segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Aristotelismo e antiaristotelismo no pensamento português: séculos XVI a XVIII

Amândio A. Coxito (Universidade de Coimbra)

Notas ao fim do texto

A projecção de Aristóteles em Portugal remonta já aos primórdios da nacionalidade, tendo-se exercido por vezes em profundeza e outras em extensão, numa série incontável de obras e autores que perdurou até aos nossos dias, exceptuando o hiato, aliás muito longo a nível do ensino, que se seguiu à reforma pombalina da Universidade. Esta minha comunicação pretende ser uma exposição sumária desse fenómeno, bem como de certas manifestações de anti-aristotelismo, com uma referência especial ao século XVIII, não deixando no entanto de aludir também, dentro desse contexto, a momentos essenciais relativos aos dois séculos anteriores.
A recepção de Aristóteles no meio cultural português teve início, embora duma maneira tímida, já nos primórdios da nacionalidade, no seio das escolas episcopais e monacais e também, desde o século XV, no ambiente extra-escolar. Mas o aristotelismo só manifestaria a sua plena pujança na segunda metade do século XVI, com a criação do Colégio das Artes e com o magistério dos jesuítas, altura em que a filosofia de Aristóteles aparece situada como vector do quadro ideológico mais vasto da Contrarreforma. O que então se impôs, segundo os ideais do Humanismo, foi o regresso às fontes do Perípato e dos seus comentadores mais qualificados. O anseio de fidelidade à filosofia aristotélica, nessa época, está expresso nos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1559, que impunham quase exclusivamente as obras do Perípato como texto para o curso de Artes, desde a lógica, à filosofia moral e à metafísica. E ia no mesmo sentido a Ratio studiorum promulgada em 1599 para toda a Companhia de Jesus. Este rumo, aliás, não era exclusivo do Colégio das Artes, pois foi seguido também na Universidade de Évora e noutras escolas dos jesuítas, em particular nos colégios de S. Paulo, de Braga, e de Santo Antão, de Lisboa.
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Uma exposição sobre o aristotelismo em Portugal na segunda metade do século XVI tem de conceder um destaque a Pedro da Fonseca, o “Aristóteles português”. A primeira obra realizada por Fonseca, as Instituições dialécticas, obedece à intenção explícita de fundar o ensino da lógica na explicação dos livros de Aristóteles e não a partir das tradicionais Súmulas, embora assimilando certas problemáticas introduzidas pela lógica medieval e pela renascentista. Mas, falando da lógica renascentista, o que está ausente naquela obra de Fonseca (em consonância com a letra e o espírito da lógica aristotélica) é o projecto dos “dialécticos” humanistas coevos em limitar a problemática lógica a uma das suas partes - a dialéctica -, como arte da argumentação provável, com menosprezo da analítica. Ficava assim salvaguardado, em desfavor das tendências probabilistas da época, o conceito aristotélico de demonstração científica, exigida como instrumento para a fundamentação do dogma católico.
Ainda em relação a Fonseca, não pode omitir-se também uma referência à sua obra mais famosa, mais extensa e mais profunda, os Comentários à Metafísica de Aristóteles, aos quais subjaz a ideia de que “o estudo sério da problemática metafísica tem de passar, necessariamente, pela mediação do texto aristotélico”.
[1] Merece destaque, antes de mais, o trabalho erudito na realização da obra. Fonseca propôs-se fazer o estabelecimento do texto grego do Perípato (alterado pelos copistas e comentadores medievais), com o recurso ao método histórico-filológico. Esse texto é acompanhado duma nova tradução latina, não demasiado presa à letra mas fiel, a que se segue uma ampla exposição das questões suscitadas pelo texto do filósofo grego, invocando-se um sem número de autoridades, antigas, medievais e renascentistas.
Em relação a esta obra seria interessante esclarecer, como sugere António M. Martins, alguns pontos importantes, tais como: até que ponto a presença das orientações tomista e escotista possibilitou a Fonseca a melhor interpretação das doutrinas do Estagirita; e, por outro lado, até que ponto a construção duma metafísica no contexto particular da Contra-Reforma teria conduzido “a uma transformação do projecto aristotélico e a um repensar o legado da filosofia da Escola”.
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Foi ainda no século XVI que a filosofia de Aristóteles (interpretada segundo o espírito dos grandes escolásticos medievais) teve uma expressão assinalável no célebre Curso Conimbricense, redigido por três jesuítas com o aproveitamento das lições manuscritas que constituíam o corpo da doutrina filosófica ministrada no Colégio das Artes. Os tratados que constituem esse curso constam de oito comentários às principais obras de Aristóteles do domínio da filosofia natural, da ética e da lógica. A enorme divulgação que esses comentários obtiveram em Portugal e no estrangeiro, nos centros universitários da Companhia de Jesus, ficou certamente a dever-se à excelência do método com que estão redigidos, à clareza e elegância na exposição das doutrinas e à rigorosa análise filológica e hermenêutica do texto aristotélico, integrando sistematicamente elementos da Escolástica medieval.
Explicitando melhor, no que respeita aos comentários à lógica, eles significam um corte com certos temas acrescentados à lógica aristotélica pela tradição escolástica e um estudo amplo e aprofundado do Organon nas suas fontes e com o recurso aos comentadores antigos e medievais, explanando em múltiplas questões o conteúdo dos escritos lógicos do Perípato. E é ainda muito significativo que a parte dedicada aos Segundos analíticos, que contém a teoria da demonstração científica, tenha um desenvolvimento muito amplo, o que deve interpretar-se como uma preocupação em acentuar a concepção aristotélica da demonstração científica, como o exigia a defesa do dogma católico e a superação do cepticismo desencadeado pelas controvérsias religiosas do século XVI.
O apego a Aristóteles por parte dos Conimbricenses poderia ainda concretizar-se a propósito do conteúdo dos tratados que constituem a filosofia natural, cujo objecto é o estudo do ens mobile em geral e dos movimentos e móveis particulares.
[3] Nesse domínio, Aristóteles constituiu um extraordinário sistema do mundo, que dominou o pensamento dos vinte séculos seguintes e que está ainda presente no Curso Conimbricense. No entanto, a partir do século XVII, graças à experimentação e à fecundidade dos processos matemáticos, erigiu-se um edifício imponente e duma eficácia prática superior, que constitui o corpo das ciências físicas modernas. Nestas condições, era possível um acordo entre as duas físicas, a antiga e a moderna? A verdade é que muitas das conclusões das tratados dos Conimbricenses sobre a física ou filosofia natural têm de ser consideradas caducas após a revolução científica da época moderna. Deste modo, um acordo entre as duas físicas mostrava-se impossível. O desacordo é mais radical no que respeita à física dos movimentos particulares. A distinção dos dois mundos de diferente natureza na antiga cosmologia com a existência em cada um deles de movimentos naturais específicos e a afirmação da centralidade e da imobilidade, no conjunto cósmico, do mundo sub-lunar eram pontos que a física moderna tendia a considerar como ultrapassados. Nestas condições, seria de esperar que os Conimbricenses fizessem pelo menos uma alusão ao novo paradigma heliocêntrico proposto por Copérnico, cuja obra, De revolutionibus orbium coelestium, seria já certamente por eles conhecida, pois tinha sido publicada meio século antes dos comentários ao De coelo. O facto é que os Conimbricenses silenciaram a nova hipótese cosmológica, o que só pode explicar-se - parece - pelo alheamento intencional a respeito duma teoria que, ao pôr em causa tão radicalmente a tradição, era julgada destituída de qualquer crédito. A tal ponto se elevou o propósito de fidelidade a Aristóteles nessa época!
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Quanto à recepção de Aristóteles no século XVII, são incontáveis os materiais baseados nas suas obras, respeitantes sobretudo à lógica, à filosofia natural e à metafísica, se bem que a maior parte deles permaneça ainda inédita. No entanto, as postilas então produzidas permitem concluir que os temas e as doutrinas se apresentam desprovidos de originalidade, desenvolvendo-se segundo o modo estereotipado imposto pela escola jesuítica e sem o fulgor do século precedente. A norma era, pois, parafrasear os anteriores Conimbricenses, mas sem o recurso directo aos textos aristotélicos. Por outro lado, o modo rotineiro e sem novidade com que as doutrinas eram expostas tem certamente muito a ver com os constrangimentos do tribunal do Santo Ofício, que impediam uma revitalização dos conteúdos doutrinais na linha das novas ideias vigentes a nível europeu.
Assim, Aristóteles permaneceu em geral como mestre, quer no domínio da lógica (embora os aspectos formais desta começassem a ocupar um espaço e um interesse relativamente diminutos), quer no domínio da filosofia da natureza, no que respeita à explicação do mundo material e dos fenómenos psicológicos. É justo, porém, salientar que as novas descobertas científicas tiveram, episodicamente, alguma guarida, o que levou a uma actualização da filosofia natural e a pôr em causa certos aspectos particulares da física e da cosmologia aristotélico-escolásticas
É pertinente invocar a propósito o nome de Baltasar Teles, autor duma Summa universae philosophiae, com a qual se propôs desterrar das mãos dos seus alunos os grossos volumes dos Conimbricenses do século anterior, simplificando-os.
[4] A verdade é que Teles, com o seu espírito inovador, na peugada de cientistas coevos, não teve dúvidas em pôr em causa ensinamentos tradicionais (como, entre outros, o da incorruptibilidade dos céus e o da diferença de natureza entre a matéria celeste e a terrestre), ironizando contra aqueles “a que ainda não chegaram as frequentes demonstrações que hoje fazem os matemáticos modernos”.[5]
Um outro jesuíta, Cristóvão Borri, italiano de nascimento e educação, que ensinou matemática em Coimbra, onde realizou também observações astronómicas utilizando o telescópio e outros instrumentos, escreveu uma Collecta astronomica, que revela uma intenção polémica declaradamente antiperipatética, atacando teorias já caducas, na base dum conhecimento directo das obras de Copérnico, Tycho Brahe e Galileu, entre outros.
É a Soares Lusitano que se deve uma grande tentativa de actualização dos Conimbricenses, com a rectificação de várias noções por eles tomadas de Aristóteles. Este professor jesuíta, na realização do seu Cursus philosophicus, na parte consagrada à fìsica, serviu-se pelo menos de 120 autores modernos,
[6] o que revela ter estado em contacto com a cultura coeva, a que aderiu no entanto com parcimónia, pois propôs-se tratar as questões de tal modo que “nem pareça desprezar as coisas antigas, quando verdadeiras, nem abraçar as recentes, quando falsas”.[7] De qualquer modo, o espírito de inovação neste autor é muito limitado, como se comprova a propósito da polémica entre o geocentrismo e o heliocentrismo, face à qual, por razões teológicas, ele prefere acatar a velha doutrina.[8] A verdade é que a escola jesuítica lhe cerceava o horizonte onde começavam “as perigosas especulações do século”.
Em António Cordeiro é que a contestação do passado se manifesta com maior amplitude, neste século. Ainda que este professor tenha procurado manter-se fiel, no fundamental, ao aristotelismo (traduzindo-se essa intenção no desejo, frequentemente expresso, de seguir de perto os Conimbricenses), o certo é que manifesta simpatia por certas ideias modernas, que colheu directamente das obras dos autores jesuítas Onorato Fabri e Inácio Der-Kennis,
[9] referentes sobretudo a problemas gnosiológicos e de filosofia natural, ainda que em alguns casos essa modernidade deva ser tida como problemática no estado actual das investigações sobre o pensamento deste pensador jesuíta. De qualquer modo, no campo da filosofia natural, parece haver reflexos cartesianos, nomeadamente no conceito mecanicista dos fenómenos biológicos, com a explicação destes a partir dos movimentos da matéria, com a recusa da alma vegetativa e da sensitiva da tradição peripatética.[10] E embora a alma racional como forma do corpo humano não seja posta em questão, não deixa de ser significativa a afirmação, noutros passos, da doutrina dos “espíritos vitais”, possuindo estes funções semelhantes às que lhes são atribuídas por Descartes na explicação mecanicista das interacções entre a alma e o corpo.[11] Tais doutrinas representam de facto um abalo nas concepções aristotélico-escolásticas sobre a matéria e a forma como princípios da mudança ou da transformação substancial dos corpos.
Mas as doutrinas físico-biológicas de A. Cordeiro apresentam-se em muitos casos obscuras e até contraditórias, pelo que os assomos de modernidade que delas transparecem são inconsequentes. Como quer que seja, estamos perante uma tentativa de encetar um diálogo entre a desvitalizada filosofia aristotélico-escolástica e as correntes modernas.
Este professor jesuíta, verdadeiro sinal de contradição na sua época, permaneceu, no contexto filosófico português, como um exemplo de inconformismo perante as ideias estabelecidas mas já caducas, ocupando uma posição de vanguarda na abertura a novas correntes, que no século seguinte irão ter uma expressão mais vincada e mais extensa.
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No século XVIII assiste-se a uma emancipação mais acentuada face a Aristóteles, embora variável consoante as matérias filosóficas e os agentes responsáveis pelo seu ensino. Mesmo dentro da Companhia de Jesus os responsáveis romanos tinham sancionado uma maior abertura às ideias modernas, que na época já não podiam ser de todo reprimidas e, antes de mais, na física. Daí que tenha começado a desenhar-se uma certa permeabilização à nova onda de progresso da ciência, não obstante algumas posições mais conservadoras, como a do jesuíta Silvestre Aranha, que está bem expressa nestas suas palavras: “Vendo eu aumentar de dia para dia a novidade da ideia cartesiana e que já em muitas partes se troca o Perípato pelo atomismo, não pude deixar de combater a descarada traição a Aristóteles, tomando a sua defesa onde quer que a ocasião se proporcionasse”.[12]
A nova mentalidade era aliás uma consequência do surto do pensamento iluminista, cuja vigência significou uma agitação intelectual deveras intensa e, por outro lado, libertadora, ainda que cheia de perplexidades e contradições.
A afirmação duma razão crítica, característica do Iluminismo, apresentou-se no seio do pensamento português como uma depreciação do designado “Seiscentismo” e dos conteúdos culturais da Segunda Escolástica (ou, por outras palavras, dum tipo de pensamento alicerçado em Aristóteles).
A lógica foi um dos domínios em que as críticas e as inovações mais se fizeram sentir. Já desde as primeiras décadas do século XVIII que, mesmo entre os chamados “antigos”, se tinha assistido a uma tendência para a simplificação das questões lógicas de natureza formal, motivo por que a lógica de Aristóteles, tal como ele a tinha concebido, perdeu grande parte do seu significado original. Um exemplo representativo é o do jesuíta Gregório Barreto, com a Nova logica conimbricensis. No entanto, continuou a dedicar-se muito interesse, no âmbito dessa disciplina, a problemas de natureza metafísica, por se reconhecer a sua importância para a teologia ou simplesmente por obediência a uma tradição multisecular. Este foi também o caso de Silvestre Aranha, que nas Disputationes logicae oferece um tratamento exaustivo e mesmo exclusivo de tais problemáticas.
Entre os “modernos”, porém, a consciência do progresso do saber, a necessidade de “examinar no tribunal da recta razão” as opiniões recebidas da tradição e uma concepção pragmática da filosofia levaram a propor um tipo de lógica diferente da tradicional, dado que esta se perdia em “inutilidades”, “argúcias” e “opiniões em que só têm lugar as ideias abstractas metafisicamente tratadas”, como refere Azevedo Fortes na sua Lógica racional, a primeira obra de lógica escrita em língua portuguesa.
[13] Compreende-se assim que neste autor (cuja posição pode considerar-se paradigmática) desde o início do seu compêndio a crítica da lógica dos “antigos” seja o tema dominante. “Há muitos anos que tenho reparado no pouco fruto que os estudantes tiram do ano que empregam no estudo da lógica que ordinariamente se ensina nas escolas. E, falando eu com muitas pessoas doutas e de claro juízo, todas convieram em que semelhante estudo mais servia para embaraçar e confundir as nossas ideias do que para aperfeiçoar as operações do nosso entendimento, que é o fim principal da lógica. As mesmas pessoas me asseguraram que tudo o que se costumava tratar nas ditas lógicas era fundado sobre ideias vagas e abstractas, movendo delas um grande número de questões ridículas e inúteis de entes de razão, universais e categorias, de que se deviam esquecer os que as tinham sabido, para depois poderem falar com os outros homens por termos claros e inteligíveis”.[14] Daí a necessidade dum novo método de tratar a lógica, que fossa breve e útil, tornando a disciplina “sucinta e fácil”.[15]
Mas a crítica da lógica escolástica não significou necessariamente um menosprezo por Aristóteles, tanto mais que, no caso do autor referido, ele era considerado o “príncipe dos filósofos” e o “filósofo por antonomásia”.
[16] Foram os escolásticos que viciaram e adulteraram o seu pensamento, pelo que “a filosofia que hoje se ensina nas escolas não é a mesma que Aristóteles nos deixou escrita”.[17] E a verdade é que esta afirmação se coaduna com o modo insólito como era entendida a problemática lógica.
Na verdade, a lógica apresenta-se, naquele autor, extremamente simplificada. Assim: as categorias aristotélicas são reduzidas a duas, a substância e o modo da substância, à boa maneira cartesiana; as regras dos silogismos são reduzidas a três, não repugnando admitir apenas uma, “porque todas as mais são supérfluas”;
[18] as três figuras dos silogismos de que fala Aristóteles são completamente esquecidas, por serem desnecessárias e obrigarem a um laborioso estudo;[19] a lógica do conceito ou do termo, como expressão dele, aparece substituída por uma teoria das “ideias”, com influências, algo confusas, tanto dos lógicos de Port-Royal como de Locke; a lógica modal é omitida; a teoria aristotélico-escolástica da demonstração científica é reduzida a uma simples página, etc.
Esta grande simplificação, em obediência a um conceito pragmático do conhecimento, foi um ideal partilhado por outros autores, entre os “modernos”, designadamente por Luís António Vernei, que no Verdadeiro método de estudar escreve que, se tudo o que se ensina com o nome de “lógica” não conduz a julgar e a discorrer bem, então “não dá nenhuma utilidade, antes causa suma confusão”,
[20] pelo que se deve estudar outra coisa mais útil, pondo de lado as subtilezas e os sofismas dos antigos. Esta forma mentis implicava um menosprezo pelas matérias com carga metafísica e um propósito de simplificação das de natureza formal, como as referentes ao Perihermeneias e aos Analíticos. E o facto é que Vernei, na De re logica, relega a silogística para um pequeno apêndice final, dedicando uma grande parte da obra a temas metodológicos acerca da investigação e da explicação da verdade, isto é, a assuntos alheios à lógica de Aristóteles.
A orientação prática dos tratados de lógica, ao arrepio da lógica aristotélica, acarretou algumas consequências que não se circunscrevem à sua simplificação. Uma delas tem a ver com o seu carácter psicologista. Na perspectiva psicologista, o objecto da lógica é o pensar, enquanto faculdade anímica, e não o puro domínio do pensamento. O psicologismo é um facto comum a todas as épocas, mas aparece acentuado a partir do século XVII e nomeadamente nos autores de Port-Royal, ao conceberem a lógica como a “arte de pensar”. Mas, mais que isso, a lógica tendia a reivindicar para si o estudo de todos os factos psicológicos que pudessem explicar a génese dos conceitos, dos juízos e dos raciocínios. A inclusão desta temática alheia à natureza formal da lógica foi, no meio intelectual português, praticada ainda por Azevedo Fortes. Segundo ele, “o objecto principal desta arte, são as faculdades da nossa alma - memória, inteligência e vontade”.
[21] Mas, pela explanação da doutrina deste autor, somos levados a concluir que também as outras funções psíquicas fazem parte do objecto desta disciplina. Tudo isto indica que a lógica está fortemente eivada de psicologismo - e no pior sentido da palavra. O relativo desinteresse dos historiadores contemporâneos pela lógica pós-renascentista reside precisamente na sua índole psicologista, com o acolhimento de temas extralógicos deste tipo e o consequente empobrecimento dos de carácter formal.[22]
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No mesmo século XVIII, no domínio da física tornou-se também evidente uma tendência marcante no sentido da inovação.
No século XVII, os escritos sobre filosofia da natureza tinham-se pautado, com raras excepções, pelos esquemas dos Conimbricenses do século anterior. Por outras palavras, Aristóteles permanecera como mestre no que respeita à explicação do mundo material e dos fenómenos psicológicos, ainda que as novas descobertas científicas tivessem tido, esporadicamente, alguma guarida, assistindo-se a uma emancipação cada vez mais acentuada face ao aristotelismo, por virtude do surto das “novas ideias”. Isso aconteceu mesmo entre alguns representantes da Escolástica vigente, que não permaneceram refractários às propostas da ciência coeva, contanto que não colidissem com teses fundamentais da tradição que não podiam ser postas em causa.
De facto, entre os jesuítas, os responsáveis romanos da Companhia de Jesus, na 16ª Congregação Geral (1730-1731), tinham sancionado uma maior abertura às ideias modernas, que na época já não podiam ser reprimidas. Daí a convicção de que “aquela mais agradável erudição (pela qual na física, principalmente na particular, por meio de princípios matemáticos e experiências dos eruditos se explicam os mais notáveis fenómenos da natureza) não só não está em oposição com a filosofia escolástica, mas com ela concorda perfeitamente”.
[23] Esta convicção determinou a reforma dos compêndios de estudo, que se apartaram, em boa medida, dos esquemas e dos ensinamentos do Perípato, motivo por que os jesuítas portugueses proclamaram o seu inconformismo com os velhos Estatutos. Em virtude disso, os superiores da Companhia de Jesus decidiram publicar, em 1754, o Elenchus quaestionum, que indicava aos mestres as questões que deveriam tratar no ensino da filosofia, admitindo em muitos casos a inclusão das ideias modernas, para que o sistema aristotélico pudesse ser corrigido. Não se tratava no entanto duma supressão formal de Aristóteles no seu todo, pois ficava-se ainda, quanto ao essencial, com o Aristóteles filósofo. O que se admitia era um eclectismo equilibrado no campo da física, que era afinal a atitude mais consentânea com a revolução científica do século.
Foram vários os autores jesuítas que, nesse domínio, deram passos significativos no sentido da modernidade, ainda que tenha sido cautelosa e crítica a adesão a posições que, pelo menos na aparência, ofendiam os princípios fundamentais da metafísica aristotélico-escolástica e da teologia.
Um dos inacianos que deu os primeiros passos na via dos “modernos” foi António Vieira (homónimo do grande orador seiscentista), que ensinou no colégio de Santo Antão de Lisboa. No seu Cursus philosophicus, sem menosprezar o estudo da metafísica e não aderindo no campo da lógica aos novos esquemas inspirados nos autores de Port-Royal e em Locke, mostra conhecer perfeitamente as filosofias mais vulgarizadas no tempo, que lhe permitiram uma tentativa, embora tímida, de modernização da física aristotélica, com o aproveitamento de doutrinas de Galileu, Descartes, Gassendi, Mersenne, Boyle, Malpighi e Newton, entre outros, socorrendo-se também, na exposição da psicologia e da biologia, das ideias sobre a anatomia e a fisiologia humanas como eram expostas pelos cientistas coevos.
Na Universidade de Évora, o primeiro defensor da filosofia renovada foi Sebastião de Abreu, embora o seu contacto com as correntes modernas não denuncie uma deserção total das filosofias tradicionais. De qualquer modo, a modernidade entrou em cheio na parte da sua obra consagrada à física geral e particular: com Locke reconhece que a essência do espírito e dos corpos é inacessível ao intelecto humano,
[24] considerando apenas provável a explicação dos peripatéticos; mostra conhecer a doutrina monadológica de Leibniz, bem como a de Newton sobre o espaço;[25] alinha com Newton na afirmação da existência do vácuo, contra Descartes e Aristóteles;[26] não lhe era estranha a teoria de Torricelli baseada na experiência com a coluna de mercúrio;[27] e reconhece a Descartes o grande mérito de ter posto em dúvida muitas opiniões correntes do domínio da física, ainda que não aceite que a natureza da matéria seja redutível à extensão.[28]
Um outro exemplo característico de aristotelismo renovado é Inácio Soares, professor do colégio de S. Paulo, de Braga, que na Philosophia universa eclectica, embora sem os entusiasmos dos antiperipatéticos mais convictos, manifesta o rumo que o ensino filosófico se propunha trilhar entre os jesuítas, no diálogo com as novas correntes da ciência.
As intenções reformistas dos inacianos atingiram o ponto mais elevado na obra do professor jesuíta mais familiarizado com o movimento científico e filosófico do tempo, Inácio Monteiro, que na Philosophia libera confessa ter percorrido e superado sucessivamente Aristóteles, Descartes, Gassendi e Newton, para concluir que nenhum sistema pode arrogar-se o direito da verdade total e que só o eclectismo é garantia dum pensamento livre, pois “a verdadeira filosofia é a ecléctica e o verdadeiro filósofo aquele que, amando a liberdade de pensar, se não sujeita ao despotismo intelectual de homem nenhum”.
[29] E, dando mostras da rejeição das explicações qualitativas aristotélico-escolásticas dos fenómenos físicos e biológicos (que invocavam as formas substanciais e acidentais), escreve no Compêndio dos elementos de matemática: “A física verdadeira e que nestes tempos se cultiva não são os entes de razão, as possibilidades e as quimeras dos antigos, ociosas subtilezas do entendimento humano. Estudamos hoje a natureza pela observação e pelo cálculo. Os entes de razão não se medem por geometria; porém, esta ciência é o fundamento dos conhecimentos físicos que fazem o corpo da física moderna”.[30]
Entre os oratorianos a tendência antiperipatética e os voos no sentido da modernidade foram ainda mais acentuados, designadamente com João Baptista, certamente por influência de Vicente Tosca, oratoriano espanhol. Com ele é visível uma abertura face às doutrinas de Descartes, Gassendi, Locke e Newton, entre outros, relativas aos princípios gerais da matéria, aos fenómenos astronómicos, às espécies de corpos terrestres e suas propriedades, à natureza da alma e do corpo humano e suas relações. Dentro desta tendência, em função dos dados que as mais recentes experiências científicas possibilitavam, muitas teses da física e da metafísica tradicionais foram definitivamente rejeitadas, se bem que, pelas suas implicações teológicas, o problema das formas substanciais e acidentais dos corpos tenha sempre constituído uma dificuldade embaraçosa.
Mas, entre os oratorianos, as inovações tiveram naturalmente limites. Nos domínios da lógica e da metafísica os temas versados continuaram a ser por vezes os tradicionais, com desenvolvimentos semelhantes aos que se deparam nos autores jesuítas. Nomeadamente João Baptista, na Philosophia aristotelica restituta, ainda que tenha expressado o propósito de abreviar e suprimir assuntos supérfluos, não deixa de conceder mais duma centena de páginas, longas e densas, ao problema dos universais; por outro lado, o intuito de “restituir” Aristóteles é fundamentalmente um pretexto para provar que muitas das doutrinas dos modernos já se encontram no Estagirita, embora este não tenha de ser seguido à letra naquelas questões para as quais as novas experiências tinham encontrado soluções mais convincentes.
Com Luís A. Vernei é que a física aristotélica caiu totalmente em desfavor, porque “pela maior parte funda-se em suposições e não em provas”.
[31] Daí o acolhimento da metodologia de Newton, o que significava uma oposição ao “espírito de sistema” e às tentativas da razão em traçar planos do universo apenas hipotéticos e não baseados na experiência. O produto da opção pelos preceitos metodológicos newtonianos foi a realização da De re physica, que constitui um repositório do saber físico da época, sem transigência com as construções empiricamente infundadas dos peripatéticos, pois “quem recebe as experiências e, em virtude delas, quer discorrer, deve renunciar ao Perípato” e “quem abraça o Perípato deve renunciar às experiências”.[32]
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Finalmente, quanto à metafísica, ela continuou a ser em grande medida a ciência do “transcendente” (as divergências surgiram no que respeita à sua divisão). É sabido, porém, que o século XVIII manifestou, a nível europeu, a propensão para rejeitar a metafísica tradicional, carregada duma herança ontológica incompatível com as novas exigências críticas. Mas, condenada como fantasmagoria da transcendência, a metafísica foi recuperada como análise ideológica do conhecimento, incidindo sobre o estudo do espírito humano, não para lhe descobrir a natureza, mas para conhecer os seus poderes e os seus limites. O primeiro que explorou este domínio fundamental do conhecimento foi Locke, que reduziu a metafísica a uma física experimental da alma. Na sua peugada estão os nomes de Condillac e Hume. E a crítica kantiana da metafísica situa-se também na via aberta pelo Essay de Locke.
A par desta metafísica incidindo sobre os fundamentos da subjectividade cognoscitiva, o século XVIII considerou uma outra, respeitante à elucidação do saber acerca da realidade. É esta concepção que, no seio do pensamento português, está também presente em Vernei, para quem o objecto principal da metafísica está em “estabelecer as proposições gerais ou as primeiras verdades pertencentes a todas as disciplinas”.
[33] Por outras palavras, a metafísica propõe-se definir com clareza e precisão certos nomes sobre os quais uma ciência se apoia, pondo de lado as especulações subtis dos escolásticos. “Toda a metafísica útil se reduz a definir com clareza alguns nomes de que se servem os filósofos e a entender e perceber bem alguns axiomas ou proposições claras que pertencem aos ditos. E isto, em qualquer parte que se faça, deve-se compendiar muito e explicá-lo em poucas palavras, se quer que seja útil”.[34] A metafísica é assim um lexicon filosófico, podendo dizer-se que constitui “os prolegómenos a todas as ciências”.[35] Todas as disciplinas se servem de nomes como “essência”, “substância”, “causa”, “efeito”, “finito”, “infinito”, “ordem”, “fim”, etc., que a metafísica deve definir claramente, prescrevendo também certas regras para usá-los correctamente. Deste modo, a metafísica tornou-se uma teoria geral da ciência, ou antes de cada ciência, reduzida às suas proposições fundamentais. Esta acepção da metafísica é característica de muitas reflexões surgidas na época do Iluminismo, que se propunham dilucidar a questão das “primeiras verdades”, procurando esclarecer, dum modo claro e preciso, as afirmações fundamentais dos diversos saberes.[36]
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Após a expulsão dos jesuítas e a reforma pombalina da Universidade (1772), foi eliminada radicalmente dos currículos escolares a proeminência que, em certos meios, Aristóteles ainda mantinha. As preocupaçõess filosóficas moveram-se no sentido duma independência intelectual, requerida pelo experimentalismo e pelas práticas científicas de observação da natureza que se procuraram impor a nível universitário. Mas, por isso mesmo, acabou por vigorar um eclectismo de raiz empírico-sensista, isto é, um tipo de filosofia que sobrevalorizava o conhecimento sensível, pois esta era a opção mais adequada à nova mentalidade, voltada para o cultivo das ciências.[37] Assim se compreende que o empirismo de Locke tenha aparecido combinado com o sensismo de Condillac. E foi de facto esta tendência que acabou por impor-se no meio intelectual português, temperada pelo remanescente espiritualismo escolástico e pelo racionalismo de Leibniz e de Wolff. É assim significativo que o marquês de Pombal tenha feito adoptar, na Faculdade de Filosofia, as Instituições da lógica de Genovesi, em que a componente sensista predominava.Esta situação significou naturalmente um estreitamento das opções filosóficas nos finais do século. Por essa razão, a produção intelectual entrou em franco marasmo, a que não foi também estranha a convulsão política em que Portugal mergulhou desde então até ao triunfo liberal de 1834.

Notas

[1] A. M. Martins, Lógica e ontologia em Pedro da Fonseca, Coimbra, Faculdade de Letras, 1990, p. 16.
[2] Idem, p. 392.
[3] Os Conimbricenses designam também o ens mobile por “corpus mobile”, “corpus naturale” e “ens naturale”.
[4] B. Teles, Summa universae philosophiae, Lisboa 1652, p 1.
[5] Idem, p. 474.
[6] J. P. Gomes, “Crise da cultura em Portugal no século XVII?”, Brotéria, Lisboa, 33 (1941), pp. 289-296.
[7] F. Soares Lusitano, Cursus philosophicus, II, Évora, 1701, p. 11.
[8] Idem, pp. 329-330.
[9] M. Moraes, Cartesianismo em Portugal: António Cordeiro, Braga, Faculdade de Filosofia, 1966, pp. 81 ss.
[10] A. Cordeiro, Cursus philosophicus conimbricensis, II (In Phy.), Lisboa, 1713, nºs. 813-814, pp. 154-155; cfr. nº. 776, p. 147.
[11] Idem, nº. 3570, p. 665.
[12] S. Aranha, Disputationes metaphysicae, Coimbra, 1740, Ad lectorem.
[13] M. A. Fortes, Lógica racional, geométrica e analítica, Lisboa, 1744, p. IV.
[14] Idem, p. I; cfr Dedicatória.
[15] Idem, p. XX.
[16] Idem, Antel., p. XII.
[17] Idem, p. X.
[18] Idem, III, 4, p. 101; cfr. pp. 110-111.
[19] Idem, III, 4, p. 111.
[20] L. A. Vernei, Verdadeiro método de estudar, vol. III, ed. de A. Salgado Júnior, Lisboa, Sá da Costa, 1950, pp. 41-42.
[21] M. A. Fortes, op. cit., I, 2, p. 5.
[22] Cf. I. M. Bochenski, Historia de la lógica formal, ed. de M. Bravo Lozano, Madrid, Gredos, 1967, p. 271.
[23] Livro dos estatutos, provisões, privilégios e liberdades do Colégio das Artes, p. 138v.
[24] S. de Abreu, Conclusiones ex universa philosophia, Évora, 1754, p. 34.
[25] Idem, pp. 37 e 38.
[26] Idem, p. 39.
[27] Idem, p. 51.
[28] Idem, pp. 4 e 34.
[29] I. Monteiro, Philosophia libera seu eclectica rationalis et mechanica sensuum, II, Veneza, 1774, pp. 4-6.
[30] I. Monteiro, Compêndio dos elementos de matemática, vol. I, Coimbra, 1754, Prólogo ao leitor.
[31] L. A. Vernei, Verdadeiro método de estudar, p. 201.
[32] Idem, pp. 183-184.
[33] L. A. Vernei, De re metaphysica ad usum lusitanorum adolescentium, II, 5, Lisboa, 1765, p. 44. Posição semelhante é a de Teodoro de Almeida (Recreação filosófica ou diálogo sobre a metafísica, Lisboa, 1792, p. 10)
[34] L. A. Vernei, Verdadeiro método de estudar, pp. 155-156.
[35] L. A. Vernei, De re metaphysica, p. 45.
[36] Cf. D’Alembert, “Essais sur les éléments de philosophie ou sur les principes des connaissances humaines”, in Oeuvres, t. I, XV, Slatkine Reprints, Genebra, 1967, pp.294-295.; Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, Artigo “Métaphysique”.
[37] A. C. Homem, Do “Iluminismo” ao positivismo, Coimbra, 1981, pp. 13-14.

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