Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (UNICAMP)
Notas ao fim do texto
Certamente muitos de nós teremos presentes as palavras que Descartes dedica na sexta parte do Discurso do método aos dois procedimentos mais característicos da escolástica: a disputa e o comentário. A primeira, de acordo com o autor do Discurso, visa antes à verossimilhança do que à verdade e busca-se muito mais vencer a outra parte do que ponderar as razões de um e de outro lado.[1] Quanto aos comentadores, “estes são como a hera, que não sobe mais alto que as árvores que a sustentam, e que mesmo, frequentemente, desce depois de haver chegado até o seu mais alto ponto”.[2]
Descartes observa nesta segunda passagem que os comentadores descem, isto é, “tornam-se menos sábios do que se se abstivessem de estudar”, pois, “não contentes em saber tudo quanto é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, indo além, aí encontrar a solução de muitas dificuldades acerca das quais ele nada dissera e nas quais talvez nunca pensara”.
À parte a avaliação, Descartes refere-se de maneira bastante exata a duas funções do comentário medieval de textos: explicar o texto de um autor e fazer o conhecimento ir mais adiante. É o que já era expresso na conhecida imagem de Bernardo de Chartres:
“somos comparáveis a anões montados nos ombros de gigantes, o que nos possibilita ver mais coisas que os antigos e mais longínquas; não pela acuidade de nossa própria vista nem pela nossa grande estatura corporal, mas porque nos levantam e nos exaltam àquelas alturas pela sua grandeza gigantesca”.[3]
Na realidade, boa parte da literatura universitária medieval é constituída por comentários. Isto se deve, em boa medida, ao fato de que a aula era concebida como uma leitura e explicação de textos: era uma lectio. Leitura, não de qualquer texto ou de textos à escolha dos professores, mas de textos oficialmente designados: os textos dos autores, autênticos ou que faziam autoridade.[4] Daí o grande número de comentários do mesmo texto, como, por exemplo, dos IV livros das Sentenças de Pedro Lombardo, base, ao lado da Bíblia, do ensino da sagrada doutrina (teologia) do final do século XII ao XVI. É possível inclusive acompanhar o desenvolvimento de uma questão consultando o lugar apropriado desses comentários. Por exemplo, o estatuto do conhecimento científico era costumeiramente estudado no prólogo ou no início desses comentários das Sentenças.[5]
Um outro ponto que é preciso relembrar é que havia diferentes formas de comentário, sendo este um assunto sobre o qual ainda não se tem um levantamento suficientemente completo.[6] O século XIII conheceu um ressurgimento do comentário contínuo de um texto, comportando dois elementos: a explicação do texto (expositio) e discussões ligadas ao texto (quaestiones). Na segunda metade deste século os dois elementos se separam e tem-se então comentários contínuos (sententiae) e comentários per modum quaestionis. É, por exemplo, conhecida a declaração de Guilherme Tocco a respeito do ensino de Tomás de Aquino como bacharel sentenciário, comportando os comentários das Sentenças uma breve exposição do texto e numerosas questões:
“Quando frei Tomás começou, a título de bacharel, a expor no seu ensino as reflexões que durante a época de seu silêncio ele tinha acumulado em sua alma, viu-se-o sobressair acima de todos os mestres de Paris e, mais que os outros, atrair os estudantes para o amor do estudo. Nas suas lições ele introduzia novos artigos, resolvia as questões de maneira nova e mais clara, com novos argumentos. Em consequência, os que o ouviam ensinar teses novas e resolver as dúvidas com novas razões, não podiam duvidar de que Deus o tivesse iluminado com os raios de uma nova luz - com efeito pode-se ensinar ou escrever opiniões novas, se não se recebeu de Deus uma nova inspiração?”[7]
Quanto aos comentários contínuos, podemos recordar uma tipologia sumária proposta por R.-A. Gauthier.[8] Este distingue a sententia e a expositio: a primeira se interessa mais pelo que diz o texto comentado, isto é, pela sua doutrina; a segunda, pelo modo de se expressar esta doutrina, isto é, pelas próprias palavras do texto. De um outro ponto de vista, pode-se falar de outros tipos de comentário, como a reportatio e a lectura. A “reportação” é um texto recolhido por alguém que ouviu o comentário, sem que o mestre tenha feito uma revisão do texto. No segundo caso (leitura) intervém uma revisão do comentador.
Na realidade, a distinção entre sententia e expositio (doutrina e letra) não é rígida. Tanto assim que num comentário contínuo explicando frase por frase o texto de base, este é dividido em capítulos (posteriormente denominados lições). Um capítulo ou lição pode compreender: 1) uma divisão do texto (divisio textus), onde se mostra a ordem de suas partes; 2) uma explicação de cada uma das partes por meio de paráfrases, explicação de palavras difíceis ou mesmo uma interpretação em regra; 3) o desenvolvimento de pontos difíceis (notanda); 4) a parte final pode ser uma espécie de disputa (dubia).
E. Renan supôs que Tomás de Aquino tinha herdado esta técnica do comentário de Averróis, ao passo que Alberto Magno imitaria Avicena ao compor paráfrases de Aristóteles. Na verdade, Tomás recebeu esta técnica dos mestres da faculdade de artes (sobretudo da Universidade de Paris) que, por sua vez a herdaram dos processos já codificados na Antiguidade tardia.[9] Assim sendo, um comentário medieval está longe de ser uma exposição puramente histórica do texto comentado. Ele combina níveis distintos de leitura, procurando simultaneamente explicar um autor e pensar junto com ele. L.-B. Geiger já na década de cinquenta observa que:
“Resta muito a fazer para a exploração sistemática dos comentários, pela distinção notadamente entre as passagens destinadas a fixar, tão objetivamente quanto possível, o sentido do texto ou a intenção do autor, e aquelas que contêm o pensamento pessoal do comentador; estas últimas são quase sempre reconhecidas pelas fórmulas de introdução, tais como - “Et hujus ratio est...” ou ainda “Ad hoc considerandum est...””.[10]
Apresentamos em anexo dois exemplos particularmente claros e significativos desses desenvolvimentos pessoais da autoria de Tomás de Aquino. O primeiro relativo a uma espécie de dedução das categorias aristotélicas presente, tanto no seu comentário da Física como no da Metafísica aristotélicas. A tábua das dez categorias e sua justificação são introduzidas no comentário da Física para explicar como pode haver dois predicamentos referentes ao movimento (ação e recepção) e como é possível haver movimento em outros predicamentos (substância, qualidade, quantidade, onde). No comentário da Metafísica trata-se de explicar como o ser é dito de acordo consigo (esse secundum se).
O outro exemplo refere-se à justificação da distinção entre uma parte de uma ciência e uma ciência subalternada. Trata-se de um trecho do comentário dos Segundos Analíticos, Liv. I, cap. 25. Nos números 2, 4 e 6 Tomás introduz considerações que não estavam presentes no texto de Aristóteles para tornar tal distinção mais clara. Estas considerações, bem como as anteriores nos comentários da Física e da Metafísica, se iniciam com a cláusula indicada por Geiger. Aqui no comentário dos Segundos Analíticos Tomás de Aquino justifica de maneira explícita a situação do que ele denomina as “ciências intermediárias” entre a matemática e a física, isto é, das ciências que aplicam os princípios matemáticos à matéria sensível.[11]
Concluindo, relembraríamos uma característica da retórica filosófica da Idade Média e do mundo moderno. Na primeira, de um modo geral, é de mau tom alardear originalidade e novidade. No segundo, são frequentes os momentos em que este ou aquele pensador marca seu distanciamento do que se disse até então e indica sua intenção de trazer algo de novo e original. Não nos enganemos: comentando os antigos e, portanto, se inserindo numa longa tradição de pensamento, os medievais inovam quando menos esperamos; por outro lado, os modernos por vezes, no exato momento em que proclamam a novidade, se põem a copiar aqueles de quem cordialmente dizem se afastar.[12]
São Paulo, 15 de Julho de 1999
Notas ao fim do texto
Certamente muitos de nós teremos presentes as palavras que Descartes dedica na sexta parte do Discurso do método aos dois procedimentos mais característicos da escolástica: a disputa e o comentário. A primeira, de acordo com o autor do Discurso, visa antes à verossimilhança do que à verdade e busca-se muito mais vencer a outra parte do que ponderar as razões de um e de outro lado.[1] Quanto aos comentadores, “estes são como a hera, que não sobe mais alto que as árvores que a sustentam, e que mesmo, frequentemente, desce depois de haver chegado até o seu mais alto ponto”.[2]
Descartes observa nesta segunda passagem que os comentadores descem, isto é, “tornam-se menos sábios do que se se abstivessem de estudar”, pois, “não contentes em saber tudo quanto é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, indo além, aí encontrar a solução de muitas dificuldades acerca das quais ele nada dissera e nas quais talvez nunca pensara”.
À parte a avaliação, Descartes refere-se de maneira bastante exata a duas funções do comentário medieval de textos: explicar o texto de um autor e fazer o conhecimento ir mais adiante. É o que já era expresso na conhecida imagem de Bernardo de Chartres:
“somos comparáveis a anões montados nos ombros de gigantes, o que nos possibilita ver mais coisas que os antigos e mais longínquas; não pela acuidade de nossa própria vista nem pela nossa grande estatura corporal, mas porque nos levantam e nos exaltam àquelas alturas pela sua grandeza gigantesca”.[3]
Na realidade, boa parte da literatura universitária medieval é constituída por comentários. Isto se deve, em boa medida, ao fato de que a aula era concebida como uma leitura e explicação de textos: era uma lectio. Leitura, não de qualquer texto ou de textos à escolha dos professores, mas de textos oficialmente designados: os textos dos autores, autênticos ou que faziam autoridade.[4] Daí o grande número de comentários do mesmo texto, como, por exemplo, dos IV livros das Sentenças de Pedro Lombardo, base, ao lado da Bíblia, do ensino da sagrada doutrina (teologia) do final do século XII ao XVI. É possível inclusive acompanhar o desenvolvimento de uma questão consultando o lugar apropriado desses comentários. Por exemplo, o estatuto do conhecimento científico era costumeiramente estudado no prólogo ou no início desses comentários das Sentenças.[5]
Um outro ponto que é preciso relembrar é que havia diferentes formas de comentário, sendo este um assunto sobre o qual ainda não se tem um levantamento suficientemente completo.[6] O século XIII conheceu um ressurgimento do comentário contínuo de um texto, comportando dois elementos: a explicação do texto (expositio) e discussões ligadas ao texto (quaestiones). Na segunda metade deste século os dois elementos se separam e tem-se então comentários contínuos (sententiae) e comentários per modum quaestionis. É, por exemplo, conhecida a declaração de Guilherme Tocco a respeito do ensino de Tomás de Aquino como bacharel sentenciário, comportando os comentários das Sentenças uma breve exposição do texto e numerosas questões:
“Quando frei Tomás começou, a título de bacharel, a expor no seu ensino as reflexões que durante a época de seu silêncio ele tinha acumulado em sua alma, viu-se-o sobressair acima de todos os mestres de Paris e, mais que os outros, atrair os estudantes para o amor do estudo. Nas suas lições ele introduzia novos artigos, resolvia as questões de maneira nova e mais clara, com novos argumentos. Em consequência, os que o ouviam ensinar teses novas e resolver as dúvidas com novas razões, não podiam duvidar de que Deus o tivesse iluminado com os raios de uma nova luz - com efeito pode-se ensinar ou escrever opiniões novas, se não se recebeu de Deus uma nova inspiração?”[7]
Quanto aos comentários contínuos, podemos recordar uma tipologia sumária proposta por R.-A. Gauthier.[8] Este distingue a sententia e a expositio: a primeira se interessa mais pelo que diz o texto comentado, isto é, pela sua doutrina; a segunda, pelo modo de se expressar esta doutrina, isto é, pelas próprias palavras do texto. De um outro ponto de vista, pode-se falar de outros tipos de comentário, como a reportatio e a lectura. A “reportação” é um texto recolhido por alguém que ouviu o comentário, sem que o mestre tenha feito uma revisão do texto. No segundo caso (leitura) intervém uma revisão do comentador.
Na realidade, a distinção entre sententia e expositio (doutrina e letra) não é rígida. Tanto assim que num comentário contínuo explicando frase por frase o texto de base, este é dividido em capítulos (posteriormente denominados lições). Um capítulo ou lição pode compreender: 1) uma divisão do texto (divisio textus), onde se mostra a ordem de suas partes; 2) uma explicação de cada uma das partes por meio de paráfrases, explicação de palavras difíceis ou mesmo uma interpretação em regra; 3) o desenvolvimento de pontos difíceis (notanda); 4) a parte final pode ser uma espécie de disputa (dubia).
E. Renan supôs que Tomás de Aquino tinha herdado esta técnica do comentário de Averróis, ao passo que Alberto Magno imitaria Avicena ao compor paráfrases de Aristóteles. Na verdade, Tomás recebeu esta técnica dos mestres da faculdade de artes (sobretudo da Universidade de Paris) que, por sua vez a herdaram dos processos já codificados na Antiguidade tardia.[9] Assim sendo, um comentário medieval está longe de ser uma exposição puramente histórica do texto comentado. Ele combina níveis distintos de leitura, procurando simultaneamente explicar um autor e pensar junto com ele. L.-B. Geiger já na década de cinquenta observa que:
“Resta muito a fazer para a exploração sistemática dos comentários, pela distinção notadamente entre as passagens destinadas a fixar, tão objetivamente quanto possível, o sentido do texto ou a intenção do autor, e aquelas que contêm o pensamento pessoal do comentador; estas últimas são quase sempre reconhecidas pelas fórmulas de introdução, tais como - “Et hujus ratio est...” ou ainda “Ad hoc considerandum est...””.[10]
Apresentamos em anexo dois exemplos particularmente claros e significativos desses desenvolvimentos pessoais da autoria de Tomás de Aquino. O primeiro relativo a uma espécie de dedução das categorias aristotélicas presente, tanto no seu comentário da Física como no da Metafísica aristotélicas. A tábua das dez categorias e sua justificação são introduzidas no comentário da Física para explicar como pode haver dois predicamentos referentes ao movimento (ação e recepção) e como é possível haver movimento em outros predicamentos (substância, qualidade, quantidade, onde). No comentário da Metafísica trata-se de explicar como o ser é dito de acordo consigo (esse secundum se).
O outro exemplo refere-se à justificação da distinção entre uma parte de uma ciência e uma ciência subalternada. Trata-se de um trecho do comentário dos Segundos Analíticos, Liv. I, cap. 25. Nos números 2, 4 e 6 Tomás introduz considerações que não estavam presentes no texto de Aristóteles para tornar tal distinção mais clara. Estas considerações, bem como as anteriores nos comentários da Física e da Metafísica, se iniciam com a cláusula indicada por Geiger. Aqui no comentário dos Segundos Analíticos Tomás de Aquino justifica de maneira explícita a situação do que ele denomina as “ciências intermediárias” entre a matemática e a física, isto é, das ciências que aplicam os princípios matemáticos à matéria sensível.[11]
Concluindo, relembraríamos uma característica da retórica filosófica da Idade Média e do mundo moderno. Na primeira, de um modo geral, é de mau tom alardear originalidade e novidade. No segundo, são frequentes os momentos em que este ou aquele pensador marca seu distanciamento do que se disse até então e indica sua intenção de trazer algo de novo e original. Não nos enganemos: comentando os antigos e, portanto, se inserindo numa longa tradição de pensamento, os medievais inovam quando menos esperamos; por outro lado, os modernos por vezes, no exato momento em que proclamam a novidade, se põem a copiar aqueles de quem cordialmente dizem se afastar.[12]
São Paulo, 15 de Julho de 1999
Anexo I[13]
Tomás de Aquino
Sentença do livro da Física, liv. III, lição 5ª, 600-616/626-631
600 - Depois que o Filósofo mostrou que o movimento é o ato do móvel e do movente, levanta agora uma certa dúvida acerca do que precede. Primeiro, levanta a dúvida. Em segundo lugar, a resolve onde diz “E nem o ato”. Acerca do primeiro faz duas considerações. Primeiro, antepõe algo à dúvida. Em segundo lugar, expõe a dúvida onde diz “Visto, portanto, que ambas”.
601 - Diz, portanto, primeiro que o que foi dito tem um defeito, isto é, uma dúvida razoável, isto é, lógica; com efeito, há razões prováveis para ambas as partes. No entanto, antepõe a esta dúvida o seguinte: que algum ato é do ativo e algum ato é do passivo, como foi dito acima (597) que algum ato é tanto do movente como do movido. De fato, o ato do ativo chama-se ação e o ato do passivo chama-se recepção. Prova isto porque o que é a obra e o fim do que quer que seja é seu ato e perfeição; donde, como a obra e o fim do agente é a ação e a do paciente a recepção como é manifesto por si, segue-se o que se disse, que a ação é o ato do agente e a recepção do paciente.
602 - Em segundo lugar, onde diz “Visto, portanto, que ambas”, expõe a dúvida. É, de fato, manifesto que tanto a ação como a recepção são movimento; com efeito, uma e outra é o mesmo que o movimento; portanto, ou a ação e a recepção são o mesmo movimento ou são movimentos diversos. Se são diversos, é necessário que um e outro esteja em algum sujeito; portanto, ou um e outro está no paciente e movido, ou um destes, a saber, a ação está no agente e outro, a saber, a recepção está no paciente. Se, porém, alguém disser pelo contrário, que o que está no agente é a recepção e o que está no paciente é a ação, é manifesto que fala equivocamente; com efeito, o que é recepção chamará de ação e vice-versa.
603 - Ora, parece que omite uma quarta parte, a saber, que um e outro esteja no agente. Omite isto, pois foi mostrado (591-595) que o movimento está no móvel, pelo que esta parte, que nenhum esteja no paciente e ambos no agente, é excluída.
604 - A partir destas duas partes que menciona, primeiro expõe o segundo onde diz “No entanto, se é isto”.
Com efeito, se alguém disser que a ação está no agente e a recepção no paciente; visto, a ação, como foi dito (602), ser um certo movimento, segue-se que o movimento esteja no movente. Ora, é preciso que a mesma determinação caiba ao movente e ao movido, quer dizer, que se o movimento estiver em não importa qual deles, ele se mova. Ou a mesma determinação cabe ao movente e ao movido, bem como ao paciente e ao agente. Ora, em não importa o que está o movimento, este se move. Pelo que, segue-se, ou que todo movente se mova, ou que algo tenha movimento e não se mova; dos quais, ambos parecem inaceitáveis.
605 - Depois, quando diz “Se porém uma e outra” expõe a outra parte, dizendo que, se alguém disser que uma e outra, isto é, a ação e a recepção, visto serem dois movimentos, estão no paciente e movido; tanto a docência que é da parte do docente quanto a doutrina que é parte do discente, estão no discente, seguem-se duas incongruências. A primeira das quais é, porque foi dito (601) que a ação é ato do agente. Se, portanto, a ação não está no agente mas no paciente, seguir-se-á que o ato próprio de cada um não está naquilo do qual é ato. Depois, seguir-se-á outra incongruência, a saber, que algo um e o mesmo, mova-se de acordo com dois movimentos. Com efeito, a ação e a recepção são agora supostas ser dois movimentos; ora, no que quer que seja que haja movimento, isto move-se de acordo com este movimento. Se, portanto, a ação e a recepção estão no móvel, segue-se que o móvel move-se de acordo com dois movimentos.
606 - Isto seria como se houvesse duas alterações de um sujeito que terminassem numa espécie; assim como se um sujeito se movesse por dois embranquecimentos, o que é impossível. Que, no entanto, o mesmo sujeito se mova simultaneamente por duas alterações, quer dizer, pelo embranquecimento e pelo aquecimento, para diversas espécies acabadas, não é incongruente. Ora, é manifesto que a ação e a recepção terminam na mesma espécie; com efeito, o que o agente age é o mesmo que o paciente sofre.
607 - Depois, quando diz “Ora, o ato será um?” desenvolve a outra parte. De fato, alguém pode dizer que a ação e a recepção não são dois movimentos mas um. A partir disto leva a quatro inconvenientes. Dos quais, o primeiro é que o mesmo seja ato de diversos de acordo com a espécie. Com efeito, foi dito (601) que a ação é ato do agente e a recepção ato do paciente, os quais são diversos de acordo com a espécie. Portanto, se a ação e a recepção forem o mesmo movimento, segue-se que o mesmo seja ato de diversos de acordo com a espécie. O segundo inconveniente é que, se a ação e a recepção forem um movimento, a ação será o mesmo que a recepção e a docência, que está da parte do docente, com a doutrina na medida em que se situa da parte do discente. O terceiro inconveniente é que o agir seja o mesmo que sofrer e ensinar o mesmo que aprender. O quarto que se segue disto é que todo docente aprende e todo agente sofre.
608 - Depois, quando diz “Mas, nem o ato de outro”, resolve a dúvida apresentada. Com efeito, é manifesto a partir do que foi determinado acima (596, 598), que a ação e a recepção não são dois movimentos mas um e o mesmo movimento. De fato, na medida em que é a partir do agente, é denominado ação e, na medida em que está no paciente, é denominado recepção.
609 - Donde, não ser preciso resolver os inconvenientes que se seguem à primeira parte, na qual se supunha que a ação e a recepção fossem dois movimentos, exceto um que permanece como devendo ser resolvido, mesmo supondo que a ação e a recepção sejam um movimento; pois, uma vez que a ação é o ato do agente, como foi dito acima (601), se a ação e a recepção são um movimento, segue-se que o ato do agente esteja de um certo modo no paciente e, assim, o ato de um estará em outro. Por outro lado, quatro inconvenientes seguem-se da outra parte; restam, assim, cinco inconvenientes que devem ser resolvidos.
610 - Diz, portanto, primeiro que não é inconveniente que o ato de um esteja em outro, pois a docência é o ato do docente e, no entanto, a partir dele, tende continuamente e sem nenhuma interrupção para outro. Donde, o mesmo ato ser desta maneira, isto é, do agente, como do a partir de que; e, no entanto, está no paciente como recebido nele. Haveria inconveniente se o ato de um, do modo como é ato dele, estivesse em outro.
611 - Em segundo lugar, onde diz “Nem um de dois”, resolve outro inconveniente, a saber, que o mesmo fosse ato de dois. Diz que nada proíbe que um seja ato de dois, de tal modo que não seja um e o mesmo movimento de acordo com a noção, mas um de acordo com a coisa, como foi dito acima (599) que a distância de dois para um e de um para dois é a mesma e a do que está em potência para o agente e reciprocamente. Assim, pois, o mesmo ato, de acordo com a coisa, é de dois, de acordo com uma noção diversa; com efeito, é do agente na medida em que é a partir dele, e no entanto, é do paciente na medida em que está nele.
612 - Responde, porém, em ordem inversa aos outros três inconvenientes, dos quais um era deduzido do outro.
A saber, primeiro àquele que era introduzido por último como o mais inconveniente. Assim, pois, em terceiro lugar, responde ao quinto inconveniente. Diz que não é necessário que o docente aprenda ou que o agente padeça, embora agir e sofrer sejam o mesmo. Digamos, porém, que não são o mesmo como os cuja noção é una, como a túnica e a roupa, mas como os que são o mesmo quanto ao sujeito e diversos de acordo com a noção, como a estrada de Tebas a Atenas e de Atenas a Tebas, como foi dito antes (599, 611). Pois, não é preciso que tudo que é o mesmo caiba aos que, de qualquer modo que seja, são o mesmo, mas apenas a aqueles que são o mesmo quanto ao sujeito ou à coisa e quanto à noção. Por isso, mesmo dado que agir e sofrer sejam o mesmo, como não são o mesmo quanto à noção, como foi dito (611), não se segue que a não importa o que caiba o agir, caiba-lhe o sofrer.
613 - Em quarto lugar, quando diz “No entanto, nem se a docência”, responde ao quarto inconveniente.
Diz que não se segue que ensinar e aprender seriam o mesmo, ainda que a docência e a doutrina do discente fossem o mesmo. Pois, a docência e a doutrina são ditas em abstrato e ensinar e aprender em concreto. Donde, serem aplicados aos fins ou termos de acordo com os quais é tomada a noção diversa da ação e da recepção. Assim como, embora digamos que, considerando abstratamente, o intervalo de alguns que distam entre si é o mesmo, se aplicamos aos termos do intervalo, assim como dizemos que dista daqui para lá e de lá para cá, não é um e o mesmo.
614 - Em quinto lugar, quando diz “Cabe absolutamente dizer”, responde ao terceiro inconveniente destruindo esta ilação pela qual concluía-se que, se a ação e a recepção são um movimento, a ação e a recepção são o mesmo. Diz que finalmente cabe dizer que não se segue que a ação e a recepção sejam o mesmo, ou que a docência e a doutrina; mas que o movimento no qual se encontram uma e outra é o mesmo. O qual movimento, é, com efeito, ação de acordo com uma noção e recepção de acordo com outra noção. Com efeito, é distinto de acordo com a noção, ser ato deste, como neste, e ser ato deste, como a partir deste. Ora, o movimento é denominado ação na medida em que é ato do agente, como a partir deste; é, no entanto, denominado recepção na medida em que é ato do paciente, como neste. É, assim, patente que, embora o movimento do movente e do movido sejam o mesmo, pelo fato de que abstrai de ambas noções, a ação e a recepção diferem pelo fato de que incluem em sua significação estas noções diversas.
615 - A partir disso fica visível que, como o movimento abstrai da noção de ação e de recepção, não está contido nem no predicamento da ação nem no predicamento da recepção, como alguns disseram.
616 - Resta, no entanto, uma dupla dúvida a este respeito, de fato, a primeira, pois, se a ação e a recepção são um movimento e não diferem senão de acordo com a noção, como foi dito (599, 611-612), parece que não devem ser dois predicamentos, visto os predicamentos serem gêneros das coisas. Também, se o movimento, ou é ação ou recepção, não se encontrará movimento na substância, na qualidade, na quantidade e no onde, como foi dito acima (563), mas estará contido apenas na ação e recepção.
626 - É, assim, patente que, embora o movimento seja um, os predicamentos que são tomados de acordo com o movimento são dois, na medida em que denominações predicamentais são feitas a partir de diversas coisas exteriores. Pois, o agente é uma coisa a partir da qual, como a partir do exterior, toma-se por modo de denominação, o predicamento da recepção, e outra coisa é o paciente, a partir da qual o agente é denominado. Assim, fica patente a solução da primeira dúvida.
627 - Por outro lado, a segunda dúvida resolve-se com facilidade. Pois, a noção de movimento completa-se não apenas pelo que cabe ao movimento na natureza das coisas, mas também pelo que a razão apreende. Com efeito, do movimento na naturezas das coisas nada mais há que o ato imperfeito, que é um certo começo do ato perfeito no que é movido, como no que é branqueado já começa a haver algo da brancura.
628 - Ora, para que este imperfeito tenha a noção de movimento requer-se ulteriormente que o intelijamos como intermediário entre dois, dos quais o precedente compara-se a ele como a potência ao ato, donde o movimento ser dito ato; o consequente, porém, compara-se a ele como o perfeito ao imperfeito ou o ato à potência, e por isso, é dito ato do existente em potência, como acima (561-562, 568, 575-576, 584-585, 587, 594) foi dito. Donde, não importa qual imperfeito que seja considerado como não tendendo para outro perfeito, é dito termo do movimento e não haverá movimento de acordo com o qual algo se mova, como se algo começar a branquear e a alteração se interromper imediatamente.
629 - Portanto, quanto a aquilo que há do movimento na natureza das coisas, o movimento é colocado por redução no gênero que termina o movimento, assim como o imperfeito reduz-se ao perfeito como foi dito acima (552). Mas, quanto a aquilo que a razão apreende acerca do movimento, a saber, que é um certo intermediário entre dois termos, deste modo já implica a noção de causa e efeito, pois algo ser reconduzido da potência ao ato não se dá senão a partir de alguma causa agente. De acordo com isto, o movimento pertence ao predicamento da ação e da recepção; com efeito, estes dois predicamentos são considerados de acordo com a noção da causa agente e do efeito, como foi dito (620).
630 - Depois, quando diz “Então, o que pois o movimento”, define o movimento em particular. Diz que foi dito o que é o movimento tanto em universal como em particular; porque, a partir daquilo que foi dito da definição do movimento em universal, poderá ser manifesto como se define em particular. Pois, se o movimento é o ato do móvel na medida em que é tal, segue-se que a alteração é o ato do alterável na medida em que é tal, e assim por diante.
631 - Porque foi considerado na dúvida (601-607) se o movimento é ato do movente ou do móvel, e foi mostrado (614) que é ato do ativo como a partir dele, e do passivo como nele, para suprimir toda dúvida, digamos um pouco mais manifestamente que o movimento é o ato da potência do ativo e do passivo. Assim, poderemos também dizer em particular que a edificação é o ato do edificador e do edificável na medida em que é tal e dá-se semelhantemente acerca da medicação e dos outros movimentos.
627 - Por outro lado, a segunda dúvida resolve-se com facilidade. Pois, a noção de movimento completa-se não apenas pelo que cabe ao movimento na natureza das coisas, mas também pelo que a razão apreende. Com efeito, do movimento na naturezas das coisas nada mais há que o ato imperfeito, que é um certo começo do ato perfeito no que é movido, como no que é branqueado já começa a haver algo da brancura.
628 - Ora, para que este imperfeito tenha a noção de movimento requer-se ulteriormente que o intelijamos como intermediário entre dois, dos quais o precedente compara-se a ele como a potência ao ato, donde o movimento ser dito ato; o consequente, porém, compara-se a ele como o perfeito ao imperfeito ou o ato à potência, e por isso, é dito ato do existente em potência, como acima (561-562, 568, 575-576, 584-585, 587, 594) foi dito. Donde, não importa qual imperfeito que seja considerado como não tendendo para outro perfeito, é dito termo do movimento e não haverá movimento de acordo com o qual algo se mova, como se algo começar a branquear e a alteração se interromper imediatamente.
629 - Portanto, quanto a aquilo que há do movimento na natureza das coisas, o movimento é colocado por redução no gênero que termina o movimento, assim como o imperfeito reduz-se ao perfeito como foi dito acima (552). Mas, quanto a aquilo que a razão apreende acerca do movimento, a saber, que é um certo intermediário entre dois termos, deste modo já implica a noção de causa e efeito, pois algo ser reconduzido da potência ao ato não se dá senão a partir de alguma causa agente. De acordo com isto, o movimento pertence ao predicamento da ação e da recepção; com efeito, estes dois predicamentos são considerados de acordo com a noção da causa agente e do efeito, como foi dito (620).
630 - Depois, quando diz “Então, o que pois o movimento”, define o movimento em particular. Diz que foi dito o que é o movimento tanto em universal como em particular; porque, a partir daquilo que foi dito da definição do movimento em universal, poderá ser manifesto como se define em particular. Pois, se o movimento é o ato do móvel na medida em que é tal, segue-se que a alteração é o ato do alterável na medida em que é tal, e assim por diante.
631 - Porque foi considerado na dúvida (601-607) se o movimento é ato do movente ou do móvel, e foi mostrado (614) que é ato do ativo como a partir dele, e do passivo como nele, para suprimir toda dúvida, digamos um pouco mais manifestamente que o movimento é o ato da potência do ativo e do passivo. Assim, poderemos também dizer em particular que a edificação é o ato do edificador e do edificável na medida em que é tal e dá-se semelhantemente acerca da medicação e dos outros movimentos.
Sentença do livro da Metafísica, liv. V, lição 9ª, 885-889/893-897.
885 - Aqui o filósofo distingue de quantos modos o ente é dito. E a este respeito faz uma tríplice distinção. Primeiro, distingue o ente em ente por si e por acidente. Em segundo lugar, distingue os modos do ente por acidente onde diz “Com efeito, de acordo com a acidente etc.”. Em terceiro, os modos do ente por si onde diz “De acordo consigo, porém”. Diz, portanto, que algum ente é dito de acordo consigo e algum de acordo com o acidente. É preciso, no entanto, saber que esta divisão do ente não é a mesma que aquela divisão pela qual o ente é dividido em substância e acidente. O que é patente pelo seguinte, pois ele divide posteriormente o ente de acordo consigo em dez predicamentos, dos quais nove são do gênero do acidente. Portanto, o ente divide-se em substância e acidente de acordo com a consideração absoluta do ente, assim como a própria brancura considerada em si é dita acidente e o homem substância. Mas é preciso tomar o ente de acordo com o acidente, tal como é tomado aqui, por comparação do acidente com a substância. A qual comparação é de fato significada pelo verbo “é”, quando se diz “o homem é branco”. Donde, este todo “o homem é branco” ser ente por acidente. Donde ser patente que a divisão do ente de acordo consigo e de acordo com o acidente é percebida na medida em que algo é predicado de algo por si ou por acidente. No entanto, a divisão do ente em substância e acidente é percebida de acordo com o fato de que algo na sua natureza é substância ou acidente.
886 - Em seguida, quando diz “de acordo com o acidente” mostra de quantos modos o ente é dito por acidente, e diz que de três: dos quais um é quando o acidente é predicado do acidente como quando se diz “o justo é músico”. O segundo quando o acidente é predicado do sujeito, como quando se diz que “o homem é músico”. O terceiro, quando o sujeito é predicado do acidente, como quando se diz que “o músico é homem”. E como já mostrou antes como a causa por acidente difere da causa por si, por isso, mostra agora consequentemente o ente por acidente pela causa por acidente.
887 - E diz que, assim como ao indicar a causa por acidente dizemos que o músico constrói, pelo fato de que o músico é acidental ao construtor, ou ao contrário, pois consta “que isto ser isto”, isto é, o músico construir, nada mais significa do que “isto é acidental a isto”, assim também é nos modos supracitados do ente por acidente, quando dizemos que “o homem é músico”, predicando o acidente do sujeito; ou “o músico é homem”, predicando o sujeito do acidente; ou “o branco é músico”, ou ao contrario, isto é, “o músico é branco”, predicando o acidente do acidente. Em tudo isso, com efeito, “ser” nada mais significa do que “ser acidental”. “Isto, com efeito”, isto é, quando o acidente é predicado do acidente, significa que ambos os acidentes são acidentes do mesmo sujeito; “aqui porém, isto é, quando o acidente é predicado do sujeito, diz-se que é, “porque ao ente”, isto é, para o sujeito o acidente é acidental. Mas, dizemos que “o músico é homem”, “porque a este”, isto é, ao predicado é acidental o músico que é posto no sujeito. E há como que uma razão semelhante de predicação, quando o sujeito é predicado do acidente e o acidente do acidente. Com efeito, assim como o sujeito é predicado do acidente pela razão de que o sujeito é predicado daquilo que é posto no sujeito, ao qual o acidente é acidental; assim também o acidente é predicado do acidente porque é predicado do sujeito do acidente. E por isso, assim como se diz que “o músico é homem”, igualmente se diz que “o músico é branco”, pois, de fato, aquilo a que é acidental ser músico, isto é, o sujeito, é branco.
888 - É, portanto, patente que o que é dito ser de acordo com o acidente, é dito por uma tríplice razão. Ou “porque ambos”, isto é, o sujeito e o predicado encontram-se no mesmo, como quando o acidente é predicado do acidente; ou “porque aquilo”, isto é, o predicado, por exemplo, “músico” “encontra-se no ente”, isto é, no sujeito, que é dito ser músico; e isto se dá quando o acidente é predicado do sujeito; ou “porque aquilo”, isto é, o sujeito posto no predicado é aquilo no qual se encontra o acidente, do qual acidente aquilo, isto é, o sujeito é predicado. E isto se dá quando o sujeito é predicado do acidente, como quando dizemos “o músico é homem”.
889 - Em seguida, quando diz “de acordo consigo”, distingue o modo do ente por si. A este respeito faz uma tríplice distinção. Primeiro, distingue, pelos dez predicamentos, o ente que é fora da alma, que é o ente perfeito. Em segundo ligar, estabelece outro modo do ente, na medida em que é apenas na mente, quando diz “Ademais, porém, ser significa também”. Em terceiro lugar, divide o ente pela potência e o ato; e o ente assim dividido é mais abrangente que o ente perfeito, pois, o ente em potência é ente apenas sob um certo aspecto e imperfeito, onde diz “Ademais, ser significa também o ente”. Diz, portanto, primeiro que é dito ser de acordo consigo tudo o que as figuras da predicação significam.
893 - Como, porém, alguns são predicados, nos quais não é aposto de maneira manifesta o verbo “é”, para que não se creia que estas predicações não pertencem à predicação do ente, como quando se diz “o homem anda”, por isso remove isto em consequência, dizendo que em todas as predicações deste tipo é significado que algo é. De fato, qualquer verbo decompõe-se no verbo “é” e no particípio; pois, em nada difere dizer que “o homem é convalescente” e “o homem convalesce”. Donde, ser patente que o ente se diz de tantos modos quantos forem os modos de se fazer a predicação.
894 - Nem é verdade o que Avicena diz, que os predicados que estão nos gêneros do acidente significam principalmente a substância e secundariamente o acidente, assim como isto que digo “branco” e “músico”. Pois, “branco” como é dito nos predicamentos significa apenas uma qualidade. No entanto, este nome “branco” significa por consequência o sujeito, na medida em que significa “brancura” a modo de acidente. Donde, ser preciso que por consequência inclua em sua noção o sujeito. De fato, “brancura”, embora signifique um acidente, não o significa a modo de acidente, mas a modo de substância. Donde, não significar de modo nenhum o sujeito. Com efeito, se significasse principalmente o sujeito, então os predicados acidentais não seriam postos pelo Filósofo sob o ente de acordo consigo, mas sob o ente de acordo com o acidente. Pois, este todo que é o “homem branco” é um ente de acordo com o acidente, como foi dito.
895 - Depois, quando diz “ademais, no entanto”, estabelece outro modo do ente, na medida em que “ser” e “é” significam a composição da proposição que o intelecto que compõe e divide faz. Donde, dizer que “ser” significa a verdade da coisa. Ou, como outra tradução comporta melhor “que significa o ser” porque algum enunciado é verdadeiro. Donde, a verdade da proposição poder ser dita verdade da coisa pela causa. Pois, pelo fato de que a coisa é ou não é, a oração é verdadeira ou falsa. De fato, quando dizemos que algo é, significamos que a proposição é verdadeira e quando dizemos que não é, significamos que não é verdadeira, e isto, quer ao afirmar quer ao negar. Ao afirmar, com efeito, assim como dizemos que “Sócrates é branco”, pois isto é verdadeiro. Ao negar, porém, como “Sócrates não é branco”, pois isto é verdadeiro, isto é, ele próprio ser não-branco. E igualmente dizemos que a diagonal incomensurável com o lado do quadrado não é, pois isto é falso, a saber, não ser ela própria não-comensurável.
896 - É preciso, no entanto, saber que este segundo modo compara-se ao primeiro como o efeito à causa. Com efeito, pelo fato de que algo é na natureza das coisas, segue-se a verdade e falsidade na proposição, a qual o intelecto significa pelo verbo “é”, na medida em que é a cópula verbal. Mas, como o intelecto considera como um certo ente algo que em si é um não-ente, assim como a negação e similares, por isso às vezes o ser é dito de algo, deste segundo modo e não do primeiro. Diz-se, com efeito, que “a cegueira é” deste segundo modo, pelo fato de que é verdadeira a proposição pela qual algo é dito ser cego; mas, não se diz que seja verdadeira do primeiro modo. Pois, a cegueira não tem algum ser nas coisas, mas é antes uma privação de algum ser. É, porém, acidental a uma coisa que algo seja afirmado verdadeiramente dela pelo intelecto ou pela voz. Pois, a coisa não se refere à ciência, mas ao contrário. No entanto, o ser que toda coisa tem na sua natureza é substancial. Por isso, quando se diz que “Sócrates é”, se este “é” for tomado do primeiro modo, é acerca do predicado substancial. Pois, o ente está mais acima de qualquer ente, assim como o animal para com o homem. Se, porém, for tomado do segundo modo, é acerca do predicado acidental.
897 - Depois, quando diz, “Além disso, o ser” estabelece a distinção do ente pelo ato e a potência, ao dizer que o ente e o ser significam algo dizível ou enunciável em potência, ou dizível em ato. Com efeito, em todos os termos supracitados, que significam os dez predicamentos, algo é dito em ato e algo em potência. E, a partir disto, acontece que cada predicamento é dividido pelo ato e a potência. E, assim como nas coisas, que estão fora da alma, algo é dito em ato e algo em potência, assim também nos atos da alma e nas privações que são coisas de razão apenas. Com efeito, diz-se que “alguém sabe” porque pode usar a ciência e porque a usa; igualmente “em repouso ”porque o repousar já se encontra nele e porque pode repousar. E isto não se dá apenas nos acidentes, mas também nas substâncias. “Com efeito, dizemos que Mercúrio”, isto é, uma estátua de Mercúrio, está em potência na pedra e dizemos que a metade de uma linha está em potência na linha. Com efeito, qualquer parte do contínuo está potencialmente no todo. Ora, a linha é colocada entre as substâncias de acordo com a opinião dos que sustentam que as entidades matemáticas são substâncias, que ainda não criticara. Diz-se também que o trigo, quando ainda não está maduro, como quando está na espiga, é em potência. No entanto, quando algo está em potência e quando não está em potência, será determinado em outro lugar, isto é, no livro IX desta obra.
Anexo II[14]
TOMÁS DE AQUINO
Exposição sobre os Segundos Analíticos de Aristóteles, livro I, lição 25.
(1) De outro modo, porém, difere etc... depois que o Filósofo mostrou como a demonstração do quê difere da demonstração do porquê na mesma ciência, mostra aqui como diferem em ciências diversas.
A tal respeito faz duas coisas. Primeiro propõe o que pretende, dizendo que o porquê difere do quê de um modo distinto dos já tratados, pelo fato de que são considerados em ciências distintas, isto é, que a uma ciência pertence saber o porquê e a outra ciência pertence saber quê.
Em segundo lugar, quando diz: Tais são etc. manifesta o proposto. E a tal respeito faz duas coisas: primeiro manifesta o proposto nas ciências em que uma está sob a outra; em segundo lugar nas ciências em que uma não está sob a outra quando diz: Enfim, muitas ciências que não são subordinadas, etc.
A respeito do primeiro, faz duas coisas: primeiro mostra como se comportam entre si as ciências das quais uma está sob a outra, a uma das quais pertence o porquê e à outra o quê; em segundo lugar mostra como nas pré-citadas ciências, o porquê pertence a uma delas e o quê a outra, quando diz: Aqui, com efeito, o conhecimento do quê etc. A respeito do primeiro faz duas coisas: primeiro mostra como as supracitadas ciências se comportam entre si segundo a ordem; em segundo lugar, mostra como se comportam entre si segundo a concordância, quando diz: Certas destas ciências são quase unívocas etc.
(2) Diz, portanto, em primeiro lugar que tais ciências (isto é, aquelas a uma das quais pertence o quê e à outra o porquê) são todas aquelas que se comportam de tal maneira entre si que uma está sob uma outra. Ora, é preciso entender que uma ciência está sob uma outra de duas maneiras. De um primeiro modo, quando o “sujeito” de uma ciência é uma espécie do “sujeito” da ciência superior, assim como o animal é uma espécie do corpo natural, e por isso a ciência dos animais está sob a ciência natural. De outro modo, quando o “sujeito” da ciência inferior não é uma espécie do “sujeito” da ciência superior; mas o “sujeito” da ciência inferior se compara ao “sujeito” da superior como o material em relação ao formal.
E é desta maneira que Aristóteles considera aqui que uma ciência está sob uma outra, assim como a especulativa, isto é, a perspectiva se comporta em relação à geometria. Com efeito, a geometria trata da linha e das outras extensões; a perspectiva, porém, trata da linha determinada a uma matéria, isto é, da linha visual. Ora, a linha visual não é uma espécie da linha pura a simples, assim como o triângulo de madeira não é uma espécie do triângulo. Com efeito, ser de madeira não é uma diferença do triângulo. A mecânica, isto é, a ciência da fabricação de máquinas e engenhos, comporta-se de maneira semelhante para com a estereometria, isto é, a ciência que trata das mensurações dos corpos. E diz-se que esta ciência está sob uma ciência, pela aplicação do formal ao material. Pois as medidas dos corpos pura e simplesmente comparam-se às medidas das madeiras e dos outros materiais requeridos para as máquinas e engenhos por aplicação do formal ao material. E a harmônica, isto é, a música, comporta-se de maneira semelhante para com a aritmética. Pois a música aplica o número formal (que o aritmético considera) à matéria, isto é, aos sons.
Comporta-se de maneira semelhante a aparência, isto é, a ciência naval que considera os sinais aparentes de calmaria ou de tempestade, para com a astronomia, que considera os movimentos e as posições dos astros.
(3) Depois, quando diz: Certas destas ciências são quase unívocas etc., mostra como se comportam entre si as pré-citadas ciências segundo a concordância, dizendo que tais ciências são quase unívocas entre si. Diz "quase" porque concordam no nome do gênero e não no nome da espécie. Com efeito todas as pré-citadas ciências são chamadas de matemáticas; algumas porque tratam de um “sujeito” abstraído da matéria, como a geometria e aritmética, que são pura e simplesmente matemáticas; outras por aplicação dos princípios matemáticos às coisas materiais, assim como a astronomia é chamada de matemática e também a ciência naval, e igualmente a harmônica, isto é, a música é chamada de matemática e também a que procede segundo o ouvido, isto é, a prática da música, que conhece os sons pela experiência do ouvido. Ou pode dizer-se que são unívocas, porque concordam até no nome da espécie. Pois a (ciência) naval é chamada de astronomia e a prática da música é chamada de música. Diz, porém “quase” porque tal não acontece em todas (estas ciências) mas em várias.
Depois quando diz: Aqui, com efeito, o conhecimento do quê etc., manifesta, como nas pré-citadas ciências, a uma delas pertence o quê e à outra o porquê. A este respeito faz duas coisas: primeiro, mostra como cabe às ciências que contêm outras sob si dizer o porquê; em segundo lugar, como cabe às ciências que estão contidas sob elas dizer o porquê a respeito de outras ciências, quando diz: Está porém para a perspectiva assim como esta etc. Deve, portanto, saber-se a respeito do primeiro que em todas as ciências supracitadas, aquelas que estão contidas sob outras aplicam os princípios matemáticos ao sensível. Aquelas porém que contêm sob si as outras são mais matemáticas. Por isso o Filósofo diz primeiro que cabe aos sensíveis, isto é, às ciências inferiores que aplicam ao sensível conhecer o quê; mas saber o porquê cabe aos matemáticos, isto é, às ciências cujos princípios são aplicados ao sensível. Cabe a estas, com efeito, demonstrar o que é assumido como causa nas ciências inferiores. E como alguém poderia crer que quem conhecesse o porquê, necessariamente conheceria também o quê, remove isto em seguida, dizendo que muitas vezes os que sabem o porquê ignoram o quê. Manifesta isto por meio de um exemplo: os que consideram o universal, muitas vezes ignoram certos singulares pelo fato de não aplicarem-se pela consideração; assim como o que sabe que toda mula é estéril, ignora-o a respeito desta mula particular que não toma em consideração. De maneira semelhante o matemático que demonstra o porquê, ignora às vezes o quê, pois não aplica os princípios da ciência superior ao que é demonstrado na ciência inferior.
(4) E porque dissera que saber o porque cabe aos matemáticos, quer mostrar qual o gênero de causa que é assumido pelos matemáticos. Donde dizer que estas ciências que recebem o porque das matemáticas são algo de diferente, isto é, diferem destas segundo o “sujeito”, isto é, enquanto aplicam à matéria. Donde, tais ciências usarem das espécies, isto é, dos princípios formais que recebem das matemáticas. Com efeito, as ciências matemáticas tratam das espécies. Pois, sua consideração não diz respeito ao sujeito, isto é, à matéria. Pois, embora aquilo que a geometria considera exista na matéria, como a linha, a superfície e coisas semelhantes; no entanto, a geometria não as considera enquanto existem na matéria, mas enquanto são abstratos. Pois a geometria abstrai da matéria segundo a consideração, aquilo que existe na matéria segundo o ser. As ciências a ela subalternadas, porém, ao contrário, tomam o que é considerado abstratamente pelo geômetra, e aplicam à matéria. Donde ser patente que a geometria diz o porque nestas ciências segundo a causa formal.
(5) Depois quando diz: Está porém para a perspectiva assim como esta etc., mostra que também a ciência subalternada diz o porquê, não a respeito da subalternante, mas a respeito de uma certa outra. De fato, a perspectiva é subalternada à geometria. E se compararmos a perspectiva com a geometria, a perspectiva diz, o quê e a geometria o porquê. Mas, assim como a perspectiva é subalternada à geometria, assim também a ciência do arco-íris é subalternada à perspectiva. De fato, aplica os princípios tratados pura e simplesmente pela perspectiva, a uma matéria determinada. Donde, competir ao físico que trata do arco-íris, conhecer o quê; mas ao perspectivo compete saber o porquê. Com efeito o físico diz que a orientação da vista para uma nuvem disposta de certo modo em relação ao sol é a causa do arco-íris. Mas o porque ele o toma do perspectivo.
(6) Depois quando diz: Enfim muitas ciências que não são subordinadas etc., mostra como o quê e o porquê diferem em ciências diversas não subalternadas, dizendo que muitas ciências que não são subordinadas entre si, comportam-se uma em relação à outra deste mesmo modo, isto é, cabendo a uma o quê e à outra o porquê. Como é patente da medicina e da geometria. Com efeito o “sujeito” da medicina não é incluído sob o “sujeito” da geometria como o “sujeito” da perspectiva; no entanto, os princípios da geometria são aplicáveis a alguma conclusão considerada na medicina. Por exemplo, que as feridas circulares se curem mais lentamente. A esse respeito, saber o quê compete ao médico que o experimenta, mas saber o porquê cabe ao geômetra a quem compete conhecer que o círculo é uma figura sem ângulo; donde as partes da ferida circular não se aproximarem de tal modo que possam unir-se facilmente. Deve, ainda, saber-se que esta diferença do quê e do porquê que se dá segundo ciências diversas, está contida sob um dos modos supracitados, isto é, quando se faz uma demonstração pela causa remota.
TOMÁS DE AQUINO
Exposição sobre os Segundos Analíticos de Aristóteles, livro I, lição 25.
(1) De outro modo, porém, difere etc... depois que o Filósofo mostrou como a demonstração do quê difere da demonstração do porquê na mesma ciência, mostra aqui como diferem em ciências diversas.
A tal respeito faz duas coisas. Primeiro propõe o que pretende, dizendo que o porquê difere do quê de um modo distinto dos já tratados, pelo fato de que são considerados em ciências distintas, isto é, que a uma ciência pertence saber o porquê e a outra ciência pertence saber quê.
Em segundo lugar, quando diz: Tais são etc. manifesta o proposto. E a tal respeito faz duas coisas: primeiro manifesta o proposto nas ciências em que uma está sob a outra; em segundo lugar nas ciências em que uma não está sob a outra quando diz: Enfim, muitas ciências que não são subordinadas, etc.
A respeito do primeiro, faz duas coisas: primeiro mostra como se comportam entre si as ciências das quais uma está sob a outra, a uma das quais pertence o porquê e à outra o quê; em segundo lugar mostra como nas pré-citadas ciências, o porquê pertence a uma delas e o quê a outra, quando diz: Aqui, com efeito, o conhecimento do quê etc. A respeito do primeiro faz duas coisas: primeiro mostra como as supracitadas ciências se comportam entre si segundo a ordem; em segundo lugar, mostra como se comportam entre si segundo a concordância, quando diz: Certas destas ciências são quase unívocas etc.
(2) Diz, portanto, em primeiro lugar que tais ciências (isto é, aquelas a uma das quais pertence o quê e à outra o porquê) são todas aquelas que se comportam de tal maneira entre si que uma está sob uma outra. Ora, é preciso entender que uma ciência está sob uma outra de duas maneiras. De um primeiro modo, quando o “sujeito” de uma ciência é uma espécie do “sujeito” da ciência superior, assim como o animal é uma espécie do corpo natural, e por isso a ciência dos animais está sob a ciência natural. De outro modo, quando o “sujeito” da ciência inferior não é uma espécie do “sujeito” da ciência superior; mas o “sujeito” da ciência inferior se compara ao “sujeito” da superior como o material em relação ao formal.
E é desta maneira que Aristóteles considera aqui que uma ciência está sob uma outra, assim como a especulativa, isto é, a perspectiva se comporta em relação à geometria. Com efeito, a geometria trata da linha e das outras extensões; a perspectiva, porém, trata da linha determinada a uma matéria, isto é, da linha visual. Ora, a linha visual não é uma espécie da linha pura a simples, assim como o triângulo de madeira não é uma espécie do triângulo. Com efeito, ser de madeira não é uma diferença do triângulo. A mecânica, isto é, a ciência da fabricação de máquinas e engenhos, comporta-se de maneira semelhante para com a estereometria, isto é, a ciência que trata das mensurações dos corpos. E diz-se que esta ciência está sob uma ciência, pela aplicação do formal ao material. Pois as medidas dos corpos pura e simplesmente comparam-se às medidas das madeiras e dos outros materiais requeridos para as máquinas e engenhos por aplicação do formal ao material. E a harmônica, isto é, a música, comporta-se de maneira semelhante para com a aritmética. Pois a música aplica o número formal (que o aritmético considera) à matéria, isto é, aos sons.
Comporta-se de maneira semelhante a aparência, isto é, a ciência naval que considera os sinais aparentes de calmaria ou de tempestade, para com a astronomia, que considera os movimentos e as posições dos astros.
(3) Depois, quando diz: Certas destas ciências são quase unívocas etc., mostra como se comportam entre si as pré-citadas ciências segundo a concordância, dizendo que tais ciências são quase unívocas entre si. Diz "quase" porque concordam no nome do gênero e não no nome da espécie. Com efeito todas as pré-citadas ciências são chamadas de matemáticas; algumas porque tratam de um “sujeito” abstraído da matéria, como a geometria e aritmética, que são pura e simplesmente matemáticas; outras por aplicação dos princípios matemáticos às coisas materiais, assim como a astronomia é chamada de matemática e também a ciência naval, e igualmente a harmônica, isto é, a música é chamada de matemática e também a que procede segundo o ouvido, isto é, a prática da música, que conhece os sons pela experiência do ouvido. Ou pode dizer-se que são unívocas, porque concordam até no nome da espécie. Pois a (ciência) naval é chamada de astronomia e a prática da música é chamada de música. Diz, porém “quase” porque tal não acontece em todas (estas ciências) mas em várias.
Depois quando diz: Aqui, com efeito, o conhecimento do quê etc., manifesta, como nas pré-citadas ciências, a uma delas pertence o quê e à outra o porquê. A este respeito faz duas coisas: primeiro, mostra como cabe às ciências que contêm outras sob si dizer o porquê; em segundo lugar, como cabe às ciências que estão contidas sob elas dizer o porquê a respeito de outras ciências, quando diz: Está porém para a perspectiva assim como esta etc. Deve, portanto, saber-se a respeito do primeiro que em todas as ciências supracitadas, aquelas que estão contidas sob outras aplicam os princípios matemáticos ao sensível. Aquelas porém que contêm sob si as outras são mais matemáticas. Por isso o Filósofo diz primeiro que cabe aos sensíveis, isto é, às ciências inferiores que aplicam ao sensível conhecer o quê; mas saber o porquê cabe aos matemáticos, isto é, às ciências cujos princípios são aplicados ao sensível. Cabe a estas, com efeito, demonstrar o que é assumido como causa nas ciências inferiores. E como alguém poderia crer que quem conhecesse o porquê, necessariamente conheceria também o quê, remove isto em seguida, dizendo que muitas vezes os que sabem o porquê ignoram o quê. Manifesta isto por meio de um exemplo: os que consideram o universal, muitas vezes ignoram certos singulares pelo fato de não aplicarem-se pela consideração; assim como o que sabe que toda mula é estéril, ignora-o a respeito desta mula particular que não toma em consideração. De maneira semelhante o matemático que demonstra o porquê, ignora às vezes o quê, pois não aplica os princípios da ciência superior ao que é demonstrado na ciência inferior.
(4) E porque dissera que saber o porque cabe aos matemáticos, quer mostrar qual o gênero de causa que é assumido pelos matemáticos. Donde dizer que estas ciências que recebem o porque das matemáticas são algo de diferente, isto é, diferem destas segundo o “sujeito”, isto é, enquanto aplicam à matéria. Donde, tais ciências usarem das espécies, isto é, dos princípios formais que recebem das matemáticas. Com efeito, as ciências matemáticas tratam das espécies. Pois, sua consideração não diz respeito ao sujeito, isto é, à matéria. Pois, embora aquilo que a geometria considera exista na matéria, como a linha, a superfície e coisas semelhantes; no entanto, a geometria não as considera enquanto existem na matéria, mas enquanto são abstratos. Pois a geometria abstrai da matéria segundo a consideração, aquilo que existe na matéria segundo o ser. As ciências a ela subalternadas, porém, ao contrário, tomam o que é considerado abstratamente pelo geômetra, e aplicam à matéria. Donde ser patente que a geometria diz o porque nestas ciências segundo a causa formal.
(5) Depois quando diz: Está porém para a perspectiva assim como esta etc., mostra que também a ciência subalternada diz o porquê, não a respeito da subalternante, mas a respeito de uma certa outra. De fato, a perspectiva é subalternada à geometria. E se compararmos a perspectiva com a geometria, a perspectiva diz, o quê e a geometria o porquê. Mas, assim como a perspectiva é subalternada à geometria, assim também a ciência do arco-íris é subalternada à perspectiva. De fato, aplica os princípios tratados pura e simplesmente pela perspectiva, a uma matéria determinada. Donde, competir ao físico que trata do arco-íris, conhecer o quê; mas ao perspectivo compete saber o porquê. Com efeito o físico diz que a orientação da vista para uma nuvem disposta de certo modo em relação ao sol é a causa do arco-íris. Mas o porque ele o toma do perspectivo.
(6) Depois quando diz: Enfim muitas ciências que não são subordinadas etc., mostra como o quê e o porquê diferem em ciências diversas não subalternadas, dizendo que muitas ciências que não são subordinadas entre si, comportam-se uma em relação à outra deste mesmo modo, isto é, cabendo a uma o quê e à outra o porquê. Como é patente da medicina e da geometria. Com efeito o “sujeito” da medicina não é incluído sob o “sujeito” da geometria como o “sujeito” da perspectiva; no entanto, os princípios da geometria são aplicáveis a alguma conclusão considerada na medicina. Por exemplo, que as feridas circulares se curem mais lentamente. A esse respeito, saber o quê compete ao médico que o experimenta, mas saber o porquê cabe ao geômetra a quem compete conhecer que o círculo é uma figura sem ângulo; donde as partes da ferida circular não se aproximarem de tal modo que possam unir-se facilmente. Deve, ainda, saber-se que esta diferença do quê e do porquê que se dá segundo ciências diversas, está contida sob um dos modos supracitados, isto é, quando se faz uma demonstração pela causa remota.
Notas
[1] R. Descartes, Discurso do método, Trad. J. Cruz Costa. Rio de janeiro: Ed. De Ouro, s.d., p. 164. Cf. pp. 66 e 69.
[2] Idem, Ibidem, p. 166.
[3] João de Salisbury, Metalogicon, III, 4. Citado em Ph. Boehner, História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 333. Cf. C. A. R. do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: UNICAMP, IFCH, 1998, pp. 177-178.
[4] M.-D. Chenu, Introduction à l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, Montréal: Inst. d’Études Médiévales, 1950, pp. 106-107. Esta concepção já estava formalizada na Antiguidade tardia. Cf. F. del Punta, “The genre of Commentaries in the Middle Ages and its Relation to the Nature and Originality of Medieval Thought”, Miscellanea Mediaevalia, Berlin: 26 (Was ist Philosophie im Mittelalter?), pp. 138-151, 1998. Não se deve esquecer também a presença do modelo exegético da Bíblia.
[5] Cf. S.J. Livesey, “Science and Theology in the Forteenth Century: The Subalternate Sciences in Oxford Commentaries on the Sentences”, Synthese, Dordrecht: 83, pp. 273-292, 1990.
[6] Cf. F. Del Punta, op. cit. à nota 4.
[7] “Vita Sancti Thomae Aquinatis”, in Fontes vitae Sancti Thomae Aquinatis, D. Prümmer Ed., Toulouse: 1911, Fasc. 2, cap. 8, pp. 72-73. Cf. C. A. R. do Nascimento, Santo Tomás de Aquino, O Boi mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 1992, p. 19.
[8] Sancti Thomae de Aquino, “Sententia Libri Ethicorum” in Opera omnia, Tomus XLVII, Vol. I. Romae: Ad Sanctae Sabinae, 1969, pp. 242*-245*; “Expositio Libri Peryermenias”, Tomus I*, l. Romae: Commissio Leonina, Paris: Vrin, 1989, p. 84*; “Un cours sur l’Ethica Nova d’un maître ès arts de Paris (1235-1240), Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, Paris: 43, pp. 71-141, 1975. Ver também O. Weijers, “Les genres littéraires à la faculté des arts”, Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, Paris: 82, pp. 631-641, 1998.
[9] Cf. R.-A. Gauthier, “Saint Thomas et l’Éthique à Nicomaque”, in Sancti Thomae de Aquino Opera omnia, Tomus XLVIII, Romae: Ad Sanctae Sabinae, 1971, pp. XX-XXI.
[10] “Saint Thomas et la métaphysique d’Aristote”, em Aristote et Saint Thomas d’Aquin (Journées d’Études Internationales. Chaire Cardinal Mercier, 1955). Louvain: Publ. Univ. De Louvain, Paris: Béatrice Nauwelaerts, 1957, p. 177; retomado em Philosophie et Spiritualité. Paris: Cerf, 1963, vol. I, p. 127.
[11] Cf. C. A. Ribeiro do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas UNICamp, IFCH, 1998, pp. 13-87, especialmente pp. 29-51.
[12] Cf. C. A. Ribeiro do Nascimento, “A serva da teologia e a dama dos salões”, Humanidades, Brasília: 8, pp. 281-287, 1992.
[13] Extraído de: Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998, pp. 261-279.
[14] Extraído de: Tomás de Aquino, Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, Questões 5 e 6. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, pp. 79-84.
[1] R. Descartes, Discurso do método, Trad. J. Cruz Costa. Rio de janeiro: Ed. De Ouro, s.d., p. 164. Cf. pp. 66 e 69.
[2] Idem, Ibidem, p. 166.
[3] João de Salisbury, Metalogicon, III, 4. Citado em Ph. Boehner, História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 333. Cf. C. A. R. do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: UNICAMP, IFCH, 1998, pp. 177-178.
[4] M.-D. Chenu, Introduction à l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, Montréal: Inst. d’Études Médiévales, 1950, pp. 106-107. Esta concepção já estava formalizada na Antiguidade tardia. Cf. F. del Punta, “The genre of Commentaries in the Middle Ages and its Relation to the Nature and Originality of Medieval Thought”, Miscellanea Mediaevalia, Berlin: 26 (Was ist Philosophie im Mittelalter?), pp. 138-151, 1998. Não se deve esquecer também a presença do modelo exegético da Bíblia.
[5] Cf. S.J. Livesey, “Science and Theology in the Forteenth Century: The Subalternate Sciences in Oxford Commentaries on the Sentences”, Synthese, Dordrecht: 83, pp. 273-292, 1990.
[6] Cf. F. Del Punta, op. cit. à nota 4.
[7] “Vita Sancti Thomae Aquinatis”, in Fontes vitae Sancti Thomae Aquinatis, D. Prümmer Ed., Toulouse: 1911, Fasc. 2, cap. 8, pp. 72-73. Cf. C. A. R. do Nascimento, Santo Tomás de Aquino, O Boi mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 1992, p. 19.
[8] Sancti Thomae de Aquino, “Sententia Libri Ethicorum” in Opera omnia, Tomus XLVII, Vol. I. Romae: Ad Sanctae Sabinae, 1969, pp. 242*-245*; “Expositio Libri Peryermenias”, Tomus I*, l. Romae: Commissio Leonina, Paris: Vrin, 1989, p. 84*; “Un cours sur l’Ethica Nova d’un maître ès arts de Paris (1235-1240), Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, Paris: 43, pp. 71-141, 1975. Ver também O. Weijers, “Les genres littéraires à la faculté des arts”, Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, Paris: 82, pp. 631-641, 1998.
[9] Cf. R.-A. Gauthier, “Saint Thomas et l’Éthique à Nicomaque”, in Sancti Thomae de Aquino Opera omnia, Tomus XLVIII, Romae: Ad Sanctae Sabinae, 1971, pp. XX-XXI.
[10] “Saint Thomas et la métaphysique d’Aristote”, em Aristote et Saint Thomas d’Aquin (Journées d’Études Internationales. Chaire Cardinal Mercier, 1955). Louvain: Publ. Univ. De Louvain, Paris: Béatrice Nauwelaerts, 1957, p. 177; retomado em Philosophie et Spiritualité. Paris: Cerf, 1963, vol. I, p. 127.
[11] Cf. C. A. Ribeiro do Nascimento, De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas UNICamp, IFCH, 1998, pp. 13-87, especialmente pp. 29-51.
[12] Cf. C. A. Ribeiro do Nascimento, “A serva da teologia e a dama dos salões”, Humanidades, Brasília: 8, pp. 281-287, 1992.
[13] Extraído de: Boletim do CPA, Campinas, nº 5/6, jan./dez. 1998, pp. 261-279.
[14] Extraído de: Tomás de Aquino, Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, Questões 5 e 6. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, pp. 79-84.
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