alguma onde não existe coisa alguma [...] Sendo inane [inerte] não possui aptidão alguma para receber e muito menos deve ter para repelir o mundo” (ib. Diálogo 1, P:17; G:32).
Assim, na concepção aristotélica o vácuo seria a incapacidade de existência de qualquer coisa – não haveria aí nem lugar nem espaço, nem sequer se poderia dizer dele: “aí”. Giordano considera tal concepção de vácuo contraditória e irracional, resumindo essa posição nesta frase: “só ele define o vácuo como sendo o nada, no qual nada está nem nada pode estar” (ib. 2º Diálogo, P:29; G:55). E assim, conclui, “esse sofista ao eliminar o nome pensa ter eliminado a coisa mesma”.
Finito x infinito
Quando demonstra a possibilidade da existência real do corpo infinito diz Bruno que “se torna mais evidente a inconsistência dos argumentos de Aristóteles que, para atacar as posições daqueles que consideram o mundo infinito, pressupõe o meio e a circunferência, pretendendo que a terra ocupe o centro no finito ou no infinito” (IUM Argumento do 2º Diálogo, 4º). Ora se o universo for considerado infinito, não há nem meio nem circunferência nem nada que ocupe o centro, porque o centro está em toda a parte. Portanto, diz Bruno, Aristóteles tem uma concepção errada de infinito material – por considerá-la impossível.
Isto se prova por outros meios, a saber: a questão das partes do infinito. O infinito não tem partes finitas, porque a composição de um conjunto tem que ser proporcional (adequada) à consideração desse conjunto; por isso a especulação de Aristóteles “procede por fundamentos que não são naturais, querendo juntar todas as partes do infinito, sendo que o infinito não pode possuir partes” (ib. Diálogo 2, P: 38). Porque as partes de dimensão finita “são apenas partes do finito e somente a ele podem ser todas proporcionais” e por isso não podem ser consideradas partes do infinito “com o qual não têm proporção” (ib. P: 39).
Segue-se ainda que a demonstração de Aristóteles também não é correta, porque “do fato de haver inúmeras partes no infinito e de entre si se sofrerem e agirem, não se segue que cada uma das ações e paixões (recepções da ação) seja infinita, pois se dão entre elementos finitos” (ib, P:39). De modo semelhante “o finito não é absorvido pelo infinito, porque a ação e a recepção da ação se dão entre partes próximas, e não no infinito como um todo” (ib. p. 40).
Enfim, toda a demonstração de Aristóteles se volta para provar que o universo não pode ser infinito, e daí ele concluir pela posição mais razoável, a saber, que nada existe para além do universo porque não pode haver lugar onde não há corpo sensível, o que Giordano considera “razões grosseiras” (ib. P 40).
E mais duas suposições aristotélicas são impossíveis nesta sequência de argumentos: a de que os sete céus são entre si equidistantes, porque essa suposição depende da “falsíssima suposição da fixidez da terra; contra o que brada toda a natureza, clama toda a razão e sentencia todo intelecto reto e bem informado” (ib. P 41). E a outra é a afirmação de “que o universo acaba e termina onde finda a experiência dos nossos sentidos”; ora, diz Bruno, os nossos sentidos se enganam, acham próxima a estrela que se vê melhor, e longínqua a que se vê menos, quando sabemos que pode ser o contrário. Portanto a razão desmente os sentidos, e é possível supor que o universo alcança para além do que os sentidos conseguem ver.
Pluralidade dos mundos
“As teorias de Aristóteles exigem que, se houvesse vários mundos, eles tivessem que convergir para um só mundo, e portanto é um só o mundo que existe” (IUM, d.4; P 62-63). Mas nós, diz Giordano:
“Afirmamos a existência de verdadeira semelhança entre todos os astros, entre todos os mundos, e da mesma organização desta terra e das outras”.
É o princípio, desde então aceito pela astrofísica, da homogeneidade do universo quanto às leis que o governam e quanto à identidade de composição da matéria. Contudo, neste ponto Giordano não critica as razões de Aristóteles, apenas lhe contrapõe as suas começando por dizer que Aristóteles “considerou o mundo segundo uma significação imprópria, criando um universo fantástico e corpóreo” (ib.62). Só mais adiante (68) surge algum tipo de refutação: o movimento dos corpos simples dirige-se, segundo Aristóteles, para um mesmo lugar – é certo, responde Giordano, para um lugar da mesma espécie, sim, mas não para um único lugar – “o mesmo lugar particular e individual”, pois, como já dissera antes (63) esta terra permanece no seu lugar como as outras terras permanecem no lugar delas, e assim “como não é conveniente que esta se mova para o lugar das outras, não é tampouco conveniente que as outras se movam para o lugar desta”.
Quanto à objeção de Aristóteles – que, se houvesse muitos mundos, haveria muitos centros de mundo, e que isso seria impossível pois teriam que coincidir – responde Giordano que “ela não tem fundamento, pois não há contradição em que cada mundo tenha o seu próprio centro de referência orgânico”; e compara com os animais, que têm vários centros de referência, que são cada um dos órgãos importantes. Assim, no conjunto orgânico cada parte exerce uma função de referência, e deste mesmo modo se organiza o universo; contra esta teoria, continua Bruno, nada valem as teorias de Aristóteles: pelo contrário, “o intelecto se ofende” contra as “inépcias relatadas” por ele (69).
A questão do equilíbrio e proporção entre os mundos tem outras consequências: Bruno afirma que “assim como cada um dos infinitos mundos é finito e possui região finita assim seus movimentos são convenientes ou proporcionais às suas partes, o que implica, portanto, que todos os movimentos sejam finitos [...] e que existam infinitos mundos” (70). E ainda ridiculariza Aristóteles quando diz que “se argumentarmos com ele não só chegaremos à conclusão de que o universo é finito e o mundo é um só mas também que os macacos nascem sem rabo [...] e os morcegos produzem lã”. Outra consequência diz respeito à velocidade: “dado que a velocidade é proporcional à distância, se o mundo fosse infinito e houvesse distâncias infinitas as velocidades seriam infinitas” (69). Parece que Bruno deduz de Aristóteles que nesse caso a grandeza infinita se anularia. Ora, responde ele, “os movimentos são locais e portanto são locais as distâncias, e como cada corpo vai para o seu lugar natural próximo, a velocidade é finita e proporcional”.
Em resumo, num universo composto de infinitos mundos as leis da física de Aristóteles não valem.
O modo de contra-argumentar
Quando conclui, no quinto diálogo (IUM) refutando os doze argumentos aristotélicos de Albertino, Giordano começa por reafirmar que:
“Não se deve procurar se fora do céu existe lugar, vácuo, ou tempo; porque único é o lugar geral, único o espaço imenso (...) onde existem inumeráveis e infinitos globos(...). Este espaço nós o chamamos infinito, porque não existe razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que deva limitá-lo”.
E logo adiante Albertino acrescenta que a verdade exposta por Giordano Bruno “não é até agora menos verosímil do que seu contraditório” (IUM, P 82).
Podemos assim indicar três movimentos no raciocínio de Giordano:
1. Mostra que os argumentos de Aristóteles são contraditórios em si mesmos e não se sustentam;
2. Apresenta os seus como mais razoáveis e bem construídos;
3. Ao mesmo tempo sabe que não tem como demonstrar cabalmente seu raciocínio, tal como Aristóteles não podia provar empiricamente os seus acerca da mecânica celeste; mas Bruno quer que se aceite que os seus argumentos são mais verosímeis, mais conformes à razão, do que os do adversário.
Além disso é preciso atender ao conjunto dos argumentos: não é cada um por si só que se sustenta sozinho, mas é preciso, como diz Albertino, entender o todo (ib. P 84) “porque uma dúvida leva a outra e uma verdade demonstra a outra”. E o mesmo Albertino acrescenta mais adiante (ib. P 86): “como você me mostrou serem inconvenientes as coisas que eu julgava necessárias, todas as outras que pela mesma ou semelhante razão considero necessárias, tornam-se suspeitas”. Podemos perceber, diz Albertino no final, que não temos um conhecimento completo, mas o que podemos vislumbrar é suficiente para começar uma nova visão de mundo “afim de que, com a luz de semelhante contemplação, a passos mais seguros, possamos proceder rumo ao conhecimento da natureza” (ib. final, P 91).
É o mesmo princípio da verosimilhança aplicado à visão geral do mundo: ela é mais aceitável mesmo que cada argumento não possa ser completamente provado; mas há uma concepção global que dá consistência a cada parte. Ou como diz Filóteo: “porque como de um erro deriva outro, assim de uma verdade descoberta sucede outra” (ib. P 85). Afinal, Aristóteles não está errado, só está menos certo dentro das probabilidades de certeza – o que, é claro, Bruno evita dizer, embora pareça estar presente no seu modo de argumentar.
Da mesma forma, os princípios que presidem à organização do mundo não são demonstráveis, mas apenas mais explicativos, como aquele de Aristóteles que Bruno considera “extremamente falso: que os contrários estejam afastados ao máximo” (ib. P 85). ao qual ele opõe o princípio recebido de Nicolau de Cusa: “em todas as coisas os contrários vêm naturalmente juntos e unidos, não consistindo o universo (...) senão em tal conjunção e união”. Giordano Bruno argumenta e afirma “que a proposição peripatética é inconstante, quer examinada segundo a verdade da natureza, quer medida pelos próprios princípios e fundamentos”; mas o que é interessante é que ele sabe que a sua refutação é racional e não empiricamente provada, como se estivesse pedindo que alguém fizesse a refutação empírica de Aristóteles. Aliás no quinto diálogo Giordano já não refuta os argumentos de Aristóteles expostos por Albertino, apenas lhes contrapõe as suas teorias como sendo mais aceitáveis.
Quando, noutro diálogo (CPU 2, p.55) Dicson diz: “para que uma coisa seja verdadeira não basta que se possa defendê-la, pois é preciso também poder prová-la” depois de muito esforço argumentativo Teófilo concorda que não deu provas nem respondeu a dúvidas, e só pode contra-argumentar com uma comparação.
Anexo: algumas opiniões correntes acerca de Giordano Bruno
“Italian hermetic thinker”. Chambers Biographical Dictionary, ed. Melanie Parry, Edimburgo/Nova Iorque 1997 (1897) p.287. Diz ainda: “his pantheistic philosophy ─ whereby God animated the whole of creation as world-soul”.
“Italian philosopher, opponent of scholasticism and the Roman Catholic Church, fervent advocate of the materialist world outlook, which he conceived in the form of pantheism [...]. Consistently identifying an infinite deity with nature [...] maintaining the infinity of nature itself [...] held that matter was an active self-moving substance, and man and his consciousness part of nature, which was a single whole”.
Rosenthal M., Yudin P., A Dictionary of Philosophy. Trad.Richard R. Dixon e Murad Saifulin. Moscou, Progress Publishers, 1967, p. 59.
“Arremeteu acremente contra todas as doutrinas da fé cristã; batalhou com grande energia pela liberdade da filosofia e da ciência, ridicularizou mordazmente a corrupção escolástica. Bruno refutava os dogmas do cristianismo, tais como a Santíssima Trindade e o sacramento da comunhão.”
Shcheglov. Compêndio de História da Filosofia. Rio de Janeiro, Ed.Vitória, 1945, p. 69.
E o mesmo autor continua (69-70): “Bruno, filósofo das forças sociais progressistas é cheio de otimismo. Em sua unidade íntegra e seu aspecto infinito o mundo não conhece o mal nem a morte; é perfeito e harmonioso.”
Obras do autor
. Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos. Trad. Helda Barraco e Nestor Deola. São Paulo, Nova Cultural, Os Pensadores, 1988.
. Acerca do infinito, do universo e dos mundos. Intr. Victor Matos e Sá. Trad. notas, bibl. Aura Montenegro. Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 3.a ed. 1984.
. A Causa, o princípio e o uno. Trad. Attilio Cancian. São Paulo, Nova Stella/Instituto Italo-Brasileiro, 1988.
Comentadores
. Brian P Copenhaver, Charles B. Schmitt. Renaissance Philosophy. Oxford/Nova Iorque, Oxford U.P., 1992, 285-303.
. Frederick Copleston, A History of Philosophy. Vol.III “Ockham to Suárez”.
Birmingham/Nova Iorque, Search Press/Paulist Press, 1983 (1953) 258-263.
. Júlio Fragata. História da Filosofia Moderna. Faculdade de filosofia de Braga, 1968/69, mimeografado, 34-46.
. Guillermo Fraile. Historia de la Filosofia. VolII. Madrid, BAC, 1978, 2ª ed, 181-197.
. Péricles Prade. Paracelso & Giordano Bruno. Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1994, 37-76.
. Victor Matos e Sá. Introdução a Giordano Bruno, na edição de Acerca do Infinito da Gulbenkian, V – L II e 119 notas.
. Hélène Védrine. As Filosofias do Renascimento. Trad. Marina Alberty Mem Martins, Europa-América, 2.a ed, s.d., 77-88 (PUF 1971).
Bibliografia citada nos comentários, mas não disponível:
. M. Ciliberto. Lessico di Giordano Bruno. Roma, 1979.
. Giovanni Gentile. Giuordano Bruno e il pensiero del rinascimento 1991 (reed).
. A. Insegno. Cosmologia e filosofia nel pensiero di Giordano Bruno, Florença, 1978.
. P.-H. Michel. La cosmologie de Giordano Bruno. Paris, 1962.
. Hélène Védrine. La conception de nature chez Giordano Bruno. Paris, 1967.
Siglas:
IUM: Sobre o infinito, o universo e os mundos
P: na tradução de Os Pensadores
G: na tradução da Gulbenkian
CPU: A Causa, o princípio e o uno
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