segunda-feira, 23 de agosto de 1999

Ratio Studiorum: Contra-Reforma ilustrada

Vamireh Chacon (UNB)
Cultura é questão de fé, para existir uma cultura ela tem de crer em si própria, uma das lições fundamentais de Max Weber. O islã também pela fé partira do Norte da África e Oriente Médio como dois tenazes pelo Sudoeste e Sudeste da Europa, a península ibérica e a balcânica.
Contudo, Loyola entendeu e muito bem a importância do humanismo renascentista, revalorização religiosa da cultura greco-latina esquecida literariamente, só lembrada filosoficamente pela Idade Média. Lembre-se a opção de estudos de Inácio na Universidade de Paris, pelo Colégio de Santa Bárbara, Sainte-Barbe, naquele tempo assim se chamavam as Faculdades medievais, ainda hoje colleges em países de língua inglesa. Inácio não quisera ficar no Colégio Monteagudo, Montaigu, de rígida escolástica imposta pelos cartuxos.
A decisão significava mais que o comodismo de matricular-se numa Faculdade dirigida por um português, Diogo de Gouveia, Faculdade em parte financiada com bolsas de estudo pelo rei de Portugal Dom João III.
O crítico espanhol Ricardo García-Villoslada sintetizou muito bem a inspiração de Inácio de Loyola nas sementes do ratio depois codificado: “O que Inácio fez foi preencher com realidades e energia sobrenaturais a vacuidade sonora das palavras do grande humanista”, a Erasmo faltava o “fervor místico de um santo”. “A cabeça realista de Inácio não tinha ilusões. Sabia que os tempos eram de guerra e, o pior, tempos de revolução. O catolicismo devia fazer frente a dois inimigos viscerais: o protestantismo e o Crescente muçulmano. Por isso as soluções inacianas foram diretas e eficazes”.
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O caminho devia ser outro, a conquista de mentes e corações dos adultos, principalmente das crianças e jovens, para isto a necessidade de escolas, em Messina, 1548, o primeiro colégio jesuíta, a Universidade de Gândia em Roma, a primeira católica no mundo.
Coube ao padre Cláudio Acquaviva, eleito superior geral da Ordem em 1581, organizar a sistematização do método pedagógico jesuítico.
Ele começou designando uma comissão de representantes das províncias da Companhia de Jesus da Espanha, Portugal, França, Áustria, Alemanha e de Roma para a elaboração de um anteprojeto, transformado em projeto pelas mãos de outra comissão desta vez integrada por filósofos do porte de Francisco Suárez e teólogos do nível de Roberto Belarmino depois até canonizado. Em 1599 era promulgado a Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu.
Frutificava a semente renascentista dos estudos sistemáticos de bacharelado em humanidades e mestrado em Teologia de Inácio de Loyola no Colégio de Santa Bárbara da Universidade de Paris de 1528 a 1535.
A Ratio Studiorum tentava cristianizar a Antiguidade greco-latina, principalmente Cícero e Virgílio, mais Santo Tomás de Aquino por cima do Livro das Sentenças de Pedro Lombardo até então manual oficial, muito limitador da escolástica.
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Foi este método que tanto contribuiu para formar Corneille, Molière, Descartes, Montesquieu e o próprio Voltaire na França; Cervantes, Calderón de la Barca e Lope de Vega na Espanha; na Itália Tasso e Vico; e muitos mais mundo afora, inclusive no Brasil desde o primeiro século de colonização até com defesas de teses de mestrado em Artes, humanidades, nos colégios, no sentido de colleges medievais e não de meras escolas secundárias, em Salvador da Bahia e Olinda de Pernambuco, depois no Rio de Janeiro.
[3] A perseguição desencadeada pelo Marquês de Pombal, iluminismo autoritário pré-totalitário da razão pretensamente bastante em si mesma, arruinou não só a única rede escolar brasileira de ensino, porque não conseguiu substituí-la pelos oratorianos e escolas régias estatais em escala suficiente, como também fez destruir os arquivos jesuítas.
Cedo a Matemática uniu-se às humanidades clássicas. O exímio matemático Cristóvão Clávio já era colega de filósofos e teólogos no Colégio Romano futura Universidade Gregoriana.
[4] Clávio é um dos principais responsáveis pelos novos cálculos do calendário gregoriano substitutivo do juliano.
A revisão da Ratio Studiorum, 1832, com a introdução de mais Matemática (três anos) e um de Física Experimental no curso de Filosofia, e dois de História Eclesiástica e Direito Canônico na Teologia, significou, como Leonel Franca aponta, que “Aristóteles foi apeado de uma hegemonia excessiva”. Desde 1941 se tenta uma nova síntese da Ratio, as dificuldades de alcançá-la.
[5] comprovam os dilemas da construção de um novo humanismo fiel ao melhor do antigo e em síntese com as crescentes descobertas científicas e tecnológicas, mas o Ratio não se vem excluindo do debate, muito pelo contrário.
A Ratio Studiorum significa, em última instância, um extraordinário esforço de continuidade cultural orgânica de atualizar o renovável da Idade Média no Renascimento, daí com projecções no próprio iluminismo, no que eles tinham de aberto e generoso. Foi o jesuíta francês Claude Buffier o autor maior desta tentativa de ponte em sua atividade docente e de pesquisa no Colégio Louis-le-Grand aos inacianos confiado em Paris, já na primeira metade do século XVIII. Através de Buffier e de outros da época, os jesuítas influenciaram profundamente o ensino humanístico francês, marca permanente mesmo depois de laicizado em baccalauréat.
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Tinha chegado o tempo de suprir com mais Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia e maior e melhor aprendizado de vernáculo a Ratio Studiorum no trânsito do Renascimento ao Iluminismo. Outros se foram encarregando das Ciências Matemáticas e Naturais, a Buffier coube o das Históricas e Geográficas e do Francês. Por este ele começou com sua Gramática Francesa sobre Um Novo Plano (1709). Desde 1660 que os jansenistas estavam nisto à frente, os inacianos não podiam perder mais tempo. Também por aí veio o contra-ataque inaciano.
Percorridas estas etapas introdutórias, exercícios de destreza intelectual humanística atualizadora, Buffier partiu rumo a outras atualizações, ao escrever o Tratado das Primeiras Verdades, os Elementos de Metafísica e os Princípios do Raciocínio. Ali é que procurará sua síntese de Descartes e Locke, recorrendo mais a este que àquele. Buffier reconhecia grande valor à percepção sensorial, então usa o treinamento historiográfico para apontar a recorrência da idéia de Deus na História como mais uma prova da existência Dele, além do tradicional argumento da ordem do universo ao qual também Descartes aderira. De Descartes adota principalmente a insistência no rigor do raciocínio sistemático, mas recusa seu formalismo lógico.
Antes de o preconceito antijesuítico levar ao esquecimento Claude Buffier, sua influência foi considerável, ora reconhecida, ora negada, mas sempre lembrada de um modo ou de outro. Voltaire lembra-o nas suas Últimas Observações sobre os Pensamentos de Pascal, o próprio Voltaire foi dos que atacaram os jansenistas, mas elogia-o em O Século de Luís XIV. Influência ainda maior em Diderot e em diversos artigos da Enciclopédia, a ponto de em alguns deles transcrevê-lo em parte literalmente, embora sem citá-lo, tão extremadas estavam as paixões da época. Rousseau também não o refere, mas seu conceito de Deus, conceito intuitivo profundo na Profissão de Fé do Vigário Saboiano, apresenta nítidas afinidades com o de Buffier. O mesmo se diga de Condillac em seu lockianismo mitigado. Reconhecimento nesta linha enfim aparecendo entre os condillaquianos, Destutt de Tracy à frente. Dali a influência de Buffier salta o Canal da Mancha, reaparece na escola escocesa de Reid, Oswald, Beattie e Dugald Stewart, que admitem diretos ou indiretos débitos intelectuais a Buffier na formulação do conceito de bom-senso ou senso-comum vindo de Locke, recusado por Descartes, retomado por Buffier.
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Será no Curso de Ciências sobre Princípios Novos e Simples, 1732, onde Buffier estenderá à interpretação social e política da sociedade os conceitos lockianos, a partir do senso-comum. Daí propor a razoabilidade do cristianismo e catolicismo, sem fixar-se em discussões de racionalidade.
Outra coisa o impacto da Ratio Studiorum fora da Europa, na Ibero-América sua crítica iniciada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala, 1932, indiretamente respondida pelo jesuíta Leonel Franca, O Método Pedagógico dos Jesuítas (O “Ratio Studiorum”), 1952, e diretamente por mim no meu O Humanismo Brasileiro, 1980, ainda em vida de Gilberto, com quem tantas vezes também a respeito dialoguei e debati pessoalmente.
Em Casa-Grande & Senzala, ele apresenta uma visão crítica dos inacianos que “insistiram, a princípio, em ensinar aos índios em seus colégios, ‘coisa de conta’ ou de ‘sentido’, nas palavras do cronista [Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587]. Ler, contar, escrever, soletrar, rezar em Latim. Em tais exercícios se revelariam os indígenas sem nenhum gosto de aprender; sendo fácil de imaginar a tristeza que deve ter sido para eles o estudo nos colégios dos padres. Tristeza apenas suavizada pelas lições de canto e música; pela representação de um ou outro ofício manual”.
Gilberto adota sua opção pelos franciscanos, que entrevia nos tupinambás “uma condição muito boa para frades franciscanos”, por “possuírem tudo em comum”. À qual Gilberto acrescenta “sua queda ou pendor para os ofícios manuais; a sua repugnância pelas muitas letras”.
E passa da visão crítica dos jesuítas a uma visão poética dos franciscanos: “Um entusiasta da Ordem Seráfica poderia sustentar a tese: o missionário ideal para um povo comunista nas tendências e rebelde ao ensino intelectual como o indígena na América teria sido o franciscano. Pelo menos o franciscano em teoria: inimigo do intelectualismo; inimigo do mercantilismo; lírico na sua simplicidade; amigo das artes manuais e das pequenas indústrias; e quase animista e totemista na sua relação com a natureza, com a vida animal e vegetal”.
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Quanto à implícita acusação de imposição da Ratio Studiorum como desculturação dos indígenas para reaculturação europeizante, leve-se em conta como os demais missionários do século XVI, primeira colonização ibero-americana, estavam todos menos ou mais imbuídos de Renascimento. Comprovam-no os currículos das suas escolas paralelas às dos jesuítas.
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José Honório Rodrigues mostra como demorou este processo de aculturação. Só na primeira Assembléia Nacional Constituinte, a do Império, 1823, “brasileiros de toda parte falavam sua própria língua aos outros em assembléia pública. Uns poucos deviam ter notado as diferenças de prosódia. A língua se formara numa competição desigual com línguas indígenas e negras e variações prosódicas oriundas dos diferentes grupos do português falados em regiões diversas”. Em fins do século XVII, princípios do XVIII, um governador-geral do Brasil, António Paes de Sande, ainda relatava a Lisboa que “os filhos [dos paulistas] primeiro sabem a língua do gentio que a materna [portuguesa]”.
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Era o resultado do processo histórico-cultural acelerado pela cada vez maior utilização da Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil de Anchieta de 1595, codificando o tupi-guarani dos vários dialetos tribais com vistas à sua comparação com o português para maior generalização e final vitória deste. A unidade linguística pelos inacianos e a centralização administrativa pela dinastia dos Braganças foram os principais preparadores da unidade nacional brasileira, contra as separatistas forças centrífugas regionais e locais.
Por tudo isto, Marcel Bataillon exagera, em limitação excessiva, ao declarar a Ratio um dos neo-erasmismos, “humanismo pagão dos jesuítas”,
[11] estranha enormidade vinda de tão erudito pesquisador. Também demasiado delimitadora, pelo oposto lado conservador, é a visão do cardeal Cerejeira ao reconhecer a Ratio enquanto “mais do que uma adaptação de Vives”, porém datado “compêndio da experiência pedagógica do Renascimento”.[12]
Na realidade, desde as origens e nas suas projecções, a Ratio Studiorum busca a construção humana pela “formação literária, cultura filosófica, iniciação pedagógica – educação ativa, participante – visando três qualidades permanentes: a do apóstolo, a do scholar e a do gentleman”. “O homem da Renascença não é o homem do século XX. Mas os problemas subjacentes da educação são os mesmos: o homem é uma constante e suas faculdades não variam com os séculos.”
[13] Daí a crescente importância também da Engenharia Genética em suas discussões e acções sobre a escala humana, o que pode e deve permanecer diante do que pode e deve ser modificado para melhor no ser humano. Mortimer J. Adler desde 1982 propõe nos Estados Unidos e ao mundo até uma nova paideia integradora das fragmentações da modernidade, paideia hoje evidentemente muito mais complexa, nem por isso menos necessária senão urgente: “Necessitamos de especialistas para nossa prosperidade econômica, para nosso bem-estar e nossa segurança nacionais, para o progresso continuado em todas as artes e ciências, e em todos os campos de estudo. Mas para benefício de nossas tradições culturais, de nossas instituições democráticas, de nosso bem-estar individual, nossos especialistas devem também ser generalistas, isto é, seres humanos educados de uma maneira geral”. E propõe, para sua cultura, “um ensino básico de Língua e Literatura Anglo-Americanas, Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia e Estudos Sociais”.[14] Projeto de integração de humanidades e ciências um tanto paralelo ao do Ratio Studiorum, o que mais uma vez comprova a importância das suas contínuas construtivas antecipações.

Notas[1] Ricardo García-Villoslada. Loyola y Erasmo. Madrid: Taurus, 1965, pp. 17, 15, 282 e 322[2] Leonel Franca. O Método Pedagógico dos Jesuítas (O “Ratio Studiorum”). Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1952, pp. 17-19, 21, 22, 7-9, 35, 10, 13, 38, 29, 30, 32, 199, 204, 35, 159 e 34.[3] Serafim Leite, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa-Rio de Janeiro: Livraria Portugália-Civilização Brasileira, 1938, principalmente o tomo I, pp. 96, 76 e 102.[4] “Francisco Suárez y su obra”, introdução de Luciano Pereña à antologia Selección de Defensio Fidei y otras obras de Suárez. Buenos Aires: Depalma, 1966, p. VIII.[5] O Método Pedagógico dos Jesuítas (O “Ratio Studiorum”), op. cit., pp. 25 e 26.[6] Michel Villey. La formation de la pensée juridique moderne. Paris: ed. policopiada, s. d., p. 416.[7] Kathleen Sonia Wilkens. “A Study of the Works of Claude Buffier” in Studies on Voltaire and the Eighteenth Century, coord. por Besterman, Theodore. Genebra: Instituto e Museu Voltaire, 1969, vol. LXVI, pp. 34, 36, 39, 43, 45, 65, 68, 77, 83, 86, 98, 45, 102, 103, 106-108 e 110-115.[8] Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. 12ª ed. no Brasil, 13ª em português. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, pp. 201 e 202.[9] Os próprios grandes historiadores franciscanos o reconhecem: Frei Jaboatão no século XVIII e Frei Bonifácio Mueller no XX - apud Vamireh Chacon, O Humanismo Brasileiro: São Paulo: Summus Editorial, 1980, p. 87.[10] José Honório Rodrigues. A Assembléia Constituinte de 1823. Petrópolis: 1974, p. 277.[11] Marcel Bataillon. Erasmo y España (trad. do francês). México Madrid-Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1991, pp. 921 e 772.[12] Cardeal Dom Manuel Gonçalves Cerejeira. O Renascimento em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, 1975, II vol. (Clenardo. O Humanismo), p. 165.[13] J.M. Madureira, S. J. “O Ideal Pedagógico da Companhia” in Ratio Studiorum (Método Pedagógico dos Jesuítas), coord. por Pedro Maia, S. J.. São Paulo: Edições Loyola, pp. 31, 63 e 64.[14] Mortimer J. Adler. A Proposta Paidéia. (trad. do inglês). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1984, pp. 69 e 35.