Celso Martins Azar Filho (Universidade Estácio de Sá)
Notas ao fim do texto
O período de transição, como é comum qualificá-lo, entre a Idade Média e a Modernidade, época histórica denominada ‘Renascimento’ - o qual se estenderia, para marcar limites, certamente bastante imprecisos (e não apenas no sentido cronológico), entre Ockham e Descartes – sofreu, como momento filosófico, um eclipse que somente começará a ser superado pela historiografia posterior a 1850. Contudo, até cerca de 1930, um julgamento em geral superficial e negativo será determinante nas orientações de sua progressiva recuperação. As diversas razões para tanto – resultantes de preconceitos intelectuais, políticos, religiosos, etc, vindos do início do Classicismo, fortalecidos por volta do fim do Iluminismo, e sobrevivendo ainda hoje, mesmo se apenas isoladamente – não são a preocupação central destas linhas. Faz-se, porém, necessário assinalar de início tal fato, porque só assim poderemos entender o aspecto de novidade e a conseqüente urgência que tem para nós hoje o estudo das diversas correntes aristotélicas e antiaristotélicas na filosofia renascentista. E isto não deve ser perdido de vista com relação ao presente colóquio, especialmente se considerarmos o seu paradoxal pioneirismo no cenário filosófico brasileiro, reflexo do estado espiritual de uma nação que se prepara para comemorar os quinhentos anos do descobrimento de sua terra, desconhecendo as circunstâncias culturais que o marcaram, e as quais determinam ainda hoje seus caminhos e descaminhos.
O movimento de reavaliação da importância do estudo de Aristóteles no Renascimento data notadamente da segunda metade do nosso século, intensificando-se nos últimos trinta anos. Até aqui os principais resultados destas pesquisas são de um gênero que poderíamos chamar destrutivo, pois a função mais geral e profícua das explorações realizadas tem sido a de abalar e derrubar as noções anteriormente estabelecidas sobre a voga da filosofia aristotélica na Renascença. Assim como foi preciso recusar toda uma série de conceitos equivocados, avaliações descentradas, visões míopes, etc, não apenas com relação ao pensamento renascentista, mas acerca da cultura deste tempo em geral, também no domínio particular do estudo do aristotelismo foi imprescindível um trabalho de negação dos erros, na verdade simultâneo com os avanços da investigação, que, facultando o espaço livre para repor o problema em novas bases, reconstituiu um domínio de pesquisa que havia sido até então simplesmente anulado.
O juízo atual sobre a presença de Aristóteles no Renascimento pode ser resumido em dois pontos básicos interligados. Primeiro, a rejeição da concepção tradicional – ainda hoje corrente, ao menos em boa parte dos manuais ou obras gerais e de referência – a qual lia sempre na filosofia de então uma ascendência platônica, não apenas predominante, mas exclusiva. Conseqüência da popular confusão do humanismo com o todo do pensamento renascentista, aliada ao prematuro atestado de óbito que a ignorância precipitada de alguns teóricos conferiu a escolástica, a falsa impressão da preponderância absoluta de um certo platonismo difuso por todo o universo filosófico renascentista, revela fundamentalmente a falta, infelizmente ainda hoje bastante comum, de conhecimento acerca deste. Em segundo lugar, porém não menos importante, a revisão da ênfase exagerada no rompimento em todos os níveis com o mundo medieval que significou o advento de uma nova era a partir do fim do século XIV. Não que não tenham havido cortes, interrupções e inovações: talvez a Renascença tenha representado o mais violento alargamento de horizontes pelo qual já passou a humanidade. Contudo, e esta é uma lição a ser aplicada não só aqui, mas que, como sabemos, vale para a história como um todo, a percepção das descontinuidades, não deve impedir-nos de notar as permanências. Muitas vezes os grandes nomes dos mega-períodos com os quais pretendemos dividir o fluxo dos acontecimentos terminam por cegar-nos com sua amplitude descomunal, tornando indistinto o vicejar dos elementos culturais pelos quais justamente deveriam ser definidos. Se os Descobrimentos, a redescoberta da Antiguidade, a Reforma, a invenção da imprensa, as guerras, a peste, e muitos outros fatos por demais conhecidos para que nos alonguemos aqui sobre eles, transformaram o mundo nos séculos entre o medievo e os tempos modernos, não apagaram absolutamente um componente essencial de continuidade filosófica que religa estes àquele, e sem a compreensão do qual todo o correr da história da filosofia queda sem sentido. Ora, o aristotelismo, precisamente porque nele se mostra a constância e a concatenação da tradição em seu recriar revolucionário de si mesma, constitui um dos fatores mais relevantes e significativos desta continuidade. Alguns dados, colhidos como se ao acaso, podem comprovar e ilustrar tal afirmação.[1]
No século XVI foram produzidas mais traduções novas de numerosas obras e versões revisadas de antigas traduções que durante todos os séculos precedentes juntos, e, consequentemente, a produção de edições de Aristóteles atingiu um número sem precedentes. As obras concernentes a Aristóteles, entre a invenção da imprensa e 1600, variam entre três ou quatro mil títulos – os que se referem a Platão são menos de quinhentos. Por exemplo, o número de comentários latinos[2] de Aristóteles compostos entre 1500 e 1650 ultrapassa aquele de todo o milênio que vai de Boécio à Pomponazzi. E nada mais lógico, uma vez que o estagirita continua a ser então a fonte dos princípios que estruturam os manuais nos quais toda a Europa aprende a filosofia e as ciências: Galileu estuda-o com os jesuítas do Collegio Romano; Descartes faz o mesmo através dos textos de outros jesuítas em La Flèche e no curso de Coimbra; Newton anota Magirus, um aristotélico luteriano; Harvey, como Copérnico antes dele, recebe sua formação em Pádua, famoso centro de estudos do corpus aristotelicum – e se cada um deles em determinado momento de algum modo acaba por se afastar do mestre, as pesquisas recentes mostram que sua influência sobre todos eles foi mais forte do que um dia se acreditou.[3] Como conseqüência deste prestígio, a diversidade de gêneros literários que se consagrou então à difusão de Aristóteles talvez só encontre paralelo na gama de possibilidades suscitada pelas Escrituras.[4] Por toda sociedade européia, independente de credo, de classe social ou intelectual, aqueles que tinham alguma instrução liam Aristóteles.
É fácil, portanto, constatar: não só a doutrina peripatética não está morta, mas talvez esteja mesmo mais viva do que nunca. Todavia, isto não quer dizer que esta não seja contestada, atacada, negada: justamente na discussão aberta em seu redor temos a prova mais clara de sua vitalidade. As disputas pela herança intelectual aristotélica, acerca da leitura mais apropriada dos textos a esta relacionados, de sua tradução mais correta, de seu verdadeiro sentido e da adequação deste a uma ou outra visão de mundo, mostram que temos aí um dos referenciais essenciais para a ciência, a religião, a filosofia, a política, a arte, enfim para a quase totalidade dos domínios de atividade do espírito humano na época. Notemos que uma das características mais próprias deste período que chamamos Renascimento foi sua capacidade de dissolver os limites e barreiras entre os diversos setores da cultura que, então, interpenetram-se, interagem e se reorganizam. Nada de mais, pois, se as grandes adversárias e aparentemente inconciliáveis escolas ou formas de pensamento nas quais é costume dividir a filosofia renascentista – a escolástica e o humanismo – tenham também se influenciado mutuamente, e precisamente com relação ao estudo daquele que constituía uma das orientações capitais para ambas. Se isso foi mais verdade em um sentido do que no outro – pois enquanto o humanismo tem como centro de sua atenção os studia humanitatis,[5] deixando praticamente de lado a física ou a biologia aristotélicas e estudando quase exclusivamente a filosofia moral, à escolástica, a qual constitui a filosofia universitária propriamente dita, interessa de perto toda inovação no estudo da obra aristotélica, absorvendo por isso rapidamente as novas maneiras de apreciá-la –, não decorre daí que os humanistas tenham abandonado a filosofia aristotélica. Não podemos esquecer, por exemplo, do papel fundamental desempenhado pela tradução e o dilucidar precisamente de Aristóteles por Leonardo Bruni na produção da nova técnica de interpretação, baseada na análise filológica e histórica, que distingue o humanismo.
O verdadeiro objetivo das críticas humanistas é a escolástica e, por trás dela, as noções que caracterizavam a mentalidade medieval: a auctoritas, a fixidez das formas, o anacronismo, etc. É preciso perceber como freqüentemente mesmo entre os inimigos mais encarniçados das idéias aristotélicas no Renascimento persiste, em meio às reprovações e condenações, o projeto peripatético de filosofia. A atitude de Pierre de La Ramée o qual, após uma vida de querelas contra os aristotélicos, sairá em defesa de Aristóteles, é mais comum do que poderia parecer: há um propósito difuso no meio humanista de retornar ao verdadeiro Aristóteles (segundo a expressão do próprio Ramus).[6] Além disso, o peripatetismo sobrevive inesperadamente mesmo na obra daqueles que acreditaram estar recusando-o em bloco e de uma vez por todas: o clima intelectual de então encontrava-se tão penetrado de temas e enquadramentos aristotélicos que os que pretendiam afastar-se destes em muitos casos acabavam por, consciente ou inconscientemente, aí recair. É de certa forma também o caso de Michel de Montaigne de quem se quer avaliar aqui a relação com a obra aristotélica; avaliação esta a qual não será efetuada, no entanto, de uma maneira exaustiva – o que já foi feito, e bem, por outros,[7] e não poderia ser executado de maneira adequada no espaço restrito de uma comunicação –, mas apenas justamente sobre este ponto determinado da coexistência, em suas idéias, de desacordos e acordos com Aristóteles.[8]
Na leitura dos Ensaios temos uma excelente oportunidade para compreender a crítica humanista do aristotelismo. E o exame desta questão na filosofia montaigniana auxiliar-nos-á sobremaneira, logo veremos, a expor e explicar algumas de suas concepções mais importantes. Destarte, o presente texto fará parte da empresa contemporânea de recuperação de um dos capítulos cruciais da história da filosofia a partir do estudo de uma de suas produções mais representativas.
O autor dos Ensaios é evidentemente um adversário da escolástica. Mas, quando faz desta um dos alvos preferenciais de sua verve, ele visa antes de tudo uma certa maneira de filosofar, da qual aquela, inadvertidamente ou não, participa. Porque Aristóteles é então o pensador escolástico emblemático, ele será alvejado na obra montaigniana como um dos representantes principais da forma de pensamento que o ensaísta quer denunciar. Estes ataques devem ser avaliados com cuidado por quem pretenda compreender as idéias do cético renascentista, não só porque são realizados contra um dos referenciais maiores da cultura antiga, medieval e renascentista, mas pelo caráter particular do procedimento ensaístico que desenvolve simultaneamente a crítica e a criação, colocando o negativo e o positivo de suas noções, os aspectos destrutivos e construtivos de seu método, lado a lado, reunindo-os às vezes em uma única proposição. Ou seja, ao arremeter contra seja o que for, Montaigne está, em geral, tentando ao mesmo tempo mostrar qual a forma, a direção, o movimento, corretos.
Em primeiro lugar, as críticas de Montaigne são endereçadas mais a Aristóteles ele mesmo que as suas idéias: este é “o Deus da ciência escolástica”,[9] “monarca da ciência moderna”,[10] “príncipe dos dogmáticos”,[11] em suma, o campeão de uma orientação filosófica que, em meio aos acontecimentos tremendos pelos quais o mundo e o homem são então transformados, obstina-se em sua postura estática, doutrinária, rígida, tirânica, como se não fosse apenas uma das muitas explicações possíveis da realidade, mas a única verdadeira; e este tipo de postura intelectual constitui o grande adversário teórico do filósofo gascão.
O ensaísta não se volta contra o todo das idéias aristotélicas em si mesmas – repetidas vezes, aliás, nós o veremos apoiar-se expressamente nos testemunhos de Aristóteles sobre este ou aquele ponto da filosofia natural ou da moral –, porém contra a sua figura, avatar da verdade da escola, autoridade da qual esta tira a sua própria autoridade.[12] Com a linguagem pictórica característica do ensaio compõe-se um quadro da pessoa do filósofo grego com o fim de descobri-lo como autor, como existência humana, como homem com o qual Montaigne dialoga.[13] E já nisto podemos observar uma das qualidades essenciais do método montaigniano mais contrárias ao encaminhamento da lógica escolástica. Mas voltaremos a este ponto mais tarde; o que importa agora é reparar como, apesar da leitura ensaística da obra aristotélica ser, por assim dizer, casual,[14] o retrato de Aristóteles nos Ensaios é bastante consistente: a imagem pode ser recusada, e a opinião do pensador francês sobre o grego questionada, porém seria difícil declará-la sem sentido ou sem relação com seu modelo. Muito embora Montaigne manifeste um desinteresse quase que total pela filosofia “da escola” – bastaria lançar os olhos sobre o catálogo de seus livros (reconstruído por Pierre Villey) para confirmá-lo – o melhor aluno de Platão prende sua atenção: os dois, mais Sócrates e Plutarco, são, não por acaso, os filósofos mais citados nos Ensaios.[15] Ë claro que o espírito do pensar e do discurso ensaísticos, está mais próximo de Platão do que de Aristóteles: mas isto não significa que não possa discordar do primeiro ou concordar com o segundo – Montaigne é antes de tudo ele mesmo. E esta nota de originalidade sempre presente em tudo que este escreveu, mesmo quando se trata de uma simples citação,[16] foi com certeza um dos motivos pelos quais foi marginalizado como pensador (ainda que seu livro tenha alcançado bastante sucesso em sua época e depois): se o ensaísta não vê com entusiasmo os trabalhos da maioria dos filósofos de profissão de sua época, estes por sua vez também não comentam os Ensaios.[17] Seu estilo está tão afastado do discurso filosófico de seu tempo que, provavelmente, por muitos, como ainda continuará a acontecer depois, seus escritos sequer foram considerados filosofia. Não nos deixemos enganar, contudo, por este fato, a ponto de desconhecer ou menosprezar sua influência decisiva sobre alguns dos nomes mais importantes do pensamento moderno tais como Pascal, Descartes ou Bacon. A obra montaigniana, via que conduz da era medieval ao futuro, constitui um dos cadinhos onde se preparam os novos tempos.
Em sua época, entretanto, para ser reconhecido como filósofo é preciso, na maioria das vezes, exibir as bases lógicas de seu discurso em um tipo especial de coerência epistemológica programática que fundamenta uma metafísica específica e é por esta fundamentada. É precisamente isto que afastará o ensaísta de Aristóteles, e o voltará contra este, ao identificá-lo como a fonte modelar de onde emanam tais exigências. Não que o criador do ensaio não admita a necessidade de coesão argumentativa no pensar, nem que seu ceticismo o leve a considerar ocioso o problema do conhecimento ou o faça recusar como inútil todo questionamento e constructo metafísico – o problema é que o ponto de vista filosófico montaigniano é completamente diferente de tudo até então realizado, permanecendo ainda hoje singular (muito embora seu estilo tenha se tornado um gênero literário bastante difundido – o qual, diga-se de passagem, pouco tem a ver com sua criação original); para entendê-lo e fazer-lhe justiça temos de o ler com cuidado e atenção.
Para começar, o cético renascentista está interessado em investigar o que seja a verdade, e não apenas em transmitir a verdade que ele acreditaria já possuir: retomando as investidas do ceticismo antigo contra todo dogmatismo, ele as adapta à sua própria perspectiva. “Eu proponho fantasias incertas e irresolutas, como fazem os que publicam questões duvidosas para debate nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para a procurar” (Ensaios I, 56, 317a). Ao comparar aqui seu procedimento ao da quaestio medieval, Montaigne retira desta o fim: o ensaio constrói-se como uma discussão onde participam uma multiplicidade de vozes filosóficas em um concerto de pensamentos que nunca se detém em uma conclusão final, pois não é este seu objetivo, porém ganhar equilíbrio e harmonia na busca da verdade. Busca esta que é a vida mesma do homem: “o mundo não é senão uma escola de pesquisa” onde “nascemos para procurar a verdade”.[18] Como esclarece Villey, em nota (de sua edição dos Ensaios) referente à última citação, ao afirmar “nous sommes nais à quester la verité” o autor quer dizer, em última instância, que nossa natureza é definida pela averiguação da verdade. No entanto, definir a natureza humana como empreitada de perscrutação do verdadeiro é, de certa forma, tornar toda outra definição impossível: se o homem é este ser que não detém o conhecimento, mas deve passar a vida a buscá-lo, sua existência só adquirindo sentido e forma nesta procura, como poderia este descrever a si mesmo com certeza definitiva ? Daí que o ensaísta reencontre por via oblíqua, o significado da famosa declaração que abre a Metafísica de Aristóteles, na primeira frase do derradeiro capítulo dos Ensaios: “Il n’est desir plus naturel que le desir de connoissance. Nous essayons tous les moyens qui nous y peuvent mener”.[19] Notemos o uso de ‘ensaiar’ que aqui fornece uma ótima imagem do procedimento montaigniano: o ensaio não é apenas um método, se com isso nomeamos um modus operandi baseado em regras ou rotinas fixas, porém, antes, um estilo, na acepção que seu criador dava a esta palavra – não só um nome para uma forma literária ou um roteiro científico, mas uma maneira de agir, um modo de vida. Daí a metáfora antiga da caçada empregada amiúde nos Ensaios: como um caçador, aquele que persegue a mais valiosa e arisca de todas as presas – a sabedoria – deve ser capaz de adaptar-se as circunstâncias, reinventar a cada passo suas armas e armadilhas, preparar-se para o inesperado experimentando suas próprias habilidades, testando e aprimorando seus recursos incessantemente. A caça do conhecimento é, para a humanidade, a busca de si mesma. E daqui se depreende um dos sentidos mais puros e primordiais do conceito de Humanismo. Ao criar seu caminho para a verdade e o verdadeiro saber, o homem cria a si mesmo.
Como vemos, e veremos mais claramente no que se segue, a distância que há entre Aristóteles e Montaigne é principalmente resultado de uma diferença de método. Não obstante, é preciso repetir, não são as próprias idéias aristotélicas que o ensaísta preferencialmente ataca, mas a armadura escolástica com a qual estas foram revestidas: “Je ne recognois pas chez Aristote la plus part de mes mouvements ordinaires: on les a couverts et revestus d’une autre robbe pour l’usage de l’eschole” (Ensaios III, 5, 874b). No trecho no qual se insere esta passagem o que está em causa é precisamente uma questão metodológica: Montaigne preocupa-se aí em condenar o que considera como um artificialismo exagerado na construção e na expressão da ciência. O pensamento, bem como o texto montaignianos – de acordo com uma orientação que representa algo de inerente à ética grega – seguem a natureza: há uma continuidade entre a natureza, o ensaio e o moi de seu autor, ou sua natureza própria, que configura um dos objetivos essenciais de sua escrita. É a partir daqui que devemos tentar compreender a divergência do ensaísta com relação ao método escolástico.
Se retornarmos ao começo do último capítulo dos Ensaios, após a referida citação da primeira frase da Metafísica, veremos como Montaigne passa então a recomendar a experiência como meio de conhecimento. Longe, entretanto, está o conceito ensaístico de experiência daquilo que logo a Ciência Nova preconizará como base do conhecimento científico – ainda que, certamente, nisto como em muitas outras coisas, observemos o esforço renascentista de criação, o qual, mesmo se destinado a permanecer somente como tentativa, foi indispensável no trabalho de parto da modernidade.[20] A “experimentação” aqui corresponde à noção de uma vivência pessoal, de um ensaiar das disposições de nossa condição humana, que deve ajudar a aperfeiçoar nossa conduta: por isso os autores dos Ensaios e da Metafísica são vistos aí como homens, ou seja com toda a carga existencial que faz deles, tanto pessoas reais, como pensadores. A lógica ensaística, se é que me será permitido chamá-la assim, recusa o que considera como uma tendência escolástica à hipostasia e ao reducionismo lógicos. Enquanto a escola trata do particular como de um objeto lógico desprovido de temporalidade, de contingência, de realidade enfim, a experiência ensaística não exclui o tempo, o singular, o circunstancial, o impreciso. Por esta via Montaigne pretende experimentar o universal no singular, e abrir caminho para a compreensão e a expressão daquele através deste: “cada homem porta a forma inteira da humana condição”[21] – através de si mesmo e de cada ser humano, o ensaísta toca o Homem; fruindo sua natureza própria, encontra o reflexo da harmonia natural. No espelho dos Ensaios todo leitor pode encontrar o caminho para si mesmo, para sua humanidade – que é o que pode haver de mais divino para o homem: tal é a mensagem que fecha o último dos ensaios, aquele mesmo que começara citando Aristóteles. Não há pura presença ou raciocínio completamente independente do espírito humano – ciência pura –, pois o homem nada pode conceber independentemente de sua própria humanidade. Frente ao aristotelismo, filosofia do saber, da racionalidade e do conceito vem postar-se uma filosofia da consciência que negará os fundamentos mesmos da lógica tradicional: desde a lei de não-contradição até a perspectiva de certezas irrefutáveis.[22]
Ainda que tal exposição dos fundamentos da filosofia montaigniana permaneça um tanto enigmática, devido a necessidade de concentrar a explanação de questões bastante complexas, é fácil ver que, se o encaminhamento aristotélico-escolástico e o montaigniano diferem, isto é devido em grande parte à divergência entre seus objetivos. A pouco atrás referida “não-definição” do homem como ser que busca a verdade, está inserida em uma passagem que se ocupa particularmente de chamar a atenção para a relevância da maneira, da forma, do estilo, naquela busca. Tocamos aqui algo de sabidamente fundamental para toda filosofia humanista: a ênfase na forma em sua interação necessária com a matéria, o interesse na dimensão literária do saber filosófico, a interferência da questão estética no problema ético. A verdade não interessa somente em si e por si mesma: a razão humanista não é orientada apenas pelo grau de aproximação da verdade. O Ser, a verdade imanente ou transcendente, uma essência única ou uma natureza das coisas: nada disto constitui o objeto distintivo da investigação montaigniana. Nem, por outro lado, verdades relativas que possibilitassem uma acumulação progressiva dos resultados obtidos. Mais do que pensar o verdadeiro – já que nos falta, segundo o cético renascentista, um critério infalível de certeza –, trata-se de bem pensar: pois aquele que pensa bem, torna-se melhor.[23] Está em jogo, não simplesmente saber que a utilidade da verdade, caso fôssemos capazes de encontrá-la e reconhecê-la sem sombra de dúvida, ainda dependeria de nosso proceder, mas a percepção de que já o nosso procedimento cria uma certa forma de verdade segundo nosso olhar; e como, em contrapartida, esta por sua vez recriará, em uma espécie de movimento retroativo, nosso comportamento.
Impedir a filosofia universitária da época medieval ou do Renascimento, em sua maior parte, de metodicamente recalcar os problemas gerados pela assunção das dimensões concretas da existência, seria destruir seus princípios, por deixar de compreender seus fins. A filosofia ensaística, por sua parte, a exemplo de todo humanismo renascentista, é sobretudo um empreendimento educativo: tendo como finalidade principal o aprimoramento da personalidade de seu autor e de seus leitores, os Ensaios tratam de exprimir, como disse muito bem Jean Starobinsky,[24] não tanto o espaço explorado, quanto a energia do moi explorador. É precisamente aqui que se cruzam ética e estética, na tentativa, não de descrição do caráter perfeito ou de regulamentação do comportamento correto para o homem, mas de experimentação e materialização da medida ideal que define praticamente a boa conduta – e é nisto que Montaigne, tendo recusado a, digamos, metodologia aristotélico-escolástica, reencontra Aristóteles. Vejamos como.
Seria um erro, conquanto freqüente, imaginar que o pensamento montaigniano exima-se pura e simplesmente de possuir qualquer concepção metafísica conseqüente ou não tenha lógica (o que seria ainda, como é óbvio, uma contradição em termos). Uma forma determinada de pensar a metafísica, tanto como a atenção para com a lógica (estabelecendo um programa coerente de estruturação racional do discurso com vistas à pesquisa e à comunicação da verdade), fazem parte da elaboração filosófica ensaística, ou, dito de outro modo, são também objeto e projeto para esta; porém suas direções e regras não são diretamente enunciadas, permanecendo implícitas. Não cabe aqui, em função da exigüidade do espaço, expô-las pormenorizadamente em si mesmas, mas marcar o motivo principal pelo qual, para o ensaísta, devem manter-se necessariamente latentes através de alusões indiretas (explicação que, de todo modo, poderá servir de auxílio para os que se preocuparem em entendê-las): está em questão aqui, em resumo, a nossa capacidade de conhecer e de utilizar o conhecimento em nosso proveito. A razão humana, perigosa lâmina de dois gumes,[25] é, a um tempo, um fator de afastamento e de aproximação da verdade, do bem e da razão natural. Seu emprego acertado depende de uma medida conveniente sem a qual perdemos não só qualquer possibilidade de atingir um saber verdadeiro, mas até mesmo nossa saúde, por não termos, em uma palavra, um senso adequado de orientação na realidade. Talvez a idéia basilar do método ensaístico seja precisamente evitar a pretensão de já se saber o que não se pode saber de antemão: pois a presunção – “nossa doença natural e original” –[26] empareda-nos em nossos próprios preconceitos. É imperioso repor indefinidamente as questões essenciais; não temer as aporias, mas utilizá-las como vias para o conhecimento; forçar-se ao reexame das conclusões aparentemente definitivas; não sustar a busca da verdade, empresa que sustenta o sentido da existência de nosso ser imperfeito. Em um mundo, como o de então, onde tudo se move, no qual se modificam continuamente até as leis mesmas que deveriam expressar a regularidade de tal movimento, e cuja peculiar sensação de vertigem – evidente na grande maioria das obras literárias ou artísticas em geral do baixo Renascimento – é tão bem exemplificada pelos Ensaios, toda prescrição baseada em verdades fixas é vista com desconfiança. Neste mundo, toda relação possível com qualquer forma de universal precisa ser, é isto que nos diz o criador do ensaio, experimentada e posta a prova sem cessar com base em evidências sensíveis: é somente isto que garante que, a cada vez, possamos reencontrar o caminho até aquele, recriando-o a partir do singular. Não que a razão possa ser reduzida a um mero epifenômeno dos sentidos, mas seu vínculo essencial com estes através da faculdade da imaginação não deve ser descurado: o homem, ser “sensivelmente intelectual e intelectualmente sensível”,[27] não pode perder de vista a continuidade e a implicação entre os fenômenos do corpo e do espírito, aspirando a um critério ético ou epistemológico que pudesse ser estabelecido de maneira independente das questões fisiológicas e estéticas. O dado sensível, portanto, terá sempre um papel insubstituível em tudo que fizermos: por esta convicção a filosofia montaigniana participa do movimento renascentista de revalorização da sensibilidade. O teste dos sentidos – a prova da saúde, do bem-estar, da tranqüilidade – garante a correção de nossas idéias. E se tudo isto não pode ser identificado a Aristóteles, aproxima-se deste por uma crítica ao idealismo que é uma das marcas da época.[28] Mas o mais interessante é como a partir daqui Montaigne tomará a ética aristotélica como uma das menções históricas de uma visão concordante com a sua, ainda que para isso seja preciso torcê-la um pouco.[29]
Para um humanista todo saber deve responder a exigências éticas: a crítica moral é assim considerada geralmente o domínio filosófico central e primeiro, a partir do qual qualquer outro conhecimento é avaliado. É desde este interesse primordial que Aristóteles encontra sua inserção no Humanismo renascentista[30]. Em cada campo da ciência ou da técnica, na teoria ou na ação em geral, dependemos, para atingir satisfatoriamente nossos objetivos, do que pode ser chamado de medida, proporção, conveniência, adequação, harmonia, ritmo – diversos nomes para o mesmo critério do ideal ético-estético que, estabelecendo uma espécie de aspiração artística na filosofia moral, representa talvez a ligação mais nítida e importante entre a cultura antiga e a renascentista. É isto, antes de tudo, que Montaigne procura encontrar e retratar, aprender e ensinar. Ora, trata-se de algo que não pode ser conhecido de antemão: tentar defini-lo de uma vez por todas é perdê-lo (seria o caso precisamente de uma falta presunçosa de medida). Só em situação pode-se conhecer a maneira correta de agir: é imprescindível possuir um certo senso de oportunidade, compreender a necessidade de atuar de acordo com o tempo, que é uma das qualidades essenciais da sabedoria.[31] A boa ação depende de uma medida adequada às circunstâncias, de equilíbrio, prudência, moderação, que é entendida por Montaigne no sentido antigo de temperança, virtude cardinal que descobre entre os extremos o tempero ideal em determinada ocasião. Assim, à apatia estóica, o ensaísta opõe o moderar peripatético das paixões[32] que, impedindo-as de corromper a razão, aproveita sua força e sua possibilidade de verdade. Claro é, entretanto, que apesar do louvor constante prestado pelo ensaísta à noção do justo meio, a concepção montaigniana e a aristotélica do mesmo não podem ser identificadas sem mais: novamente a doutrina aristotélica refere-se a um parti pris lógico – a virtude é um meio termo entre os vícios contrários –, os Ensaios, porém, falam de um ponto de vista mais prático e circunstancial: o ariston métron[33] aí recomendado como linha geral de conduta possui, tanto o sentido de ‘justa medida’, como de ‘excelente mediocridade’ (sublinhando-se a coincidentia oppositorum na expressão), pois não só em determinado momento o extremo pode ser a medida ideal, mas também porque pode haver excesso mesmo na virtude. Logo, no saber lidar com o tempo, no comportar-se segundo o transcorrer das conjunturas e exigências, reside o fator determinante para que seja possível alcançar a harmonia entre o meu movimento e o ritmo do balouçar universal, entre minha natureza própria e a razão natural, incognoscível, mas sensível: e daí que Montaigne seja e deva ser esta nova figura, como ele mesmo se apresenta, de “um filósofo impremeditado e fortuito”,[34] já que o seu método, o ensaio, não deriva de uma escolha meramente arbitrária, porém decorre de certa visão ontológica: a singularidade da lógica ensaística é conseqüência principalmente do intento de acompanhar o incessante devir universal para registrar a consciência imprecisa que o homem tem do mundo e de si mesmo, capturando assim, em cada página dos Ensaios, a história multifacetada da formação contínua da personalidade humana como a resultante da mutável convergência de forças exteriores e interiores em sua remodelação recíproca no indivíduo.
Além da problemática central em torno da medida e da desmedida, são numerosos os temas da moral ensaística suscetíveis de serem apreciados em paralelo com as teses aristotélicas e que possivelmente sofreram a influência destas: a relação entre a virtude e o hábito, a interação entre vícios e virtudes, a importância da amizade, e diversos outros pontos de concordância, já assinalados pelos autores da bibliografia aqui citada. Se a lógica e a ontologia montaignianas podem ser consideradas antiaristotélicas, o mesmo não pode ser dito da filosofia moral, núcleo do pensamento humanista e dos Ensaios. E esta prevalência da dimensão ética, inerente ao empenho de elaboração de um saber filosófico com fins preferencialmente práticos por meio do chamado estudo das humanidades – tendência básica do pensamento renascentista desde Petrarca –, terá por extensão o cuidado e atenção especiais concedidos igualmente à política, à retórica e à estética aristotélicas nos séculos que ligam o fim da Idade Média à modernidade: os traços deste interesse encontram-se dispersos também através dos Ensaios.Como conclusão temos a certeza hodierna sobre a permanência do aristotelismo na Renascença: as idéias de Aristóteles continuam a ser então uma referência cultural crucial, mesmo para aqueles que aparentemente as recusaram em bloco – e Montaigne é um bom exemplo disto.
Notas ao fim do texto
O período de transição, como é comum qualificá-lo, entre a Idade Média e a Modernidade, época histórica denominada ‘Renascimento’ - o qual se estenderia, para marcar limites, certamente bastante imprecisos (e não apenas no sentido cronológico), entre Ockham e Descartes – sofreu, como momento filosófico, um eclipse que somente começará a ser superado pela historiografia posterior a 1850. Contudo, até cerca de 1930, um julgamento em geral superficial e negativo será determinante nas orientações de sua progressiva recuperação. As diversas razões para tanto – resultantes de preconceitos intelectuais, políticos, religiosos, etc, vindos do início do Classicismo, fortalecidos por volta do fim do Iluminismo, e sobrevivendo ainda hoje, mesmo se apenas isoladamente – não são a preocupação central destas linhas. Faz-se, porém, necessário assinalar de início tal fato, porque só assim poderemos entender o aspecto de novidade e a conseqüente urgência que tem para nós hoje o estudo das diversas correntes aristotélicas e antiaristotélicas na filosofia renascentista. E isto não deve ser perdido de vista com relação ao presente colóquio, especialmente se considerarmos o seu paradoxal pioneirismo no cenário filosófico brasileiro, reflexo do estado espiritual de uma nação que se prepara para comemorar os quinhentos anos do descobrimento de sua terra, desconhecendo as circunstâncias culturais que o marcaram, e as quais determinam ainda hoje seus caminhos e descaminhos.
O movimento de reavaliação da importância do estudo de Aristóteles no Renascimento data notadamente da segunda metade do nosso século, intensificando-se nos últimos trinta anos. Até aqui os principais resultados destas pesquisas são de um gênero que poderíamos chamar destrutivo, pois a função mais geral e profícua das explorações realizadas tem sido a de abalar e derrubar as noções anteriormente estabelecidas sobre a voga da filosofia aristotélica na Renascença. Assim como foi preciso recusar toda uma série de conceitos equivocados, avaliações descentradas, visões míopes, etc, não apenas com relação ao pensamento renascentista, mas acerca da cultura deste tempo em geral, também no domínio particular do estudo do aristotelismo foi imprescindível um trabalho de negação dos erros, na verdade simultâneo com os avanços da investigação, que, facultando o espaço livre para repor o problema em novas bases, reconstituiu um domínio de pesquisa que havia sido até então simplesmente anulado.
O juízo atual sobre a presença de Aristóteles no Renascimento pode ser resumido em dois pontos básicos interligados. Primeiro, a rejeição da concepção tradicional – ainda hoje corrente, ao menos em boa parte dos manuais ou obras gerais e de referência – a qual lia sempre na filosofia de então uma ascendência platônica, não apenas predominante, mas exclusiva. Conseqüência da popular confusão do humanismo com o todo do pensamento renascentista, aliada ao prematuro atestado de óbito que a ignorância precipitada de alguns teóricos conferiu a escolástica, a falsa impressão da preponderância absoluta de um certo platonismo difuso por todo o universo filosófico renascentista, revela fundamentalmente a falta, infelizmente ainda hoje bastante comum, de conhecimento acerca deste. Em segundo lugar, porém não menos importante, a revisão da ênfase exagerada no rompimento em todos os níveis com o mundo medieval que significou o advento de uma nova era a partir do fim do século XIV. Não que não tenham havido cortes, interrupções e inovações: talvez a Renascença tenha representado o mais violento alargamento de horizontes pelo qual já passou a humanidade. Contudo, e esta é uma lição a ser aplicada não só aqui, mas que, como sabemos, vale para a história como um todo, a percepção das descontinuidades, não deve impedir-nos de notar as permanências. Muitas vezes os grandes nomes dos mega-períodos com os quais pretendemos dividir o fluxo dos acontecimentos terminam por cegar-nos com sua amplitude descomunal, tornando indistinto o vicejar dos elementos culturais pelos quais justamente deveriam ser definidos. Se os Descobrimentos, a redescoberta da Antiguidade, a Reforma, a invenção da imprensa, as guerras, a peste, e muitos outros fatos por demais conhecidos para que nos alonguemos aqui sobre eles, transformaram o mundo nos séculos entre o medievo e os tempos modernos, não apagaram absolutamente um componente essencial de continuidade filosófica que religa estes àquele, e sem a compreensão do qual todo o correr da história da filosofia queda sem sentido. Ora, o aristotelismo, precisamente porque nele se mostra a constância e a concatenação da tradição em seu recriar revolucionário de si mesma, constitui um dos fatores mais relevantes e significativos desta continuidade. Alguns dados, colhidos como se ao acaso, podem comprovar e ilustrar tal afirmação.[1]
No século XVI foram produzidas mais traduções novas de numerosas obras e versões revisadas de antigas traduções que durante todos os séculos precedentes juntos, e, consequentemente, a produção de edições de Aristóteles atingiu um número sem precedentes. As obras concernentes a Aristóteles, entre a invenção da imprensa e 1600, variam entre três ou quatro mil títulos – os que se referem a Platão são menos de quinhentos. Por exemplo, o número de comentários latinos[2] de Aristóteles compostos entre 1500 e 1650 ultrapassa aquele de todo o milênio que vai de Boécio à Pomponazzi. E nada mais lógico, uma vez que o estagirita continua a ser então a fonte dos princípios que estruturam os manuais nos quais toda a Europa aprende a filosofia e as ciências: Galileu estuda-o com os jesuítas do Collegio Romano; Descartes faz o mesmo através dos textos de outros jesuítas em La Flèche e no curso de Coimbra; Newton anota Magirus, um aristotélico luteriano; Harvey, como Copérnico antes dele, recebe sua formação em Pádua, famoso centro de estudos do corpus aristotelicum – e se cada um deles em determinado momento de algum modo acaba por se afastar do mestre, as pesquisas recentes mostram que sua influência sobre todos eles foi mais forte do que um dia se acreditou.[3] Como conseqüência deste prestígio, a diversidade de gêneros literários que se consagrou então à difusão de Aristóteles talvez só encontre paralelo na gama de possibilidades suscitada pelas Escrituras.[4] Por toda sociedade européia, independente de credo, de classe social ou intelectual, aqueles que tinham alguma instrução liam Aristóteles.
É fácil, portanto, constatar: não só a doutrina peripatética não está morta, mas talvez esteja mesmo mais viva do que nunca. Todavia, isto não quer dizer que esta não seja contestada, atacada, negada: justamente na discussão aberta em seu redor temos a prova mais clara de sua vitalidade. As disputas pela herança intelectual aristotélica, acerca da leitura mais apropriada dos textos a esta relacionados, de sua tradução mais correta, de seu verdadeiro sentido e da adequação deste a uma ou outra visão de mundo, mostram que temos aí um dos referenciais essenciais para a ciência, a religião, a filosofia, a política, a arte, enfim para a quase totalidade dos domínios de atividade do espírito humano na época. Notemos que uma das características mais próprias deste período que chamamos Renascimento foi sua capacidade de dissolver os limites e barreiras entre os diversos setores da cultura que, então, interpenetram-se, interagem e se reorganizam. Nada de mais, pois, se as grandes adversárias e aparentemente inconciliáveis escolas ou formas de pensamento nas quais é costume dividir a filosofia renascentista – a escolástica e o humanismo – tenham também se influenciado mutuamente, e precisamente com relação ao estudo daquele que constituía uma das orientações capitais para ambas. Se isso foi mais verdade em um sentido do que no outro – pois enquanto o humanismo tem como centro de sua atenção os studia humanitatis,[5] deixando praticamente de lado a física ou a biologia aristotélicas e estudando quase exclusivamente a filosofia moral, à escolástica, a qual constitui a filosofia universitária propriamente dita, interessa de perto toda inovação no estudo da obra aristotélica, absorvendo por isso rapidamente as novas maneiras de apreciá-la –, não decorre daí que os humanistas tenham abandonado a filosofia aristotélica. Não podemos esquecer, por exemplo, do papel fundamental desempenhado pela tradução e o dilucidar precisamente de Aristóteles por Leonardo Bruni na produção da nova técnica de interpretação, baseada na análise filológica e histórica, que distingue o humanismo.
O verdadeiro objetivo das críticas humanistas é a escolástica e, por trás dela, as noções que caracterizavam a mentalidade medieval: a auctoritas, a fixidez das formas, o anacronismo, etc. É preciso perceber como freqüentemente mesmo entre os inimigos mais encarniçados das idéias aristotélicas no Renascimento persiste, em meio às reprovações e condenações, o projeto peripatético de filosofia. A atitude de Pierre de La Ramée o qual, após uma vida de querelas contra os aristotélicos, sairá em defesa de Aristóteles, é mais comum do que poderia parecer: há um propósito difuso no meio humanista de retornar ao verdadeiro Aristóteles (segundo a expressão do próprio Ramus).[6] Além disso, o peripatetismo sobrevive inesperadamente mesmo na obra daqueles que acreditaram estar recusando-o em bloco e de uma vez por todas: o clima intelectual de então encontrava-se tão penetrado de temas e enquadramentos aristotélicos que os que pretendiam afastar-se destes em muitos casos acabavam por, consciente ou inconscientemente, aí recair. É de certa forma também o caso de Michel de Montaigne de quem se quer avaliar aqui a relação com a obra aristotélica; avaliação esta a qual não será efetuada, no entanto, de uma maneira exaustiva – o que já foi feito, e bem, por outros,[7] e não poderia ser executado de maneira adequada no espaço restrito de uma comunicação –, mas apenas justamente sobre este ponto determinado da coexistência, em suas idéias, de desacordos e acordos com Aristóteles.[8]
Na leitura dos Ensaios temos uma excelente oportunidade para compreender a crítica humanista do aristotelismo. E o exame desta questão na filosofia montaigniana auxiliar-nos-á sobremaneira, logo veremos, a expor e explicar algumas de suas concepções mais importantes. Destarte, o presente texto fará parte da empresa contemporânea de recuperação de um dos capítulos cruciais da história da filosofia a partir do estudo de uma de suas produções mais representativas.
O autor dos Ensaios é evidentemente um adversário da escolástica. Mas, quando faz desta um dos alvos preferenciais de sua verve, ele visa antes de tudo uma certa maneira de filosofar, da qual aquela, inadvertidamente ou não, participa. Porque Aristóteles é então o pensador escolástico emblemático, ele será alvejado na obra montaigniana como um dos representantes principais da forma de pensamento que o ensaísta quer denunciar. Estes ataques devem ser avaliados com cuidado por quem pretenda compreender as idéias do cético renascentista, não só porque são realizados contra um dos referenciais maiores da cultura antiga, medieval e renascentista, mas pelo caráter particular do procedimento ensaístico que desenvolve simultaneamente a crítica e a criação, colocando o negativo e o positivo de suas noções, os aspectos destrutivos e construtivos de seu método, lado a lado, reunindo-os às vezes em uma única proposição. Ou seja, ao arremeter contra seja o que for, Montaigne está, em geral, tentando ao mesmo tempo mostrar qual a forma, a direção, o movimento, corretos.
Em primeiro lugar, as críticas de Montaigne são endereçadas mais a Aristóteles ele mesmo que as suas idéias: este é “o Deus da ciência escolástica”,[9] “monarca da ciência moderna”,[10] “príncipe dos dogmáticos”,[11] em suma, o campeão de uma orientação filosófica que, em meio aos acontecimentos tremendos pelos quais o mundo e o homem são então transformados, obstina-se em sua postura estática, doutrinária, rígida, tirânica, como se não fosse apenas uma das muitas explicações possíveis da realidade, mas a única verdadeira; e este tipo de postura intelectual constitui o grande adversário teórico do filósofo gascão.
O ensaísta não se volta contra o todo das idéias aristotélicas em si mesmas – repetidas vezes, aliás, nós o veremos apoiar-se expressamente nos testemunhos de Aristóteles sobre este ou aquele ponto da filosofia natural ou da moral –, porém contra a sua figura, avatar da verdade da escola, autoridade da qual esta tira a sua própria autoridade.[12] Com a linguagem pictórica característica do ensaio compõe-se um quadro da pessoa do filósofo grego com o fim de descobri-lo como autor, como existência humana, como homem com o qual Montaigne dialoga.[13] E já nisto podemos observar uma das qualidades essenciais do método montaigniano mais contrárias ao encaminhamento da lógica escolástica. Mas voltaremos a este ponto mais tarde; o que importa agora é reparar como, apesar da leitura ensaística da obra aristotélica ser, por assim dizer, casual,[14] o retrato de Aristóteles nos Ensaios é bastante consistente: a imagem pode ser recusada, e a opinião do pensador francês sobre o grego questionada, porém seria difícil declará-la sem sentido ou sem relação com seu modelo. Muito embora Montaigne manifeste um desinteresse quase que total pela filosofia “da escola” – bastaria lançar os olhos sobre o catálogo de seus livros (reconstruído por Pierre Villey) para confirmá-lo – o melhor aluno de Platão prende sua atenção: os dois, mais Sócrates e Plutarco, são, não por acaso, os filósofos mais citados nos Ensaios.[15] Ë claro que o espírito do pensar e do discurso ensaísticos, está mais próximo de Platão do que de Aristóteles: mas isto não significa que não possa discordar do primeiro ou concordar com o segundo – Montaigne é antes de tudo ele mesmo. E esta nota de originalidade sempre presente em tudo que este escreveu, mesmo quando se trata de uma simples citação,[16] foi com certeza um dos motivos pelos quais foi marginalizado como pensador (ainda que seu livro tenha alcançado bastante sucesso em sua época e depois): se o ensaísta não vê com entusiasmo os trabalhos da maioria dos filósofos de profissão de sua época, estes por sua vez também não comentam os Ensaios.[17] Seu estilo está tão afastado do discurso filosófico de seu tempo que, provavelmente, por muitos, como ainda continuará a acontecer depois, seus escritos sequer foram considerados filosofia. Não nos deixemos enganar, contudo, por este fato, a ponto de desconhecer ou menosprezar sua influência decisiva sobre alguns dos nomes mais importantes do pensamento moderno tais como Pascal, Descartes ou Bacon. A obra montaigniana, via que conduz da era medieval ao futuro, constitui um dos cadinhos onde se preparam os novos tempos.
Em sua época, entretanto, para ser reconhecido como filósofo é preciso, na maioria das vezes, exibir as bases lógicas de seu discurso em um tipo especial de coerência epistemológica programática que fundamenta uma metafísica específica e é por esta fundamentada. É precisamente isto que afastará o ensaísta de Aristóteles, e o voltará contra este, ao identificá-lo como a fonte modelar de onde emanam tais exigências. Não que o criador do ensaio não admita a necessidade de coesão argumentativa no pensar, nem que seu ceticismo o leve a considerar ocioso o problema do conhecimento ou o faça recusar como inútil todo questionamento e constructo metafísico – o problema é que o ponto de vista filosófico montaigniano é completamente diferente de tudo até então realizado, permanecendo ainda hoje singular (muito embora seu estilo tenha se tornado um gênero literário bastante difundido – o qual, diga-se de passagem, pouco tem a ver com sua criação original); para entendê-lo e fazer-lhe justiça temos de o ler com cuidado e atenção.
Para começar, o cético renascentista está interessado em investigar o que seja a verdade, e não apenas em transmitir a verdade que ele acreditaria já possuir: retomando as investidas do ceticismo antigo contra todo dogmatismo, ele as adapta à sua própria perspectiva. “Eu proponho fantasias incertas e irresolutas, como fazem os que publicam questões duvidosas para debate nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para a procurar” (Ensaios I, 56, 317a). Ao comparar aqui seu procedimento ao da quaestio medieval, Montaigne retira desta o fim: o ensaio constrói-se como uma discussão onde participam uma multiplicidade de vozes filosóficas em um concerto de pensamentos que nunca se detém em uma conclusão final, pois não é este seu objetivo, porém ganhar equilíbrio e harmonia na busca da verdade. Busca esta que é a vida mesma do homem: “o mundo não é senão uma escola de pesquisa” onde “nascemos para procurar a verdade”.[18] Como esclarece Villey, em nota (de sua edição dos Ensaios) referente à última citação, ao afirmar “nous sommes nais à quester la verité” o autor quer dizer, em última instância, que nossa natureza é definida pela averiguação da verdade. No entanto, definir a natureza humana como empreitada de perscrutação do verdadeiro é, de certa forma, tornar toda outra definição impossível: se o homem é este ser que não detém o conhecimento, mas deve passar a vida a buscá-lo, sua existência só adquirindo sentido e forma nesta procura, como poderia este descrever a si mesmo com certeza definitiva ? Daí que o ensaísta reencontre por via oblíqua, o significado da famosa declaração que abre a Metafísica de Aristóteles, na primeira frase do derradeiro capítulo dos Ensaios: “Il n’est desir plus naturel que le desir de connoissance. Nous essayons tous les moyens qui nous y peuvent mener”.[19] Notemos o uso de ‘ensaiar’ que aqui fornece uma ótima imagem do procedimento montaigniano: o ensaio não é apenas um método, se com isso nomeamos um modus operandi baseado em regras ou rotinas fixas, porém, antes, um estilo, na acepção que seu criador dava a esta palavra – não só um nome para uma forma literária ou um roteiro científico, mas uma maneira de agir, um modo de vida. Daí a metáfora antiga da caçada empregada amiúde nos Ensaios: como um caçador, aquele que persegue a mais valiosa e arisca de todas as presas – a sabedoria – deve ser capaz de adaptar-se as circunstâncias, reinventar a cada passo suas armas e armadilhas, preparar-se para o inesperado experimentando suas próprias habilidades, testando e aprimorando seus recursos incessantemente. A caça do conhecimento é, para a humanidade, a busca de si mesma. E daqui se depreende um dos sentidos mais puros e primordiais do conceito de Humanismo. Ao criar seu caminho para a verdade e o verdadeiro saber, o homem cria a si mesmo.
Como vemos, e veremos mais claramente no que se segue, a distância que há entre Aristóteles e Montaigne é principalmente resultado de uma diferença de método. Não obstante, é preciso repetir, não são as próprias idéias aristotélicas que o ensaísta preferencialmente ataca, mas a armadura escolástica com a qual estas foram revestidas: “Je ne recognois pas chez Aristote la plus part de mes mouvements ordinaires: on les a couverts et revestus d’une autre robbe pour l’usage de l’eschole” (Ensaios III, 5, 874b). No trecho no qual se insere esta passagem o que está em causa é precisamente uma questão metodológica: Montaigne preocupa-se aí em condenar o que considera como um artificialismo exagerado na construção e na expressão da ciência. O pensamento, bem como o texto montaignianos – de acordo com uma orientação que representa algo de inerente à ética grega – seguem a natureza: há uma continuidade entre a natureza, o ensaio e o moi de seu autor, ou sua natureza própria, que configura um dos objetivos essenciais de sua escrita. É a partir daqui que devemos tentar compreender a divergência do ensaísta com relação ao método escolástico.
Se retornarmos ao começo do último capítulo dos Ensaios, após a referida citação da primeira frase da Metafísica, veremos como Montaigne passa então a recomendar a experiência como meio de conhecimento. Longe, entretanto, está o conceito ensaístico de experiência daquilo que logo a Ciência Nova preconizará como base do conhecimento científico – ainda que, certamente, nisto como em muitas outras coisas, observemos o esforço renascentista de criação, o qual, mesmo se destinado a permanecer somente como tentativa, foi indispensável no trabalho de parto da modernidade.[20] A “experimentação” aqui corresponde à noção de uma vivência pessoal, de um ensaiar das disposições de nossa condição humana, que deve ajudar a aperfeiçoar nossa conduta: por isso os autores dos Ensaios e da Metafísica são vistos aí como homens, ou seja com toda a carga existencial que faz deles, tanto pessoas reais, como pensadores. A lógica ensaística, se é que me será permitido chamá-la assim, recusa o que considera como uma tendência escolástica à hipostasia e ao reducionismo lógicos. Enquanto a escola trata do particular como de um objeto lógico desprovido de temporalidade, de contingência, de realidade enfim, a experiência ensaística não exclui o tempo, o singular, o circunstancial, o impreciso. Por esta via Montaigne pretende experimentar o universal no singular, e abrir caminho para a compreensão e a expressão daquele através deste: “cada homem porta a forma inteira da humana condição”[21] – através de si mesmo e de cada ser humano, o ensaísta toca o Homem; fruindo sua natureza própria, encontra o reflexo da harmonia natural. No espelho dos Ensaios todo leitor pode encontrar o caminho para si mesmo, para sua humanidade – que é o que pode haver de mais divino para o homem: tal é a mensagem que fecha o último dos ensaios, aquele mesmo que começara citando Aristóteles. Não há pura presença ou raciocínio completamente independente do espírito humano – ciência pura –, pois o homem nada pode conceber independentemente de sua própria humanidade. Frente ao aristotelismo, filosofia do saber, da racionalidade e do conceito vem postar-se uma filosofia da consciência que negará os fundamentos mesmos da lógica tradicional: desde a lei de não-contradição até a perspectiva de certezas irrefutáveis.[22]
Ainda que tal exposição dos fundamentos da filosofia montaigniana permaneça um tanto enigmática, devido a necessidade de concentrar a explanação de questões bastante complexas, é fácil ver que, se o encaminhamento aristotélico-escolástico e o montaigniano diferem, isto é devido em grande parte à divergência entre seus objetivos. A pouco atrás referida “não-definição” do homem como ser que busca a verdade, está inserida em uma passagem que se ocupa particularmente de chamar a atenção para a relevância da maneira, da forma, do estilo, naquela busca. Tocamos aqui algo de sabidamente fundamental para toda filosofia humanista: a ênfase na forma em sua interação necessária com a matéria, o interesse na dimensão literária do saber filosófico, a interferência da questão estética no problema ético. A verdade não interessa somente em si e por si mesma: a razão humanista não é orientada apenas pelo grau de aproximação da verdade. O Ser, a verdade imanente ou transcendente, uma essência única ou uma natureza das coisas: nada disto constitui o objeto distintivo da investigação montaigniana. Nem, por outro lado, verdades relativas que possibilitassem uma acumulação progressiva dos resultados obtidos. Mais do que pensar o verdadeiro – já que nos falta, segundo o cético renascentista, um critério infalível de certeza –, trata-se de bem pensar: pois aquele que pensa bem, torna-se melhor.[23] Está em jogo, não simplesmente saber que a utilidade da verdade, caso fôssemos capazes de encontrá-la e reconhecê-la sem sombra de dúvida, ainda dependeria de nosso proceder, mas a percepção de que já o nosso procedimento cria uma certa forma de verdade segundo nosso olhar; e como, em contrapartida, esta por sua vez recriará, em uma espécie de movimento retroativo, nosso comportamento.
Impedir a filosofia universitária da época medieval ou do Renascimento, em sua maior parte, de metodicamente recalcar os problemas gerados pela assunção das dimensões concretas da existência, seria destruir seus princípios, por deixar de compreender seus fins. A filosofia ensaística, por sua parte, a exemplo de todo humanismo renascentista, é sobretudo um empreendimento educativo: tendo como finalidade principal o aprimoramento da personalidade de seu autor e de seus leitores, os Ensaios tratam de exprimir, como disse muito bem Jean Starobinsky,[24] não tanto o espaço explorado, quanto a energia do moi explorador. É precisamente aqui que se cruzam ética e estética, na tentativa, não de descrição do caráter perfeito ou de regulamentação do comportamento correto para o homem, mas de experimentação e materialização da medida ideal que define praticamente a boa conduta – e é nisto que Montaigne, tendo recusado a, digamos, metodologia aristotélico-escolástica, reencontra Aristóteles. Vejamos como.
Seria um erro, conquanto freqüente, imaginar que o pensamento montaigniano exima-se pura e simplesmente de possuir qualquer concepção metafísica conseqüente ou não tenha lógica (o que seria ainda, como é óbvio, uma contradição em termos). Uma forma determinada de pensar a metafísica, tanto como a atenção para com a lógica (estabelecendo um programa coerente de estruturação racional do discurso com vistas à pesquisa e à comunicação da verdade), fazem parte da elaboração filosófica ensaística, ou, dito de outro modo, são também objeto e projeto para esta; porém suas direções e regras não são diretamente enunciadas, permanecendo implícitas. Não cabe aqui, em função da exigüidade do espaço, expô-las pormenorizadamente em si mesmas, mas marcar o motivo principal pelo qual, para o ensaísta, devem manter-se necessariamente latentes através de alusões indiretas (explicação que, de todo modo, poderá servir de auxílio para os que se preocuparem em entendê-las): está em questão aqui, em resumo, a nossa capacidade de conhecer e de utilizar o conhecimento em nosso proveito. A razão humana, perigosa lâmina de dois gumes,[25] é, a um tempo, um fator de afastamento e de aproximação da verdade, do bem e da razão natural. Seu emprego acertado depende de uma medida conveniente sem a qual perdemos não só qualquer possibilidade de atingir um saber verdadeiro, mas até mesmo nossa saúde, por não termos, em uma palavra, um senso adequado de orientação na realidade. Talvez a idéia basilar do método ensaístico seja precisamente evitar a pretensão de já se saber o que não se pode saber de antemão: pois a presunção – “nossa doença natural e original” –[26] empareda-nos em nossos próprios preconceitos. É imperioso repor indefinidamente as questões essenciais; não temer as aporias, mas utilizá-las como vias para o conhecimento; forçar-se ao reexame das conclusões aparentemente definitivas; não sustar a busca da verdade, empresa que sustenta o sentido da existência de nosso ser imperfeito. Em um mundo, como o de então, onde tudo se move, no qual se modificam continuamente até as leis mesmas que deveriam expressar a regularidade de tal movimento, e cuja peculiar sensação de vertigem – evidente na grande maioria das obras literárias ou artísticas em geral do baixo Renascimento – é tão bem exemplificada pelos Ensaios, toda prescrição baseada em verdades fixas é vista com desconfiança. Neste mundo, toda relação possível com qualquer forma de universal precisa ser, é isto que nos diz o criador do ensaio, experimentada e posta a prova sem cessar com base em evidências sensíveis: é somente isto que garante que, a cada vez, possamos reencontrar o caminho até aquele, recriando-o a partir do singular. Não que a razão possa ser reduzida a um mero epifenômeno dos sentidos, mas seu vínculo essencial com estes através da faculdade da imaginação não deve ser descurado: o homem, ser “sensivelmente intelectual e intelectualmente sensível”,[27] não pode perder de vista a continuidade e a implicação entre os fenômenos do corpo e do espírito, aspirando a um critério ético ou epistemológico que pudesse ser estabelecido de maneira independente das questões fisiológicas e estéticas. O dado sensível, portanto, terá sempre um papel insubstituível em tudo que fizermos: por esta convicção a filosofia montaigniana participa do movimento renascentista de revalorização da sensibilidade. O teste dos sentidos – a prova da saúde, do bem-estar, da tranqüilidade – garante a correção de nossas idéias. E se tudo isto não pode ser identificado a Aristóteles, aproxima-se deste por uma crítica ao idealismo que é uma das marcas da época.[28] Mas o mais interessante é como a partir daqui Montaigne tomará a ética aristotélica como uma das menções históricas de uma visão concordante com a sua, ainda que para isso seja preciso torcê-la um pouco.[29]
Para um humanista todo saber deve responder a exigências éticas: a crítica moral é assim considerada geralmente o domínio filosófico central e primeiro, a partir do qual qualquer outro conhecimento é avaliado. É desde este interesse primordial que Aristóteles encontra sua inserção no Humanismo renascentista[30]. Em cada campo da ciência ou da técnica, na teoria ou na ação em geral, dependemos, para atingir satisfatoriamente nossos objetivos, do que pode ser chamado de medida, proporção, conveniência, adequação, harmonia, ritmo – diversos nomes para o mesmo critério do ideal ético-estético que, estabelecendo uma espécie de aspiração artística na filosofia moral, representa talvez a ligação mais nítida e importante entre a cultura antiga e a renascentista. É isto, antes de tudo, que Montaigne procura encontrar e retratar, aprender e ensinar. Ora, trata-se de algo que não pode ser conhecido de antemão: tentar defini-lo de uma vez por todas é perdê-lo (seria o caso precisamente de uma falta presunçosa de medida). Só em situação pode-se conhecer a maneira correta de agir: é imprescindível possuir um certo senso de oportunidade, compreender a necessidade de atuar de acordo com o tempo, que é uma das qualidades essenciais da sabedoria.[31] A boa ação depende de uma medida adequada às circunstâncias, de equilíbrio, prudência, moderação, que é entendida por Montaigne no sentido antigo de temperança, virtude cardinal que descobre entre os extremos o tempero ideal em determinada ocasião. Assim, à apatia estóica, o ensaísta opõe o moderar peripatético das paixões[32] que, impedindo-as de corromper a razão, aproveita sua força e sua possibilidade de verdade. Claro é, entretanto, que apesar do louvor constante prestado pelo ensaísta à noção do justo meio, a concepção montaigniana e a aristotélica do mesmo não podem ser identificadas sem mais: novamente a doutrina aristotélica refere-se a um parti pris lógico – a virtude é um meio termo entre os vícios contrários –, os Ensaios, porém, falam de um ponto de vista mais prático e circunstancial: o ariston métron[33] aí recomendado como linha geral de conduta possui, tanto o sentido de ‘justa medida’, como de ‘excelente mediocridade’ (sublinhando-se a coincidentia oppositorum na expressão), pois não só em determinado momento o extremo pode ser a medida ideal, mas também porque pode haver excesso mesmo na virtude. Logo, no saber lidar com o tempo, no comportar-se segundo o transcorrer das conjunturas e exigências, reside o fator determinante para que seja possível alcançar a harmonia entre o meu movimento e o ritmo do balouçar universal, entre minha natureza própria e a razão natural, incognoscível, mas sensível: e daí que Montaigne seja e deva ser esta nova figura, como ele mesmo se apresenta, de “um filósofo impremeditado e fortuito”,[34] já que o seu método, o ensaio, não deriva de uma escolha meramente arbitrária, porém decorre de certa visão ontológica: a singularidade da lógica ensaística é conseqüência principalmente do intento de acompanhar o incessante devir universal para registrar a consciência imprecisa que o homem tem do mundo e de si mesmo, capturando assim, em cada página dos Ensaios, a história multifacetada da formação contínua da personalidade humana como a resultante da mutável convergência de forças exteriores e interiores em sua remodelação recíproca no indivíduo.
Além da problemática central em torno da medida e da desmedida, são numerosos os temas da moral ensaística suscetíveis de serem apreciados em paralelo com as teses aristotélicas e que possivelmente sofreram a influência destas: a relação entre a virtude e o hábito, a interação entre vícios e virtudes, a importância da amizade, e diversos outros pontos de concordância, já assinalados pelos autores da bibliografia aqui citada. Se a lógica e a ontologia montaignianas podem ser consideradas antiaristotélicas, o mesmo não pode ser dito da filosofia moral, núcleo do pensamento humanista e dos Ensaios. E esta prevalência da dimensão ética, inerente ao empenho de elaboração de um saber filosófico com fins preferencialmente práticos por meio do chamado estudo das humanidades – tendência básica do pensamento renascentista desde Petrarca –, terá por extensão o cuidado e atenção especiais concedidos igualmente à política, à retórica e à estética aristotélicas nos séculos que ligam o fim da Idade Média à modernidade: os traços deste interesse encontram-se dispersos também através dos Ensaios.Como conclusão temos a certeza hodierna sobre a permanência do aristotelismo na Renascença: as idéias de Aristóteles continuam a ser então uma referência cultural crucial, mesmo para aqueles que aparentemente as recusaram em bloco – e Montaigne é um bom exemplo disto.
Notas
[1] Com referência as informações gerais aqui prestadas consulte-se em primeiro lugar o livro absolutamente imprescindível sobre o tema de Charles B. Schmitt – Aristotle and the Renaissance. Cambridge, Massachussets e Londres, Harvard U.P., 1983 – além, é claro, do trabalho de seu mestre, o grande renovador dos estudos renascentistas, Paul O. Kristeller (cf. The Classics and Renaissance Thought. Cambridge, Massachusetts, Harvard U.P., 1955). Deve-se ainda ter em conta as seguintes obras de referência: F. E Cranz, A bibliography of Aristotle Editions, 1501-1600. Baden-Baden, V. Koerner, 1971 (2a ed., revista e aumentada por C. B. Schmitt, 1984); P. O. Kristeller, e F. E. Cranz (Eds.). Catalogus translationum et commetariorum: Medieval and Renaissance latin translations and commentaries (annotated lists and guides). Washington, Catholic University of America Press, 1969-1992; C. H. Lohr, Latin Aristotle Commentaries. Florença L. S. Olschki, 1988-1995; C. B. Schmitt, A critical Survey and Bibliography of Studies on Renaissance Aristotelianism, 1958-1969. Pádua, Antenore, 1971.
[2] O latim, não se deve deixar de marcar, continuará sendo a língua da formação científica e filosófica, da comunicação erudita e do ensino universitário durante todo o Renascimento em toda a Europa (e bem mais tarde em muitos lugares) e nas regiões do Novo Mundo sob sua dependência.
[3] Erro semelhante, mas extremamente comum, é o de se aceitar sem restrições as críticas – cada vez mais fortes a partir da segunda metade do século XVII – ao saber renascentista, ao humanismo ou à filosofia imediatamente anterior, como indícios e testemunhos absolutamente confiáveis acerca da independência intelectual moderna das formulações filosóficas ou científicas do Renascimento. Seria como pensar que, porque Pascal critica Montaigne, e Descartes, a sua própria formação humanista, um e outro nada devessem ao humanismo ou ao autor dos Ensaios.
[4] E não se objete que a invenção da imprensa seja a causa direta e única de toda a intensa atividade editorial renascentista em torno do corpus aristotelicum: a edição é agora um negócio como qualquer outro e precisa ser lucrativa – foi necessário o interesse de um largo público para movê-la e sustentá-la
[5] O termo ‘humanista’ foi cunhado em fins do século XV para designar um professor e um estudante das ‘humanidades’, ou studia humanitatis, as quais incluíam grammatica, rhetorica, poetica, historia e philosophia moralis na forma em que estes designativos eram então entendidos. Cf. P. O. Kristeller, Humanism. In C. B Schmitt, (Ed.). The Cambridge History of Renaissance Philosophy. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, p. 113.
[6] Este intento humanista de purificação, de desembaraçar as traduções dos textos dos gregos dos barbarismos medievais, ou de retornar às idéias originais nestes expressas – cuja interpretação “gótica”, ou segundo pressupostos e princípios estranhos àqueles, teria deformado – não se aplica apenas a Aristóteles.
[7] Temos sobre o tema diversos textos da crítica especializada – cf., por exemplo: P. Desan, “Ce tintamarre de tant de cervelles philosophiques: Montaigne et Aristote”. In Montaigne et la Grèce. Actes du Colloque de Calamate et de Messène (set. 1988), Paris, Ed. Aux amateurs de livres, 1990; K. Christodoulou, “La critique d’Aristote dans les Essais de Montaigne”. Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, 5a série, n. 27-28, jul.-dez.1978; A. Menut, “Montaigne and the Nichomachean Ethics”. Modern Philology, t. XXXI, fev.1934 – e até um livro bastante competente: E. Traverso, Montaigne e Aristotele, Florença, Le Monnier, 1974. Deve-se chamar a atenção também para o belo opúsculo Montaigne Philosophe (Paris, PUF, 1996) de Ian MacLean (aluno de Charles B. Schmitt) que, se não versa exclusivamente sobre a relação filosófica entre Montaigne e Aristóteles, faz desta um de seus eixos principais.
[8] O que não é absolutamente, repito, uma exclusividade montaigniana: os Ensaios constituem apenas um dos numerosos casos individuais de combinação de aristotelismo e antiaristotelismo no Renascimento. Cf. L. Giard, L’aristotélisme padouan: histoire et historiographie. Les Études Philosophiques, n. 3 (L’aristotélisme au XVIe siècle), jul.-set.1986, pg. 304.
[9] Ensaios II, 12, 539a. A edição dos Ensaios aqui utilizada como referência na citações é a de Pierre Villey: Paris, PUF, 1988.
[10] Ibid. I, 26, 146ca.
[11] Ibid. II, 12, 507a.
[12] “On n’y debat rien pour le mettre en doute, mais pour defendre l’auteur de l’eschole des objections estrangeres: son authorité, c’est le but au delà duquel il n’est pas permis de s’enquerir” (ibid. II, 12, 540).
[13] Cf. Desan, op. cit., pg. 65; Maclean, op. cit., p. 22.
[14] A maior parte das referências a Aristóteles nos Ensaios são muito provavelmente de segunda mão. Seu autor mesmo afirma, precisamente em seu ensaio mais importante sobre a educação e o ensino da filosofia, não ter jamais “roído as unhas no estudo de Aristóteles” (Ibid. 146a).
[15] Na ordem: Platão (197 referências), Sócrates (113), Plutarco (89), Aristóteles (83). Cf. Roy E. Leake, Concordance des Essais de Montaigne. Genève, Droz, 1981, p. 1365 e seq. (Appendice I – Frequence des mots des Essais de Montaigne).
[16] Graças ao seu senso de oportunidade e à sua capacidade de utilizar de uma nova maneira até os mais conhecidos lugares-comuns, descobrindo novos sentidos e ângulos de leitura: muitos já escreveram sobre este dom montaigniano.
[17] O “Seigneur de Montaigne” não foi um filósofo profissional – se com isso nomeia-se aquele que vive da filosofia ou passa a sua vida a ensiná-la – mas, em primeiro lugar, um senhor de terras (das quais lhe vem seu título de nobreza) orgulhoso de sua condição. Os humanistas, como se sabe, não estiveram, em geral, ligados à universidade de sua época. E o conflito entre estes e a filosofia universitária escolástica deve ter sido mais intenso na França do que em outros países se consideramos que esta conheceu, a par do ressurgimento da lógica medieval (influenciando fortemente a universidade ibérica, na qual esta terá uma sobrevida ainda maior) já dentro do século XVI – a célebre seconda scolastica –, também um grande sucesso, provavelmente o maior no mundo renascentista, de Platão. É claro que estes acontecimentos indicam, respectivamente, o vigor, tanto da tradição filosófica de inspiração marcadamente medieval, como do movimento humanista, e consequentemente anunciam disputas possivelmente acirradas – e é isto que se quer assinalar aqui. Mas evitemos, é sempre bom marcar, transformar generalizações úteis em definições fechadas: existe no Renascimento um platonismo universitário ainda que incipiente, e o estudo de Aristóteles não foi então um fenômeno unicamente institucional. Cf., além da bibliografia já citada, E. J. Ashworth, “The eclipse of medieval logic”. In Kretzmann, Kenny e Pinborg (Eds.). The Cambidge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge, Cambridge U.P., 1997; C. B. Schmitt, “L’introduction de la philosophie platonicienne dans l’enseignement des Universités à la Renaissance”. In Platon et Aristote à la Renaissance - XVIe Colloque International de Tours. Paris, Vrin, 1976.
[18] Ensaios III, 8, 928bc.
[19] Ibid III, 13, 1065b. Cf. Aristóteles, Metaphysica. Oxonii, W. Jaeger, 1986, p. 1, (980a).
[20] Segundo Gustave Lanson, por exemplo, Montaigne percebeu as dificuldades e a necessidade de um método experimental: “Do ponto até o qual ele conduziu a questão, não havia mais que um passo a dar para organizar este método” (Les Essais de Montaigne. Paris, Mellottée, 1958, pg. 280-281)
[21] Ensaios III, 2, 805b. É sempre recomendável, para aqueles que querem tomar contato com a filosofia dos Ensaios e entender o seu procedimento tão característico, a leitura do famoso trecho ao qual pertence esta citação; que foi, aliás, objeto da também célebre análise de Erich Auerbach, a qual não se pode senão recomendar (cf. Mimesis. Berna, A.Francke AG, 1946, cap. 12 – trad. brasileira: São Paulo, Perspectiva, 1987), e onde este afirma, entre outras coisas importantes, constituir o ensaio montaigniano um método rigoroso, passível de ser considerado científico até no sentido moderno do termo.
[22] Cf. Maclean, op. cit., pgs. 101, 107 e 122. Sobre a lógica humanista em geral deve ser consultado o excelente artigo de L. Jardine (“Humanistic Logic”. In C. B. Schmitt, e Q. Skinner, (Eds.). The Cambridge History of Renaissance Philosophy. Cambridge, Cambridge U.P., 1992), no qual se conclui inclusive que, longe de representar o tão propalado fim da ciência da lógica, o humanismo proporcionou, através de sua influência, uma antecipação das reavaliações modernas da lógica aristotélica.
[23] Referindo-se a isto Marcel Conche (Montaigne et la Philosophie. Paris, Éd. de Mégare, 1987, p. 34) diz: “Uma modificação de si opera-se pela qualidade do pensamento”. E Michaël Baraz assinala, em um texto excepcional (L’être et la conaissance selon Montaigne. Toulouse, J. Corti, 1968, pp. 173-173), a maneira pela qual a tendência, cada vez mais forte depois de Aristóteles, de eliminar o elemento pessoal em proveito da exposição exclusivamente objetiva na literatura de idéias, a exemplo da escolástica e dos modernos (sobretudo depois de Kant), ao contrário da maior parte dos grandes pensadores antigos, está ligada ao fato de que para estes o fim do pensamento era, não apenas o conhecimento puro, mas a modificação da existência, empreendimento que liga o elemento objetivo ao subjetivo, como faz o ensaio.
[24] J. Starobinsky, Montaigne en Mouvement. Paris, Gallimard, 1982, p. 272. Cf. I. Maclean, op. cit., p. 80.
[25] Ensaios II, 17, 654c. Que a razão, se mal empregada, possa tornar-se nociva ao homem, é uma causa secundária para que o ensaísta expresse certas convicções suas apenas veladamente: considerando seu pensamento por demais ousado, o ensaísta teme sua divulgação entre aqueles sem o devido preparo. Ademais, este tipo de atitude reservada na filosofia é freqüente no Renascimento. Os traços enigmáticos das novas idéias renascentistas sobre o homem e o cosmos são decorrência, afora da pesquisa de diferentes possibilidades de explicação e expressão, da necessidade de defesa em tempos beligerantes e fanáticos: é comum falar-se das concepções filosóficas armadas do século XVI (cf. Lucien. Febvre, Le problème de l’incroyance au 16e siècle. Paris, Albin Michel, 1968, p. 15). A lógica e a metafísica (talvez o mais acertado fosse dizer ‘ontologia’, dada a sua perspectiva negativa, cética e anti-idealista) montaignianas, por serem claramente antiescolásticas em seus princípios, precisavam certamente de proteção, inclusive para que seu autor se mantivesse a salvo. Em meio a muitos outros trabalhos consagrados ao estudo da blindagem argumentativa que caracteriza a retórica ensaística, é digna de nota a interessante interpretação de Thomas Greene (Dangerous Parleys: Essais 1:5 and 6. Yale French Studies, n. 64, 1983), segundo a qual existe um paralelo entre a defesa do castelo de Montaigne e a defesa de seu livro.
[26] Ibid. II, 12, 452a
[27] Ibid. III, 13, 1107c.
[28] Cf. ibid. II, 17, 639c: aqui, por exemplo, é atribuída à secte Peripatetique a atenção para com a união de corpo e alma.
[29] Estratégia comum nos Ensaios: é de se notar, inclusive, como o ensaísta utiliza o mesmo léxico escolástico que ele execra, retorcendo-o, para usar as armas do adversário contra o próprio. E faz isso também com as idéias elas mesmas: por exemplo, na Apologie de Raymond Sebond (II, 12), são citadas as indicações de Aristóteles sobre a inteligência dos animais: o objetivo é negar ao homem o privilégio de ser o único animal racional e, por extensão, recusar esta famosa definição aristotélica (o que será feito explicitamente em outro lugar: Ensaios III, 13, 1069b). No mesmo ensaio adiante o grego será novamente citado, agora como tendo procedido em seus escritos contra a noção de autoridade – tão cara ao medievo, e que designava seu papel primordial para a escolástica –, por ter constantemente criticado as idéias de outros filósofos; e Montaigne diz ter aprendido dele a lição de que “muito saber dá ocasião de muito duvidar”, comparando em seguida a doutrina aristotélica a um “ceticismo afirmativo”: é difícil não perceber a ironia desta passagem (II, 12, 507a).
[30] Montaigne chega a atribuir ao preceptor de Alexandre, pelo seu sucesso na formação do maior guerreiro antigo, o mesmo apreço pela filosofia moral, como uma arte de valor superior às outras: cf. Ensaios I, 26, 163a. Deve-se acentuar este reconhecimento do mérito de Aristóteles como educador por alguém cujo pensamento possui um marcado cunho pedagógico; e ainda mais porque a proposta educacional ensaística condena expressamente os procedimentos mecânicos da instrução escolástica: cf. Christodoulou, op. cit., p. 54.
[31] Não é por acaso que muitas vezes encontraremos em compêndios acerca da filosofia renascentista, a citação de uma máxima disseminada por todo campo da cultura da época: veritas filia temporis – a verdade é filha do tempo.
[32] Ibid. I, 12, 47c; II, 12, 567ac. Não levo em conta aqui o problema da concordância entre Montaigne e Aristóteles do ponto de vista da evolução dos Ensaios. Como outros notaram (cf. as indicações bibliográficas da nota 7), o francês parece ter estudado a ética aristotélica mais detidamente no fim de sua vida – o que concorda com o exemplo do último trecho citado nesta nota onde, em um texto da primeira edição de seu livro, há uma adição posterior referindo a idéia aos Peripateticiens.
[33] Ibid. III, 13, 1102c, nota 4.
[34] Ibid. II, 12, 546c.
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