Benedito Nunes (UFPA)
Notas ao fim do texto
Na carta ao padre William J. Richardson, incluída como introdução ao livro desse jesuíta,[1] Heidegger explica-lhe que ao ler a obra de Brentano, Das múltiplas significações do ente em Aristóteles, a qual traz como epígrafe a sentença tò ón légethai pollachos (possui o ente múltiplas acepções) do livro IV (Delta) da Metafísica de Aristóteles, ter-se-ia indagado, como poderia fazê-lo qualquer estudante arguto de Filosofia, qual era dessas acepções a mais fundamental:
“O ser se diz do acidente ou da essência [...] O ser por essência recebe todas as acepções, que são indicadas pelos tipos de categorias, pois os sentidos do ser igualam, em número, essas categorias. Assim, pois, entre os predicados, uns significam a substância, outros a qualidade, outros a quantidade, outros a relação, outros a ação ou a paixão, outros o lugar e outros o tempo, e a cada uma dessas categorias corresponde um sentido do ser [...] Ser e é significam ainda que uma proposição é verdadeira, não ser que ela não é verdadeiramente mas falsa tanto para a afirmação como para a negação [...] Finalmente, ser e o ser significam também ora o ser em potência oura o ser em enteléquia das diferentes espécies de seres de que falamos”.[2]
Em qual, pois, dessas acepções, reside a simples e unitária significação que prevalece sobre as demais? Aristóteles não poderia ter feito outra indagação.
Repetindo a provável indagação do Estagirita, a pergunta de Heidegger abriria a trilha que o conduziu, em seus seminários e cursos, de 1921 a 1922, a uma incessante investigação dos escritos de Aristóteles, que correu paralela à construção de seu próprio pensamento. Em 1921 daria uma direção ontológica à vida fáctica interpretando o practicum fenomenológico em relação ao De anima de Aristóteles. No semestre do inverno de 22-23, ministrou um seminário sobre a Ética a Nicômaco, base de um projetado livro de que escreveu a introdução, e que receberia o novo título de “Indicação da situação hermenêutica”, onde, pela primeira vez, teria desenvolvido a noção de contexto interpretativo. Um terceiro curso, ainda em 22, formula indagação sobre as motivações e a direção da pesquisa ontológica: é o “Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, Ontologia e Lógica”. Finalmente, no mesmo ano, a Introdução (Einleitung) ao livro sobre Aristóteles tomou o título de “Indicação da situação hermenêutica”, onde já se fala em “ontologia fundamental” e se anuncia uma “destruição da história da ontologia”.
Nesse esforço de construção de seu pensamento em pugna com a interpretação de Aristóteles, Heidegger discutiria a ousia como “significação simples e unitária” atribuída pelo filósofo grego ao ser, juntamente com as noções de dynamis e enérgeia, que lhe são correlatas, em pelo menos dois trabalhos fundamentais: Aristóteles, Metafísica 1-3 (Da essência e realidade da força), 1931 e A Física em Aristóteles, 1958.[3]
A Física de Aristóteles, que é também “metafísica”, enquanto saber acerca da physis, é, do ponto de vista de Heidegger, “o livro de fundo da Filosofia ocidental”, não apenas por que estuda o movimento como um aspecto das coisas, mas por tomar o movido como “aspecto fundamental do ser”. A physis é a causa, o princípio, arché do movimento. Passagem da potência ao ato na gênese, na produção do que existe, dando-lhe ingresso, portanto, na presença ou no aberto, através da forma (morphé) em que se desdobra, a physis, realizada (enérgeia) no ser de um ente (dynamis) segundo a sua possibilidade, como entelécheia, é um gênero do ser e não do ente. E como tal, a physis é ousia.
Discutindo e interpretando Aristóteles, Heidegger, entre outros empréstimos, se reapropriou do livro VI da Ética a Nicômaco e do livro “theta” (IX) da Metafísica, dos quais hauriu, segundo a tese de Jacques Taminiaux, a diferença aí exposta entre poiesis e praxis.[4] A primeira se apresenta como “o mundo da cotidianidade”, onde, conduzido pela preocupação, o Dasein existe de maneira imprópria, à semelhança dos objetos ou coisas (Vorhanden) com os quais se confronta, e a segunda como atividade do agente, inclusiva de seus próprios fins, que articula o presente ao passado. Enquanto aquela se cumpre no fazer, na produção da obra, a última se rege pelos fins da atividade do agente. “Tem-se o direito de pensar, escreve Jacques Taminiaux, que essa meditação aristotélica do que é particular à praxis e do que a diferencia da poiesis [...] é reapropriada por Heidegger na ontologia fundamental, a que ela confere sua articulação”. A oposição entre os dois conceitos abasteceria a distinção entre o existir inautêntico do Dasein, preocupado com os úteis de que se vale no mundo circundante do cotidiano (poiesis) e o existir autêntico do mesmo Dasein, abandonado diante de si mesmo como do mundo que o angustia.
Vê-se, pois, que Heidegger discutiu Aristóteles colocando-o no cerne de seu pensamento. Por isso, a assimilação das noções de poiesis e praxis e o assentamento do sentido ontológico da physis como ousia nada mais foram do que episódios significativos do regime de constante assimilação crítica de Aristóteles por Heidegger, que se intensificou na fase inicial, em seus cursos sobre o filósofo grego, cujas idéias principais, expostas em conjunto e de acordo com a hermenêutica da facticidade, estão resumidas no texto já citado, que elaborou em três semanas, em 1922, para assegurar a obtenção do posto de professor em Marburgo, e por ele enviado a Paul Natorp: Interpretações fenomenológicas de Aristóteles — quadro da situação hermenêutica (Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles — Anzeig der Hermeneutischen Situation).[5]
A interpretação de Aristóteles é, neste escrito, inseparável da situação hermenêutica, de seu horizonte definido pelo ponto de vista e a orientação do olhar dirigido para a pesquisa filosófica em sua dimensão ontológica. E qual é o objeto dessa pesquisa senão o Dasein humano (das menschliche Dasein) “interrogado em seu caráter de ser”? Essa interrogação já focaliza a vida fáctica (faktischen Leben) no desdobramento de seu ser temporal, com o que Interpretações fenomenológicas de Aristóteles nos oferecem um esboço da ontologia fundamental ou um primeiro apanhado da conceptualística de Ser e tempo. Mas é o objeto da pesquisa assim definido que possibilita e circunscreve a interpretação. Sem a mobilidade da vida fáctica, com a sua circunspecção, com o seu horizonte histórico, a sua “decadência” e a volta sobre si mesma no enfrentamento da morte, não teríamos a problemática filosófica que orienta o olhar interpretativo no trabalho empreendido por uma hermenêutica fenomenológica da facticidade, a qual parte de uma situação prévia facticial com o fim de explicitá-la. E que só poderá fazê-lo a contento se desembaraçar o caminho a trilhar da tradição doutrinária filosófico-teológica, como aquela que, implicando numa concepção do homem e da vida, se originou de São Paulo, de Santo Agostinho e de Lutero. Essa concepção enraiza-se na Física, na Psicologia, na Ética e na Ontologia aristotélicas, mas em função de uma escolha interpretativa determinada:
“À luz do problema da facticidade, tal como antes foi colocado, Aristóteles não representa apenas a elaboração concreta e a culminância da filosofia que o precedeu: em sua Física, Aristóteles, com efeito, acede a um novo ponto de partida principal e fundamental de que procedem a sua ontologia e a sua lógica”.[6]
Amparado na situação hermenêutica, Heidegger atribui ao nous, nas Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, o entendimento de sophia e phronesis; é o nous que lhes desoculta a verdade enquanto alétheia. Depois de desvincular Aristóteles da teoria do juízo, que se lhe atribuiu, Heidegger nos alerta sobre o caráter de desencoberto do verdadeiro e da imediatidade da aisthesis, dotada de intencionalidade originária. Do mesmo modo, o logos “deve ser tomado em seu caráter intencional próprio” de apophánsis. O nous é entendimento que se efetua no logos - entendimento “que cada vez proporciona pura e simplesmente o aspecto dos objetos”. Mas tudo isso, como Filosofia, Aristóteles elaboraria a partir da “mobilidade facticial” da vida com que Heidegger determina a sua situação hermenêutica particular. Interpretar Aristóteles é assimilá-lo ao seu próprio pensamento. Heidegger incorpora o filósofo grego, convertido num fenomenólogo, que lhe facultou, com a leitura do livro VI da Ética a Nicômaco, em primeiro lugar o descobrimento da alétheia.
“Um estudo renovado dos tratados de Aristóteles (em particular do livro IX da Metafísica e do livro VI da Ética a Nicômaco) permitiu ver aletheúein, declara Heidegger na sua carta ao padre Richardson, como o abrir sem encobrimento e de caracterizar a verdade como o aberto sem encobrimento de que procede todo “mostrar-se” do ente [...] Quando o olhar penetra na alétheia, como não encobrimento, o que isso deixava reconhecer era o traço fundamental da ousia, do ser do ente: a presença (Anwesenheit)”,[7] o significado da ousia, para os gregos, “orientada somente para uma dimensão do tempo, o presente, segundo o modelo das coisas manejáveis”.[8]
Esse descobrimento tê-lo-ia levado a “uma mais profunda compreensão da fenomenologia, o logos do phainesthai, que exerceu um papel direcional nesse desenvolvimento de suas intuições. A compreensão da alétheia como desocultamento, por sua vez, preparou o reconhecimento do traço fundamental da ousia, ser dos entes, como presença.[9] Atente-se, porém, para o fato de que tal descoberta era contrária ao “ver” fenomenológico de Husserl, que exigia a renúncia da interrogação dos grandes pensadores para esclarecer a discussão. Graças a essa nova compreensão, a fenomenologia podia assegurar, como Walter Brogan insiste em dizê-lo, o direto alcance da verdade, independentemente da proposição.[10]
Num de seus cursos de Lógica dedicado à investigação das relações entre logos e alétheia, Heidegger distinguiria a verdade que as proposições acolhem da espécie noética de verdade da qual Aristóteles trata, “e que desvela o arché, do qual os entes emergem respondendo pelo ser deles [...] Aristóteles chama essa alétheia, esse modo de desvelamento, o pensar filosófico - he theorei to on he hon -, uma sustentação do ente como ser, um deixar os entes serem vistos como ser. O conhecimento filosófico é, em parte, um simples colocar-se na presença do ser. Aristóteles diz que nenhuma falsidade ou decepção é possível nesse modo noético de ver, nesse puro Hinsehen”.[11]
Não há, portanto, simples incidências aristotélicas nas filosofia heideggeriana, que está embebida em Aristóteles, mesmo quando o critica. Sabendo-se que Heidegger não apenas estudou a Metafísica do pensador grego, mas também a sua Retórica e a Ética a Nicômaco, e que o ato de traduzi-lo era indistinto desse estudo - e tal simbiose de tradução e compreensão valeria não só para Aristóteles como para a interpretação dos pré-socráticos e de Platão, que o filósofo germânico investigou -, lícito nos é concluir que o todo do pensamento aristotélico entranha-se, desde a fase de formação, na filosofia dele. Mas esse entranhamento não é, como se poderia concluir dos exemplos anteriores dados, o produto de uma simples incorporação sem debate. Houve entre os dois pensadores confrontos e desencontros mesmo quando se encontraram.
Pretendo, no que segue, referir-me a esses confrontos subsistentes na obra madura de Heidegger, que os absorveu inclusive em Ser e tempo, onde subsistem pontos de incidência do pensamento do Aristóteles, ora aceitos ora contestados, ora assimilados ora em discrepância ao heideggeriano.
As discrepâncias ocorrem quase sempre ao defrontar-se Heidegger com os diversos contributos de Aristóteles sedimentados historicamente pela tradição, principalmente por aquela fixada no séc. XIII, com a Escolástica e seu conseqüente prolongamento moderno herdado por Kant. E quase sempre, também, um novo encontro se dá entre eles a cada desencontro, porque ao traduzir o Estagirita, o pensador alemão, tentando restaurar-lhe a originalidade grega, pretende deslocar os sedimentos históricos depositados pela tradição, tendendo, desde os confrontos iniciais, a recuperar o sentido prístino de suas palavras essenciais, como alétheia e ousia.
Nos parágrafos de Ser e tempo (1, 4, 5, 6, 7, 42 e 80), aqui tratados não especificamente, mas segundo a generalidade da matéria neles versada, o confronto ficou registrado tanto a respeito do ser como a respeito da verdade. Reconhece Heidegger que estatuindo o ser como o mais universal dos conceitos, Aristóteles firmou-o, “sobre uma base fundamentalmente nova” na medida em que deu por suporte desse universal a unidade da analogia; a despeito disso, porém, como ainda nos diz o parágrafo 1, não conseguiu deslindar a obscuridade das relações categoriais implicadas nessa unidade. Entretanto, a ontologia antiga só em Aristóteles alcançou o mais alto ponto de seu desenvolvimento, quando, ao interrogar-se sobre o ser, esse pensador o circunscreveu pelo perceber do que tem diante de si e interpretou-o como ousia, o que Heidegger, por sua vez traduz interpretativamente como presença (Anwesende).[12]
Perguntar “o que é o ente (ti to on), objeto de todas as pesquisas presentes e passadas, diria o primeiro dos dois pensadores, problema sempre a resolver, equivale a indagar: o que é ousia?”[13] Mas na resposta de Aristóteles, o tempo, jogo de criança a que se referiu Heráclito, introduziu-se à sua revelia, conformando o ente com ousia pelo presente, um dos êxtases da temporalidade, justificando o trabalho heideggeriano, previsto em Ser e tempo, de destruição da história da ontologia, ou seja, a prática da exegese negativa, que consiste em escavar, mediante a renovada tradução das palavras gregas, as bases sedimentadas na tradição das diversas concreções - a idea de Platão, a ousia aristotélica, a quidditas escolástica, o pensamento em Descartes, a vontade em Fichte e Hegel, a vontade de potência em Nietzsche - que constituem os eminentes tópicos da história do ser desenvolvida numa segunda fase do pensamento de Heidegger, posteriormente à ontologia fundamental, arquitetada em Ser e tempo. Dentro desse quadro da história do ser, restituir-se-ia à ousia a sua carga temporal, sem desvalorizar-se o conceito respectivo, herdado pelos escolásticos e por eles reelaborado, como essência ou quidditas, que não nos compete aqui examinar.
Passamos a um outro plano do confronto, onde o acordo se converte em aliança. Pressupondo que a tradução de ousia como presença lhe permitiria aceder ao estado da ontologia aristotélica anterior à interpretação escolástica, Heidegger termina por aliá-la à sua própria ontologia fundamental. Pois não autoriza a ontologia aristotélica a descoberta, por intermédio da aisthesis e do noein, que constituem a alma, do ser de todos os entes? O reconhecimento do parentesco da psiqué humana com todos os entes, implícito a essa descoberta, deixaria espaço aberto para que, em Ser e tempo se reforçasse a preeminência ôntico-ontológica do Dasein, como traço de identidade da ontologia fundamental:
“A preeminência ôntico-ontológica do Dasein se percebeu logo, sem que por isso se chegasse a apreender o Dasein mesmo em sua genuína estrutura ontológica e nem sequer a considerá-la um problema orientador. Aristóteles disse: he psiché ta onta pós estin, “a alma (do homem) é de certo modo os entes”; a “alma”, que constitui o ser do homem, descobre, em seus modos de ser, a aisthesis e a noesis, todos os entes no duplo aspecto do “que é” e do “como é”, quer dizer, sempre, também, em seu ser”.[14]
Se, nesse passo, Aristóteles contribui para a Analítica do Dasein, a ontologia fundamental se entrosando à ontologia aristotélica, mais ainda se reforçaria a colaboração de Aristóteles no conceito de logos, sem sacrifício de seus precedentes platônicos. Heidegger já aborda em seu curso “Ontologia e lógica”, mostrando-nos aí que, no pensamento do filósofo grego, o problema do ser é inseparável desse conceito.
Logos é linguagem como fala (die Rede), em que se torna manifesto, visível, aquilo de que se fala a outrem. A esse permitir ver mostrando-o, função da fala enquanto logos, chamou-o Aristóteles de apophánsis - para Heidegger o que precede o juízo e que, identificando-o logicamente, fundamenta a síntese do predicado com o sujeito que nele se opera. Também estaria na coesão do logos como linguagem, a que a visibilidade apofântica, o permitir ver algo como algo, dá plena franquia, o intróito hedeggeriano, no parágrafo 40 de Ser e tempo, à noção de verdade enquanto alétheia.
Somente por que é um permitir ver, pode o mesmo logos ser verdadeiro ou falso:
“O ser verdadeiro do logos com apophánsis é o aletheúein no modo do apophainesthai: permite ver um ente - retirando-o do estado de oculto - em seu estado de não oculto. A alétheia, equiparada por Aristóteles com pragma, phainomena [...] significa “as coisas mesmas”, o que se mostra, os entes no “como” de seu “estado de descoberto””.[15]
Por isso mesmo não procede de Aristóteles a conceituação da verdade, como adaequatio intellectus et rei, pela qual se o responsabiliza, e que firmada foi pelos escolásticos. Muito pelo contrário, apophainesthai implica “num extrair de seu ocultamento o ente de que se fala e permitir vê-lo, descobri-lo como não oculto”. Até aqui a interpretação de Heidegger vai sempre a par e passo de Aristóteles, caminhando ao encontro dos legítimos significados de sua teses.
Em contraste com esses encontros é que sobressai o desencontro de ambos em torno da questão do tempo, já embutida na maneira de Aristóteles conceber o ser, e que, compartilhando da cecidade ao temporal característica da ontologia grega, foi por ele expressamente tematizada no livro D da Física, que é “a primeira interpretação detalhada desse fenômeno que nos foi transmitida”,[16] a qual Heidegger, com o escopo de deslindar os fundamentos temporais da ontologia antiga, interpretará por sua vez, iniciando o exame desse livro, ainda em 1924, na conferência “O conceito de tempo”. A continuação do mesmo exame, que deverá ser feita na terceira seção da segunda parte jamais publicada de Ser e tempo, conforme anunciado em sua introdução, só viria a efetivar-se no curso sob o título de “Problemas fundamentais da fenomenologia”, ministrado no segundo semestre de 1927.
Por duas vezes, na conferência sobre o conceito de tempo, de 1924, Heidegger refere-se à conceituação de Aristóteles constante de seu mencionado livro D da Física: primeiramente quando destaca o nexo do tempo com o movimento, depois quando focaliza o agora enquanto elemento que garante esse nexo, acrescentado a essa análise, como aspecto novo, concordante com a concepção aristotélica mas não dela explicitável, o apresentar-se, mediante esse mesmo agora, do tempo no relógio. “A determinação elementar que produz o relógio como tal não é a indicação da duração - da quantidade de tempo que escoa presentemente - mas o fato de fixar duravelmente o agora.”[17] Essa fixação, que independente da revolução solar, remete-nos ao “relógio que a existência humana (menschliche Dasein) sempre possui”, porque, conforme esclarece o parágrafo 81 de Ser e tempo (1927), onde essa explanação daquele escrito prematuro encontrou amplo desenvolvimento, o ponteiro móvel do mostrador indicando números, com o que sempre relaciona o anterior com o posterior, indica algo, segundo a retenção e a expectativa nossa, pressuposta por essa relação: o tempo, como o numerado que se mostra no curso desse movimento repetitivo.
Ora, essa conceituação diverge, ao extremo, da concepção heideggeriana do tempo como temporalidade. Mas cada desencontro de Heidegger com Aristóteles prepara um novo encontro entre eles. Pois o que aí se descreveu é a compreensão cotidiana, pública, do tempo, que usamos e com que contamos, através dos úteis que nos circundam e que nada mais é do que “a interpretação ontológico-existentiva da definição que Aristóteles dá do tempo: “o numerado do movimento que se mostra dentro do horizonte do anteriormente e do posteriormente””.[18] E como por essa definição podemos reencontrar a temporalidade, o desencontro que ela traduz é o encaminhamento para um novo encontro.
Em “Problemas fundamentais da fenomenologia” expõe-se, cuidadosa e minuciosamente, como não se fez no tratado de 1927, a análise aristotélica do tempo, uma das mais notáveis do Estagirita, de que resultou aquela definição. São bem conhecidos os seus passos principais: a negação de que o tempo seja movimento, porque este se encontra unicamente na coisa que muda, depois a afirmativa de que não há tempo sem movimento, porque quando não percebemos o movimento, não percebemos o tempo, e finalmente, dado que o movido vai de um ponto de partida a um ponto de chegada, e que a grandeza é contínua, a relação entre o anterior e o posterior pela qual conhecemos o movimento, permite determinarmos o tempo como o seu número:
“Aristóteles fala de aritnmos kinéseos katà tó protéron kai usteron. O que traduzimos: o tempo é um (número) numerado quanto ao movimento vindo ao encontro na ótica do antes e do depois, no interior do horizonte do anterior e do posterior. O tempo não é somente o que no movimento é numerado, mas que o é na medida em que o movimento é considerado na perspectiva do antes e do depois, quando seguimos seu curso enquanto movimento. O horizonte em questão é o do anterior e do posterior [...] Aristóteles diria: o tempo é o número do movimento vindo ao encontro no horizonte do tempo (do ântero-posterior). Ora, isso equivale a dizer: o tempo é qualquer coisa que vem ao encontro no horizonte do tempo”.[19]
Passemos, agora, à interpretação heideggeriana.
O primeiro ponto a destacar é que Aristóteles afirma exatamente que o tempo é arithmos kinéseos, um número do movimento - ou que o movimento tem um número que é o tempo - sendo porém o movimento tomado na perspectiva do antes e do depois, “quando seguimos seu curso enquanto movimento”. Mas o antes e o depois, o anterior e o posterior, já são temporais, e assim introduzindo-se antecipadamente o tempo na definição, teríamos uma definição tautológica:
“Talvez que a definição aristotélica do tempo não seja uma tautologia e que ela se limite a focar a estreita conexão do fenômeno do tempo segundo Aristóteles, quer dizer do tempo na sua compreensão vulgar com o tempo original que designamos como temporalidade”.[20]
Como no movimento há um móvel que se desloca, percorrendo vários pontos, no tempo há sucessão de momentos pontuais, de agora.
O segundo ponto que merece ser realçado, é que Aristóteles nos diz que o agora é co-percebido com o movimento, portanto também ganhando número, e que não se pode compreender senão no horizonte da relação entre anterior e posterior. Mas sendo um limite entre o que se passou e o que virá, o agora é constitutivo do tempo. Aristóteles pôde também compreender que assegurando a continuidade do tempo, o agora se divide num anterior e num posterior. Nesse caso, então, como escreveria Aristóteles, o agora, pela sua essência própria, não é limite, “na medida em que a título de passagem e de dimensão, está aberto do lado do ainda não e do não é mais”. E se o tempo é número, não é menos que medida do movimento; e o tempo só pode medir o que dentro dele está. Para o Estagirita, dizer que as coisas estão dentro do tempo, significaria afirmar que seriam pelo tempo medidas, em virtude de seu caráter transacional.
Enfim, como Heidegger dirá ainda em “Problemas fundamentais da fenomenologia”:
“Nenhuma tentativa para decifrar o enigma do tempo pode dispensar um debate com Aristóteles, pois foi ele que pela primeira vez e por muito tempo conceituou de maneira unívoca a compreensão vulgar do tempo, de tal modo que a sua concepção do tempo corresponde ao conceito natural do tempo”.[21]
A concepção vulgar, pré-científica do tempo iguala-se à natural, que nos remete à temporalidade, como tempo originário, o que “tem por consequência que a definição aristotélica do tempo não é senão o ponto de partida da interpretação do tempo”.[22]
Mas por outro lado, a ousia enquanto presença, que já constitui interpretação do tempo, é um ponto de partida da interpretação do ser como ente, em consonância com a noção de alétheia. Nessa convergência, Heidegger é tão aristotélico quanto Aristóteles heideggeriano. A história do ser engloba a ontologia do Estagirita. Como a história do ser e a história da metafísica, e que a metafísica começa quando Platão eleva acima do real empírico o mundo das idéias, tendo no topo o sumo Bem, Aristóteles, que filosofou contra Platão mas a partir dele, estaria integrado a essa história. Em consequência do que cumpre indagar, como Heidegger faz, numa passagem de O Niilismo europeu, ao examinar a doutrina do Bem em Platão, assentando que este concebeu o ser enquanto ousia no sentido de presença, constância e visibilidade, qual é, em face da platônica, a especificidade da ontologia aristotélica:
“Aqui se apresenta a ocasião de determinar a posição metafísica de Aristóteles, para a qual não basta, é verdade, precisamente a costumeira oposição a Platão; pois Aristóteles experimenta uma vez mais, conquanto através da metafísica platônica, pensar o ser na maneira grega inicial, tentando, por assim dizer, recuar da passada de Platão com sua idea tou agathou, pela qual é a propriedade de ser que recebe a caracterização do que condiciona e torna possível aquela da dynamis. Contra o que - ousamos adiantar - Aristóteles pensa o ser enquanto entelécheia mais à maneira grega do que Platão. O que isso significa, não pode dizer-se em poucas palavras. Pode-se somente observar o seguinte, a saber, que Aristóteles não é nem um platônico acidentado nem o precursor de Tomás de Aquino. Sua realização filosófica não se esgota menos no absurdo, que lhe é atribuído frequentemente, de ter feito sair de seu ser-em-si as Idéias de Platão para alojá-las nas próprias coisas. A despeito da distância que a separa do começo da filosofia grega, a metafísica de Aristóteles é, sob muitos aspectos essenciais, como uma espécie de élan, ainda impulsionado, no interior do pensamento grego, no sentido do retorno ao começo deste pensamento.”[23]
Assim Heidegger confere à ontologia aristotélica estatuto histórico especialmente ambíguo, visto que a põe dentro e a cavaleiro do pensamento grego que ela ajudou a constituir.
Belém, agosto, 1999.
Notas ao fim do texto
Na carta ao padre William J. Richardson, incluída como introdução ao livro desse jesuíta,[1] Heidegger explica-lhe que ao ler a obra de Brentano, Das múltiplas significações do ente em Aristóteles, a qual traz como epígrafe a sentença tò ón légethai pollachos (possui o ente múltiplas acepções) do livro IV (Delta) da Metafísica de Aristóteles, ter-se-ia indagado, como poderia fazê-lo qualquer estudante arguto de Filosofia, qual era dessas acepções a mais fundamental:
“O ser se diz do acidente ou da essência [...] O ser por essência recebe todas as acepções, que são indicadas pelos tipos de categorias, pois os sentidos do ser igualam, em número, essas categorias. Assim, pois, entre os predicados, uns significam a substância, outros a qualidade, outros a quantidade, outros a relação, outros a ação ou a paixão, outros o lugar e outros o tempo, e a cada uma dessas categorias corresponde um sentido do ser [...] Ser e é significam ainda que uma proposição é verdadeira, não ser que ela não é verdadeiramente mas falsa tanto para a afirmação como para a negação [...] Finalmente, ser e o ser significam também ora o ser em potência oura o ser em enteléquia das diferentes espécies de seres de que falamos”.[2]
Em qual, pois, dessas acepções, reside a simples e unitária significação que prevalece sobre as demais? Aristóteles não poderia ter feito outra indagação.
Repetindo a provável indagação do Estagirita, a pergunta de Heidegger abriria a trilha que o conduziu, em seus seminários e cursos, de 1921 a 1922, a uma incessante investigação dos escritos de Aristóteles, que correu paralela à construção de seu próprio pensamento. Em 1921 daria uma direção ontológica à vida fáctica interpretando o practicum fenomenológico em relação ao De anima de Aristóteles. No semestre do inverno de 22-23, ministrou um seminário sobre a Ética a Nicômaco, base de um projetado livro de que escreveu a introdução, e que receberia o novo título de “Indicação da situação hermenêutica”, onde, pela primeira vez, teria desenvolvido a noção de contexto interpretativo. Um terceiro curso, ainda em 22, formula indagação sobre as motivações e a direção da pesquisa ontológica: é o “Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, Ontologia e Lógica”. Finalmente, no mesmo ano, a Introdução (Einleitung) ao livro sobre Aristóteles tomou o título de “Indicação da situação hermenêutica”, onde já se fala em “ontologia fundamental” e se anuncia uma “destruição da história da ontologia”.
Nesse esforço de construção de seu pensamento em pugna com a interpretação de Aristóteles, Heidegger discutiria a ousia como “significação simples e unitária” atribuída pelo filósofo grego ao ser, juntamente com as noções de dynamis e enérgeia, que lhe são correlatas, em pelo menos dois trabalhos fundamentais: Aristóteles, Metafísica 1-3 (Da essência e realidade da força), 1931 e A Física em Aristóteles, 1958.[3]
A Física de Aristóteles, que é também “metafísica”, enquanto saber acerca da physis, é, do ponto de vista de Heidegger, “o livro de fundo da Filosofia ocidental”, não apenas por que estuda o movimento como um aspecto das coisas, mas por tomar o movido como “aspecto fundamental do ser”. A physis é a causa, o princípio, arché do movimento. Passagem da potência ao ato na gênese, na produção do que existe, dando-lhe ingresso, portanto, na presença ou no aberto, através da forma (morphé) em que se desdobra, a physis, realizada (enérgeia) no ser de um ente (dynamis) segundo a sua possibilidade, como entelécheia, é um gênero do ser e não do ente. E como tal, a physis é ousia.
Discutindo e interpretando Aristóteles, Heidegger, entre outros empréstimos, se reapropriou do livro VI da Ética a Nicômaco e do livro “theta” (IX) da Metafísica, dos quais hauriu, segundo a tese de Jacques Taminiaux, a diferença aí exposta entre poiesis e praxis.[4] A primeira se apresenta como “o mundo da cotidianidade”, onde, conduzido pela preocupação, o Dasein existe de maneira imprópria, à semelhança dos objetos ou coisas (Vorhanden) com os quais se confronta, e a segunda como atividade do agente, inclusiva de seus próprios fins, que articula o presente ao passado. Enquanto aquela se cumpre no fazer, na produção da obra, a última se rege pelos fins da atividade do agente. “Tem-se o direito de pensar, escreve Jacques Taminiaux, que essa meditação aristotélica do que é particular à praxis e do que a diferencia da poiesis [...] é reapropriada por Heidegger na ontologia fundamental, a que ela confere sua articulação”. A oposição entre os dois conceitos abasteceria a distinção entre o existir inautêntico do Dasein, preocupado com os úteis de que se vale no mundo circundante do cotidiano (poiesis) e o existir autêntico do mesmo Dasein, abandonado diante de si mesmo como do mundo que o angustia.
Vê-se, pois, que Heidegger discutiu Aristóteles colocando-o no cerne de seu pensamento. Por isso, a assimilação das noções de poiesis e praxis e o assentamento do sentido ontológico da physis como ousia nada mais foram do que episódios significativos do regime de constante assimilação crítica de Aristóteles por Heidegger, que se intensificou na fase inicial, em seus cursos sobre o filósofo grego, cujas idéias principais, expostas em conjunto e de acordo com a hermenêutica da facticidade, estão resumidas no texto já citado, que elaborou em três semanas, em 1922, para assegurar a obtenção do posto de professor em Marburgo, e por ele enviado a Paul Natorp: Interpretações fenomenológicas de Aristóteles — quadro da situação hermenêutica (Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles — Anzeig der Hermeneutischen Situation).[5]
A interpretação de Aristóteles é, neste escrito, inseparável da situação hermenêutica, de seu horizonte definido pelo ponto de vista e a orientação do olhar dirigido para a pesquisa filosófica em sua dimensão ontológica. E qual é o objeto dessa pesquisa senão o Dasein humano (das menschliche Dasein) “interrogado em seu caráter de ser”? Essa interrogação já focaliza a vida fáctica (faktischen Leben) no desdobramento de seu ser temporal, com o que Interpretações fenomenológicas de Aristóteles nos oferecem um esboço da ontologia fundamental ou um primeiro apanhado da conceptualística de Ser e tempo. Mas é o objeto da pesquisa assim definido que possibilita e circunscreve a interpretação. Sem a mobilidade da vida fáctica, com a sua circunspecção, com o seu horizonte histórico, a sua “decadência” e a volta sobre si mesma no enfrentamento da morte, não teríamos a problemática filosófica que orienta o olhar interpretativo no trabalho empreendido por uma hermenêutica fenomenológica da facticidade, a qual parte de uma situação prévia facticial com o fim de explicitá-la. E que só poderá fazê-lo a contento se desembaraçar o caminho a trilhar da tradição doutrinária filosófico-teológica, como aquela que, implicando numa concepção do homem e da vida, se originou de São Paulo, de Santo Agostinho e de Lutero. Essa concepção enraiza-se na Física, na Psicologia, na Ética e na Ontologia aristotélicas, mas em função de uma escolha interpretativa determinada:
“À luz do problema da facticidade, tal como antes foi colocado, Aristóteles não representa apenas a elaboração concreta e a culminância da filosofia que o precedeu: em sua Física, Aristóteles, com efeito, acede a um novo ponto de partida principal e fundamental de que procedem a sua ontologia e a sua lógica”.[6]
Amparado na situação hermenêutica, Heidegger atribui ao nous, nas Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, o entendimento de sophia e phronesis; é o nous que lhes desoculta a verdade enquanto alétheia. Depois de desvincular Aristóteles da teoria do juízo, que se lhe atribuiu, Heidegger nos alerta sobre o caráter de desencoberto do verdadeiro e da imediatidade da aisthesis, dotada de intencionalidade originária. Do mesmo modo, o logos “deve ser tomado em seu caráter intencional próprio” de apophánsis. O nous é entendimento que se efetua no logos - entendimento “que cada vez proporciona pura e simplesmente o aspecto dos objetos”. Mas tudo isso, como Filosofia, Aristóteles elaboraria a partir da “mobilidade facticial” da vida com que Heidegger determina a sua situação hermenêutica particular. Interpretar Aristóteles é assimilá-lo ao seu próprio pensamento. Heidegger incorpora o filósofo grego, convertido num fenomenólogo, que lhe facultou, com a leitura do livro VI da Ética a Nicômaco, em primeiro lugar o descobrimento da alétheia.
“Um estudo renovado dos tratados de Aristóteles (em particular do livro IX da Metafísica e do livro VI da Ética a Nicômaco) permitiu ver aletheúein, declara Heidegger na sua carta ao padre Richardson, como o abrir sem encobrimento e de caracterizar a verdade como o aberto sem encobrimento de que procede todo “mostrar-se” do ente [...] Quando o olhar penetra na alétheia, como não encobrimento, o que isso deixava reconhecer era o traço fundamental da ousia, do ser do ente: a presença (Anwesenheit)”,[7] o significado da ousia, para os gregos, “orientada somente para uma dimensão do tempo, o presente, segundo o modelo das coisas manejáveis”.[8]
Esse descobrimento tê-lo-ia levado a “uma mais profunda compreensão da fenomenologia, o logos do phainesthai, que exerceu um papel direcional nesse desenvolvimento de suas intuições. A compreensão da alétheia como desocultamento, por sua vez, preparou o reconhecimento do traço fundamental da ousia, ser dos entes, como presença.[9] Atente-se, porém, para o fato de que tal descoberta era contrária ao “ver” fenomenológico de Husserl, que exigia a renúncia da interrogação dos grandes pensadores para esclarecer a discussão. Graças a essa nova compreensão, a fenomenologia podia assegurar, como Walter Brogan insiste em dizê-lo, o direto alcance da verdade, independentemente da proposição.[10]
Num de seus cursos de Lógica dedicado à investigação das relações entre logos e alétheia, Heidegger distinguiria a verdade que as proposições acolhem da espécie noética de verdade da qual Aristóteles trata, “e que desvela o arché, do qual os entes emergem respondendo pelo ser deles [...] Aristóteles chama essa alétheia, esse modo de desvelamento, o pensar filosófico - he theorei to on he hon -, uma sustentação do ente como ser, um deixar os entes serem vistos como ser. O conhecimento filosófico é, em parte, um simples colocar-se na presença do ser. Aristóteles diz que nenhuma falsidade ou decepção é possível nesse modo noético de ver, nesse puro Hinsehen”.[11]
Não há, portanto, simples incidências aristotélicas nas filosofia heideggeriana, que está embebida em Aristóteles, mesmo quando o critica. Sabendo-se que Heidegger não apenas estudou a Metafísica do pensador grego, mas também a sua Retórica e a Ética a Nicômaco, e que o ato de traduzi-lo era indistinto desse estudo - e tal simbiose de tradução e compreensão valeria não só para Aristóteles como para a interpretação dos pré-socráticos e de Platão, que o filósofo germânico investigou -, lícito nos é concluir que o todo do pensamento aristotélico entranha-se, desde a fase de formação, na filosofia dele. Mas esse entranhamento não é, como se poderia concluir dos exemplos anteriores dados, o produto de uma simples incorporação sem debate. Houve entre os dois pensadores confrontos e desencontros mesmo quando se encontraram.
Pretendo, no que segue, referir-me a esses confrontos subsistentes na obra madura de Heidegger, que os absorveu inclusive em Ser e tempo, onde subsistem pontos de incidência do pensamento do Aristóteles, ora aceitos ora contestados, ora assimilados ora em discrepância ao heideggeriano.
As discrepâncias ocorrem quase sempre ao defrontar-se Heidegger com os diversos contributos de Aristóteles sedimentados historicamente pela tradição, principalmente por aquela fixada no séc. XIII, com a Escolástica e seu conseqüente prolongamento moderno herdado por Kant. E quase sempre, também, um novo encontro se dá entre eles a cada desencontro, porque ao traduzir o Estagirita, o pensador alemão, tentando restaurar-lhe a originalidade grega, pretende deslocar os sedimentos históricos depositados pela tradição, tendendo, desde os confrontos iniciais, a recuperar o sentido prístino de suas palavras essenciais, como alétheia e ousia.
Nos parágrafos de Ser e tempo (1, 4, 5, 6, 7, 42 e 80), aqui tratados não especificamente, mas segundo a generalidade da matéria neles versada, o confronto ficou registrado tanto a respeito do ser como a respeito da verdade. Reconhece Heidegger que estatuindo o ser como o mais universal dos conceitos, Aristóteles firmou-o, “sobre uma base fundamentalmente nova” na medida em que deu por suporte desse universal a unidade da analogia; a despeito disso, porém, como ainda nos diz o parágrafo 1, não conseguiu deslindar a obscuridade das relações categoriais implicadas nessa unidade. Entretanto, a ontologia antiga só em Aristóteles alcançou o mais alto ponto de seu desenvolvimento, quando, ao interrogar-se sobre o ser, esse pensador o circunscreveu pelo perceber do que tem diante de si e interpretou-o como ousia, o que Heidegger, por sua vez traduz interpretativamente como presença (Anwesende).[12]
Perguntar “o que é o ente (ti to on), objeto de todas as pesquisas presentes e passadas, diria o primeiro dos dois pensadores, problema sempre a resolver, equivale a indagar: o que é ousia?”[13] Mas na resposta de Aristóteles, o tempo, jogo de criança a que se referiu Heráclito, introduziu-se à sua revelia, conformando o ente com ousia pelo presente, um dos êxtases da temporalidade, justificando o trabalho heideggeriano, previsto em Ser e tempo, de destruição da história da ontologia, ou seja, a prática da exegese negativa, que consiste em escavar, mediante a renovada tradução das palavras gregas, as bases sedimentadas na tradição das diversas concreções - a idea de Platão, a ousia aristotélica, a quidditas escolástica, o pensamento em Descartes, a vontade em Fichte e Hegel, a vontade de potência em Nietzsche - que constituem os eminentes tópicos da história do ser desenvolvida numa segunda fase do pensamento de Heidegger, posteriormente à ontologia fundamental, arquitetada em Ser e tempo. Dentro desse quadro da história do ser, restituir-se-ia à ousia a sua carga temporal, sem desvalorizar-se o conceito respectivo, herdado pelos escolásticos e por eles reelaborado, como essência ou quidditas, que não nos compete aqui examinar.
Passamos a um outro plano do confronto, onde o acordo se converte em aliança. Pressupondo que a tradução de ousia como presença lhe permitiria aceder ao estado da ontologia aristotélica anterior à interpretação escolástica, Heidegger termina por aliá-la à sua própria ontologia fundamental. Pois não autoriza a ontologia aristotélica a descoberta, por intermédio da aisthesis e do noein, que constituem a alma, do ser de todos os entes? O reconhecimento do parentesco da psiqué humana com todos os entes, implícito a essa descoberta, deixaria espaço aberto para que, em Ser e tempo se reforçasse a preeminência ôntico-ontológica do Dasein, como traço de identidade da ontologia fundamental:
“A preeminência ôntico-ontológica do Dasein se percebeu logo, sem que por isso se chegasse a apreender o Dasein mesmo em sua genuína estrutura ontológica e nem sequer a considerá-la um problema orientador. Aristóteles disse: he psiché ta onta pós estin, “a alma (do homem) é de certo modo os entes”; a “alma”, que constitui o ser do homem, descobre, em seus modos de ser, a aisthesis e a noesis, todos os entes no duplo aspecto do “que é” e do “como é”, quer dizer, sempre, também, em seu ser”.[14]
Se, nesse passo, Aristóteles contribui para a Analítica do Dasein, a ontologia fundamental se entrosando à ontologia aristotélica, mais ainda se reforçaria a colaboração de Aristóteles no conceito de logos, sem sacrifício de seus precedentes platônicos. Heidegger já aborda em seu curso “Ontologia e lógica”, mostrando-nos aí que, no pensamento do filósofo grego, o problema do ser é inseparável desse conceito.
Logos é linguagem como fala (die Rede), em que se torna manifesto, visível, aquilo de que se fala a outrem. A esse permitir ver mostrando-o, função da fala enquanto logos, chamou-o Aristóteles de apophánsis - para Heidegger o que precede o juízo e que, identificando-o logicamente, fundamenta a síntese do predicado com o sujeito que nele se opera. Também estaria na coesão do logos como linguagem, a que a visibilidade apofântica, o permitir ver algo como algo, dá plena franquia, o intróito hedeggeriano, no parágrafo 40 de Ser e tempo, à noção de verdade enquanto alétheia.
Somente por que é um permitir ver, pode o mesmo logos ser verdadeiro ou falso:
“O ser verdadeiro do logos com apophánsis é o aletheúein no modo do apophainesthai: permite ver um ente - retirando-o do estado de oculto - em seu estado de não oculto. A alétheia, equiparada por Aristóteles com pragma, phainomena [...] significa “as coisas mesmas”, o que se mostra, os entes no “como” de seu “estado de descoberto””.[15]
Por isso mesmo não procede de Aristóteles a conceituação da verdade, como adaequatio intellectus et rei, pela qual se o responsabiliza, e que firmada foi pelos escolásticos. Muito pelo contrário, apophainesthai implica “num extrair de seu ocultamento o ente de que se fala e permitir vê-lo, descobri-lo como não oculto”. Até aqui a interpretação de Heidegger vai sempre a par e passo de Aristóteles, caminhando ao encontro dos legítimos significados de sua teses.
Em contraste com esses encontros é que sobressai o desencontro de ambos em torno da questão do tempo, já embutida na maneira de Aristóteles conceber o ser, e que, compartilhando da cecidade ao temporal característica da ontologia grega, foi por ele expressamente tematizada no livro D da Física, que é “a primeira interpretação detalhada desse fenômeno que nos foi transmitida”,[16] a qual Heidegger, com o escopo de deslindar os fundamentos temporais da ontologia antiga, interpretará por sua vez, iniciando o exame desse livro, ainda em 1924, na conferência “O conceito de tempo”. A continuação do mesmo exame, que deverá ser feita na terceira seção da segunda parte jamais publicada de Ser e tempo, conforme anunciado em sua introdução, só viria a efetivar-se no curso sob o título de “Problemas fundamentais da fenomenologia”, ministrado no segundo semestre de 1927.
Por duas vezes, na conferência sobre o conceito de tempo, de 1924, Heidegger refere-se à conceituação de Aristóteles constante de seu mencionado livro D da Física: primeiramente quando destaca o nexo do tempo com o movimento, depois quando focaliza o agora enquanto elemento que garante esse nexo, acrescentado a essa análise, como aspecto novo, concordante com a concepção aristotélica mas não dela explicitável, o apresentar-se, mediante esse mesmo agora, do tempo no relógio. “A determinação elementar que produz o relógio como tal não é a indicação da duração - da quantidade de tempo que escoa presentemente - mas o fato de fixar duravelmente o agora.”[17] Essa fixação, que independente da revolução solar, remete-nos ao “relógio que a existência humana (menschliche Dasein) sempre possui”, porque, conforme esclarece o parágrafo 81 de Ser e tempo (1927), onde essa explanação daquele escrito prematuro encontrou amplo desenvolvimento, o ponteiro móvel do mostrador indicando números, com o que sempre relaciona o anterior com o posterior, indica algo, segundo a retenção e a expectativa nossa, pressuposta por essa relação: o tempo, como o numerado que se mostra no curso desse movimento repetitivo.
Ora, essa conceituação diverge, ao extremo, da concepção heideggeriana do tempo como temporalidade. Mas cada desencontro de Heidegger com Aristóteles prepara um novo encontro entre eles. Pois o que aí se descreveu é a compreensão cotidiana, pública, do tempo, que usamos e com que contamos, através dos úteis que nos circundam e que nada mais é do que “a interpretação ontológico-existentiva da definição que Aristóteles dá do tempo: “o numerado do movimento que se mostra dentro do horizonte do anteriormente e do posteriormente””.[18] E como por essa definição podemos reencontrar a temporalidade, o desencontro que ela traduz é o encaminhamento para um novo encontro.
Em “Problemas fundamentais da fenomenologia” expõe-se, cuidadosa e minuciosamente, como não se fez no tratado de 1927, a análise aristotélica do tempo, uma das mais notáveis do Estagirita, de que resultou aquela definição. São bem conhecidos os seus passos principais: a negação de que o tempo seja movimento, porque este se encontra unicamente na coisa que muda, depois a afirmativa de que não há tempo sem movimento, porque quando não percebemos o movimento, não percebemos o tempo, e finalmente, dado que o movido vai de um ponto de partida a um ponto de chegada, e que a grandeza é contínua, a relação entre o anterior e o posterior pela qual conhecemos o movimento, permite determinarmos o tempo como o seu número:
“Aristóteles fala de aritnmos kinéseos katà tó protéron kai usteron. O que traduzimos: o tempo é um (número) numerado quanto ao movimento vindo ao encontro na ótica do antes e do depois, no interior do horizonte do anterior e do posterior. O tempo não é somente o que no movimento é numerado, mas que o é na medida em que o movimento é considerado na perspectiva do antes e do depois, quando seguimos seu curso enquanto movimento. O horizonte em questão é o do anterior e do posterior [...] Aristóteles diria: o tempo é o número do movimento vindo ao encontro no horizonte do tempo (do ântero-posterior). Ora, isso equivale a dizer: o tempo é qualquer coisa que vem ao encontro no horizonte do tempo”.[19]
Passemos, agora, à interpretação heideggeriana.
O primeiro ponto a destacar é que Aristóteles afirma exatamente que o tempo é arithmos kinéseos, um número do movimento - ou que o movimento tem um número que é o tempo - sendo porém o movimento tomado na perspectiva do antes e do depois, “quando seguimos seu curso enquanto movimento”. Mas o antes e o depois, o anterior e o posterior, já são temporais, e assim introduzindo-se antecipadamente o tempo na definição, teríamos uma definição tautológica:
“Talvez que a definição aristotélica do tempo não seja uma tautologia e que ela se limite a focar a estreita conexão do fenômeno do tempo segundo Aristóteles, quer dizer do tempo na sua compreensão vulgar com o tempo original que designamos como temporalidade”.[20]
Como no movimento há um móvel que se desloca, percorrendo vários pontos, no tempo há sucessão de momentos pontuais, de agora.
O segundo ponto que merece ser realçado, é que Aristóteles nos diz que o agora é co-percebido com o movimento, portanto também ganhando número, e que não se pode compreender senão no horizonte da relação entre anterior e posterior. Mas sendo um limite entre o que se passou e o que virá, o agora é constitutivo do tempo. Aristóteles pôde também compreender que assegurando a continuidade do tempo, o agora se divide num anterior e num posterior. Nesse caso, então, como escreveria Aristóteles, o agora, pela sua essência própria, não é limite, “na medida em que a título de passagem e de dimensão, está aberto do lado do ainda não e do não é mais”. E se o tempo é número, não é menos que medida do movimento; e o tempo só pode medir o que dentro dele está. Para o Estagirita, dizer que as coisas estão dentro do tempo, significaria afirmar que seriam pelo tempo medidas, em virtude de seu caráter transacional.
Enfim, como Heidegger dirá ainda em “Problemas fundamentais da fenomenologia”:
“Nenhuma tentativa para decifrar o enigma do tempo pode dispensar um debate com Aristóteles, pois foi ele que pela primeira vez e por muito tempo conceituou de maneira unívoca a compreensão vulgar do tempo, de tal modo que a sua concepção do tempo corresponde ao conceito natural do tempo”.[21]
A concepção vulgar, pré-científica do tempo iguala-se à natural, que nos remete à temporalidade, como tempo originário, o que “tem por consequência que a definição aristotélica do tempo não é senão o ponto de partida da interpretação do tempo”.[22]
Mas por outro lado, a ousia enquanto presença, que já constitui interpretação do tempo, é um ponto de partida da interpretação do ser como ente, em consonância com a noção de alétheia. Nessa convergência, Heidegger é tão aristotélico quanto Aristóteles heideggeriano. A história do ser engloba a ontologia do Estagirita. Como a história do ser e a história da metafísica, e que a metafísica começa quando Platão eleva acima do real empírico o mundo das idéias, tendo no topo o sumo Bem, Aristóteles, que filosofou contra Platão mas a partir dele, estaria integrado a essa história. Em consequência do que cumpre indagar, como Heidegger faz, numa passagem de O Niilismo europeu, ao examinar a doutrina do Bem em Platão, assentando que este concebeu o ser enquanto ousia no sentido de presença, constância e visibilidade, qual é, em face da platônica, a especificidade da ontologia aristotélica:
“Aqui se apresenta a ocasião de determinar a posição metafísica de Aristóteles, para a qual não basta, é verdade, precisamente a costumeira oposição a Platão; pois Aristóteles experimenta uma vez mais, conquanto através da metafísica platônica, pensar o ser na maneira grega inicial, tentando, por assim dizer, recuar da passada de Platão com sua idea tou agathou, pela qual é a propriedade de ser que recebe a caracterização do que condiciona e torna possível aquela da dynamis. Contra o que - ousamos adiantar - Aristóteles pensa o ser enquanto entelécheia mais à maneira grega do que Platão. O que isso significa, não pode dizer-se em poucas palavras. Pode-se somente observar o seguinte, a saber, que Aristóteles não é nem um platônico acidentado nem o precursor de Tomás de Aquino. Sua realização filosófica não se esgota menos no absurdo, que lhe é atribuído frequentemente, de ter feito sair de seu ser-em-si as Idéias de Platão para alojá-las nas próprias coisas. A despeito da distância que a separa do começo da filosofia grega, a metafísica de Aristóteles é, sob muitos aspectos essenciais, como uma espécie de élan, ainda impulsionado, no interior do pensamento grego, no sentido do retorno ao começo deste pensamento.”[23]
Assim Heidegger confere à ontologia aristotélica estatuto histórico especialmente ambíguo, visto que a põe dentro e a cavaleiro do pensamento grego que ela ajudou a constituir.
Belém, agosto, 1999.
Notas
[1] Richardson J., S. J., Heidegger - through Phenomenology to Thought, 3ª edição (bilingüe), pp. X-XI, The Hague, Martinus nijhoff, 1974.
[2] Metafísica, cap. 7, livro D.
[3] Aristoteles, Metaphysik, 0 1-3, Gesamtausgabe, Band 33, Vittorio Klostermann, 1981. Die Physis bei Aristoteles (A Física em Aristóteles) - Ce qu'est et comment se determine la physis, trad. De François Fédier, in Questions II, Gallimard, 1968.
[4] Jacques Taminiaux, “La réappropriation de l'Éthique a Nicomaque”, in Lectures de l'Ontologie fondamentale (essais sur heidegger), Jerôme Millon, Grenoble, 1955.
[5] Trans Eur repress, Mauvezin, 1992.
[6] Interpretações fenomenológicas de Aristóteles, p.33.
[7] Carta a Richardson, op. cit., p. XIII.
[8] “What did Heidegger find in Aristotle?” In Theodores Kisiel, The Genesis of Heidegger's Being and Time, p. 230, University of Chicago Press, 1993.
[9] “What did Heidegger find in Aristotle?” In Theodores Kisiel, The Genesis of Heidegger's Being and Time, p. 228, University of Chicago Press, 1993.
[10] Walter Brogan, “The place of Aristoteles in the development of Heidegger's phenomenology”, in Reading Heidegger from the star, Essays in his earliest thought, edited by Theodore Kisiel and Jonh von Buren, Suny Series, State University, New York Press, 1994.
[11] Walter Brogan, idem, p. 217/218.
[12] Vide par. 6 de Sein und Zeit, (achte unveränderte Auflage): “O problema de uma destruição da história da ontologia”.
[13] Aristóteles, Metafísica, livro Z, 1028b, pela edição francesa em dois tomos a cargo de J. Tricot (Vrin, Paris, 1974).
[14] Sein und Zeit, § 4.
[15] Sein und Zeit, § 44.
[16] Sein und Zeit, § 6.
[17] Le concept de temps (1924), L'Herne, Martin Heidegger, p. 29, Paris, 1983. A tradução para o Português (Marco Aurélio Werle, O Conceito de tempo e A questão da técnica) data de 1997. Cadernos de Tradução, 2, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo.
[18] Trata-se da intratemporalidade.
[19] Die Grundproblem der Phänomenologie, p. 341.
[20] Die Grundproblem, p. 341.
[21] Idem, p. 329.
[22] Idem, p. 362
[23] O Niilismo europeu, Nietzsche II, p. 228, Günther Neske Pfullingen, 1961.
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