Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)
Notas ao fim do texto
Partimos do fato de que o ensino de filosofia no Brasil tem a sua origem no aristotelismo conimbricense transmitido oficialmente ao longo de dois séculos (1572-1772) sob a Ratio studiorum, código de ensino promulgado pela Companhia de Jesus em 1599. Parece-nos essencial ressaltar a origem do aristotelismo em que se baseia o ensino filosófico brasileiro durante esses dois séculos porque, grosso modo, a simples leitura das Regras do Professor de Filosofia, na Ratio studiorum, não nos permite senão a idéia genérica de uma “filosofia escolástica”. Basicamente, as Regras impunham o seguinte:
“Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé [...] Sem muito critério, não leia nem cite na aula os intérpretes de Aristóteles infensos ao Cristianismo [...] De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito, seguindo-o de boa vontade [...] dele divergindo com pesar e reverência, quando não for plausível a sua opinião”.[1]
Somente no § 1 da regra 09 se faz referência explícita a autores cujas obras nos ajudam a situar o aristotelismo da Ratio na península ibérica, numa época de transição entre a filosofia escolástica e a filosofia moderna:
“No primeiro ano explique a Lógica [...] menos ditando do que explicando os pontos mais necessários por Toledo [Francisco de Toledo, 1532-1596] ou Fonseca [Pedro da Fonseca, 1528-1599]”.[2]
A verdade é que uma vez situada no tempo e no espaço a origem filosófica da formação cultural brasileira, talvez daí mesmo, da atitude exemplar desses autores que marcaram o rigor e o desassombro do aristotelismo conimbricense, resulte um caminho próprio em direção à filosofia medieval, e daí à origem grega da filosofia; ou mesmo um caminho próprio em direção à filosofia moderna, e daí ao presente e ao futuro da filosofia.
O que ainda se verifica atualmente na historiografia filosófica brasileira é um preconceito historicista contra a herança filosófica portuguesa. Tal preconceito vem da época das reformas pombalinas da instrução pública, cuja condenação do aristotelismo está associada à necessidade de modernização. O Brasil oitocentista, principalmente após a emancipação política, passou a girar em torno à idéia de modernização, entendida não só como ruptura com a educação portuguesa, mas, acima de tudo, como princípio de superação do estado natural em que se encontrava enquanto filho dessa mesma educação. Domingos José Gonçalves de Magalhães, reformador da literatura brasileira, foi o primeiro a enunciar este princípio de emancipação da cultura brasileira:
“Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação [...] Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontramos, que cuidar-se-ia que entre o passado século e o nosso tempo ao menos um século mediara. Devido é isto a causas que ninguém hoje ignora. Com a expiração do domínio português, desenvolveram-se as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa”.[3]
E talvez tenha sido a idéia de cultura como antítese da natureza, em Tobias Barreto, que mais contribuiu para excluir do âmbito da pesquisa a herança filosófica portuguesa. Dizia Tobias:
“O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica – esse estado se designa pelo nome geral de natureza [...] a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos. Quando isto porém acontece, quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior, muda-se o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza. É assim que se costuma falar de riquezas naturais, e de produtos naturais, significando alguma coisa de anterior e independente do trabalho humano. Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço - todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom”.[4]
Somente a partir da década de 50 deste século, com Miguel Reale, a filosofia brasileira deixou de girar em torno a questões suscitadas em outras culturas para retomar e aprofundar a questão proposta por Tobias Barreto (acerca da relação entre natureza e cultura) como projeto de pesquisa filosófica: o culturalismo, atualmente apresentado por um de seus pesquisadores mais importantes, Antônio Paim, como “escola” culturalista.[5] Neste sentido, nem a modernização filosófica da cultura brasileira desencadeada por Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito (para citar apenas os nomes mais representativos no século XIX), nem o culturalismo brasileiro como expressão filosófica contemporânea, podem ser julgados e avaliados corretamente sem levarmos em conta a questão acerca da superação do aristotelismo português no Brasil.
Deixando de lado os preconceitos daqueles que ainda excluem do conceito de filosofia brasileira a pesquisa sobre as fontes do ensino filosófico colonial, achamos por bem incorporar o estudo do aristotelismo português à linha de pesquisa Filosofia Brasileira como um de seus temas essenciais. Como se trata de uma compreensão filosófica do aristotelismo português no Brasil, limitar-nos-emos a uma visão temática das idéias que, segundo nos parece, já apontam, desde o século XVII, para a questão filosófica do problema da modernização cultural brasileira no século XIX (de Magalhães a Farias Brito, passando por Tobias Barreto), e ao mesmo tempo serve para introduzir a tese nuclear do culturalismo de Miguel Reale, a saber - a tese de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.[6]
Essa temática corresponde à necessidade de superação do determinismo da natureza. Uma vez considerada no âmbito da projeção do aristotelismo português no Brasil, a questão acerca da necessidade de superação do determinismo da natureza levou-nos a considerar apenas um autor ao longo de todo o período colonial: o Pe. Antônio Vieira.
A presença de Antônio Vieira
Identificamos no Pe. Antônio Vieira, S. J. (1608-1697), a primeira expressão de um espírito universal inteiramente formado sob o aristotelismo português no Brasil. Não obstante as críticas de Luís Antônio Vernei ao seu estilo, acusando-o de seguir “a Metafísica das escolas”, comparando os seus sermões a “teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém”,[7] o fato é que os inúmeros estudos, literários e filosóficos, estão aí para provar, três séculos depois de sua morte, a universalidade e a originalidade do seu pensamento.
Do ponto de vista da melhor tradição aristotélica portuguesa, há que considerar primeiramente a sua competência dialética. No Sermão da sexagésima, Vieira ensina a mesma técnica de discorrer que aprendera com seus mestres jesuítas na Bahia:
“Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto”.[8]
O que são estes ensinamentos senão os mesmos que encontramos em Fonseca:
“Há três modos gerais de discorrer, os quais se dividem ainda, bastante pormenorizadamente, em muitos outros. São eles: a divisão, a definição e a argumentação”.[9]
Parece evidente também que a estrutura do sermão em Vieira, juntando o rigor demonstrativo da lógica aristotélica à arte da retórica latina, corresponde perfeitamente àquela passagem de Fonseca onde se adverte que, do mesmo modo que “se arguirão os matemáticos e os filósofos que tratarem de coisas matemáticas e filosóficas ao modo da oratória”, “será acusado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser tecer o seu discurso de razões matemáticas ou de pura filosofia”.[10] O que não parece evidente é se e em que medida é possível a tematização filosófica do seu pensamento quanto à necessidade de superação do determinismo da natureza, não só na projeção do aristotelismo português no Brasil, mas, sobretudo, na perspectiva da tese do culturalismo brasileiro de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.
Tendo em vista essa dupla significação do pensamento de Vieira - na projeção do aristotelismo português no Brasil e em face do contemporâneo culturalismo brasileiro -, consideramos apenas duas questões pertinentes à tematização em pauta (a necessidade de superação do determinismo da natureza), a saber: a questão da consciência de si, a partir do problema da conversão, e a questão da identidade ontológica, a partir do problema da injustiça social. Para a primeira questão, levamos em conta o Sermão da sexagésima, que representa, segundo o próprio Vieira na edição princeps dos sermões, uma teorização sobre a oratória sacra; para a segunda questão, concentramo-nos basicamente no Sermão de Santo Antônio (Lisboa, 1642).A questão da consciência de si a partir do problema da conversãoA questão da consciência de si como condição de o homem libertar-se do determinismo da natureza, transformando-se em princípio de conhecimento e de ação, pode ser levantada na filosofia brasileira a partir do problema da conversão em Vieira. “Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?”, proclamava Vieira no Sermão da sexagésima:
“Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz [...] Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”.
Ora, se “o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”, tudo indica que a conversão, no sentido dessa “visão interior” de si mesmo como criatura de Deus implica a consciência de si como uma inteligência. Para essa consciência concorreria a ação doutrinária e educativa do pregador. Mas a ação doutrinária e educativa para esse fim não se justificaria sem uma compreensão clara da necessidade do intelecto como “luz interior”. Essa compreensão, no âmbito do aristotelismo português, a encontramos em Pedro da Fonseca, que, depois de explicar a concepção do objeto de conhecimento na base da distinção aristotélica entre o intelecto agente e o intelecto possível ou paciente, assim se exprime:
"Efetivamente, o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles".[11]
Tal explicação está de acordo com São Tomás de Aquino, pois, segundo este:
“nada passa da potência para o ato senão por um ser em ato; assim, o sentido torna-se atual pelo sensível atual. Logo, é necessário admitir-se uma virtude, no intelecto, que atualize os inteligíveis, abstraindo as espécies das condições materiais. E essa é a necessidade de se admitir um intelecto agente”.[12]
Além disso, acrescenta São Tomás, já agora apoiado em Averróis, que “a luz é necessária para a visão [...] para que torne lúcido o meio em ato” (grifos nossos).[13] Assim, uma vez justificada a conversão pela necessidade da “luz interior” inerente ao intelecto agente, resta saber: Como e em que medida pode faltar aos olhos humanos a “visão interior” de si mesmo, uma vez que, segundo Vieira, o concurso da “luz interior” por parte de Deus não falta nem pode faltar?
A resposta a essa pergunta envolve a idéia de participação da luz divina pela criatura racional. Nesse sentido, diz São Tomás que “é necessário admitir-se, além da alma intelectiva humana, um intelecto superior, do qual a alma obtém a virtude de inteligir”, do que se segue que “a alma humana torna-se intelectiva por participação da virtude intelectual”,[14] para finalmente concluir afirmando que “é necessário um intelecto mais alto que ajude a alma a inteligir”.[15] Desse modo, só poderia faltar a “visão interior” de si mesmo por causa do fracasso da ação doutrinária e educativa em elevar o intelecto à luminosidade da luz do Criador, sob a qual o homem torna-se capaz de ver a si mesma na estranha ambiguidade de objeto e sujeito de conhecimento.
Desse ponto de vista, da necessidade de ver-se a si sob a luminosidade da luz divina e criadora, o problema da conversão em Vieira corresponde ao problema histórico, que enfrenta o pregador, de elevar a consciência empírica ao nível de universalidade da mensagem cristã, mas sem reduzir a interpretação do texto religioso a uma concepção racionalista da linguagem. Nesse sentido, a ação doutrinária e educativa do pregador também não se justificaria sem uma teoria acerca do uso das palavras.
“Antigamente convertia-se o Mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras [...] Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?”.[16]
Evidentemente, Vieira não concebe a palavra apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. Para ele, assim como para toda a filosofia cristã, desde Sto. Agostinho, o falar revela o “homem interior” no sentido de que ele usa de um sistema de sinais para significar a própria vontade.[17] Por isso Vieira interpela os pregadores sobre o nível de universalidade em que se deve usar das palavras na pregação: se devemos (i) “trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos”, ou (ii) se “não havemos de querer o que elas dizem”. Na primeira hipótese, acusa ele, “muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam”;[18] na segunda hipótese (para alcançarmos o nível de universalidade da palavra divina), pergunta se é “esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja”, se é “esse o sentido da mesma gramática das palavras”.[19]
Deste modo, o sermão não realiza coisa alguma, isto é, não converte a ninguém se antes o pregador não se revela a si mesmo mediante o que ele quer dizer. Porque na verdade as palavras, na medida em que significam por convenção, a priori já “querem” dizer. Por isso não se reveste de autoridade o pregador (ou o mestre) que apenas sabe o que as palavras no texto significam ou querem dizer, sendo necessário também querer o que elas dizem: o sermão, enquanto instrumento da conversão, se subordina à intencionalidade do ato de fala na medida em que o ato de fala realiza aquilo mesmo que significa.
Esta compreensão é evidente, por exemplo, em Pedro da Fonseca, quando ele ensina que:
“na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas condições: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para se saber o que se diz; esta, para se querer o que se diz”.[20]
“Significar nada mais é que representar algo a uma potência cognoscente [...] Por isso, quando se diz que aquele que fala ou escreve significa a sua sentença, ou vontade, isto não se deve entender senão no mesmo sentido em que se diz que aquele que põe fogo à lenha ele mesmo queima a lenha”.[21]
Assim sendo, como e em que medida se realiza pela palavra a conversão, se o ato de fala pressupõe um sistema de princípios e regras de significação?
Em Vieira, a conversão se realiza na participação dos princípios e regras que definem a língua portuguesa, tendo em vista o fim que ele se propõe. Porque o fim, enquanto querido, como que move o indivíduo a agir em conformidade à razão, aprendendo e conhecendo, subordinando-se a princípios, regras e leis. O sentido dessa virtude intelectual no contexto do aristotelismo português encontra-se, primeiramente, em São Tomás de Aquino, onde ele se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[22] Sua origem, naturalmente, encontra-se em Aristóteles, quando define o bem como um fim desejável apoiado na “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.[23] Mas Aristóteles distingue a virtude, ou excelência, da simples função, quando a esta se acrescenta, como um excesso, o querer aquilo que se sabe fazer.[24]
Tal excesso se observa em Vieira enquanto autor estético. E ao que parece, muito contribui para isso a dialética como se concebe em Pedro da Fonseca “como arte que ensina todas as formas de discorrer, isto é, de revelar pela oração o desconhecido a partir do conhecido”.[25] A autoridade religiosa de que se revestiu o Pe. Antônio Vieira permitiu-lhe usar de todos os recursos dialéticos para convencer e persuadir, razão pela qual o seu discurso tem um caráter literário e, por isso mesmo, um valor estético. Mesmo que um homem se recuse a seguir até onde Vieira se esforça por conduzi-lo, o sermão enquanto obra estética pode, por si só, realizar alguma coisa: obrigá-lo a tornar-se atento, obrigá-lo a pensar as palavras, obrigá-lo a julgar. Como autor estético, Vieira se propõe cativar os piores ouvintes, os de vontades endurecidas e os de entendimento agudo, que “vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galanterias, a avaliar pensamentos”.[26]
Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a idéia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Porque “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”, recomenda Vieira.[27]
Nesta perspectiva de entendimento, a conversão à consciência de si como autor implica uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma experiência da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade.
Vieira critica aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a apartarem-se dos fatos e da experiência:
“São fingimentos, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédias, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes”.[28]
Mais uma vez, a fonte é Aristóteles, onde ele afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam”, e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro”.[29]
Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a linguagem, de modo que o uso da palavra em Vieira exprime uma unidade de pensamento e ação subjacente à sua personalidade múltipla de missionário, conselheiro real, diplomata e, principalmente, de escritor, havemos de considerar que a consciência empírica em Vieira implica a consciência de si como uma consciência originária e necessária da identidade de si mesmo que é, ao mesmo tempo, a consciência de uma unidade, igualmente necessária, do eu em sua existência histórica e em sua pluralidade de significações.
A questão da identidade ontológica
Na medida em que assume como ponto de partida dos seus estudos o problema ontológico de Tobias Barreto, acerca da diferença entre os objetos que constituem o mundo da natureza e os objetos que constituem o mundo da cultura ou dos valores, Miguel Reale introduz o assim chamado culturalismo como sendo, segundo suas próprias palavras, “talvez a única corrente filosófica brasileira constituída na imanência de nossas circunstâncias”.[30]
Sem negar ao pensador sergipano a origem do culturalismo, em cuja trajetória Miguel Reale passou do universo kantiano de Tobias Barreto para Hegel e para Husserl, acreditamos que o problema assimilado por Miguel Reale tem raízes mais profundas na história da cultura de língua portuguesa, a saber: na tradição ético-política inerente ao pensamento de Antônio Vieira. Deduzida da idéia de valor em Tobias Barreto, que aparece sobretudo onde ele afirma que “a cultura é [...] a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom” (ver citação da nota 4), a tese nuclear do culturalismo, de que “o ser do homem é o seu dever-ser”, é apresentada por Miguel Reale da seguinte forma:
“As realizações da espécie humana [...] jamais se desvinculam de sua base ou raiz fundante, que é dada pelo homem mesmo, tomado [...] não em sua individualidade empírica circunscrita, mas como eu participante de outros eus, isto é, como pessoa, que é o indivíduo em sua dimensão intersubjetiva. Destarte, os eventos históricos [...] se contêm dentro do âmbito de legitimação ética que se projeta fundamentalmente do valor-fonte que é o valor da pessoa humana, por ser o homem o único ente que, de maneira originária, tanto é como deve ser: o valor da pessoa humana [...] representa, portanto, o pressuposto da conduta ética [..] A afirmação por mim tantas vezes feita de que o homem é enquanto deve ser, ou de que o ser do homem é o seu dever ser, não tem alcance puramente ôntico [...] porque implica uma tomada de posição radical de ordem deontológica [...] tanto vale dizer que o dever ser é o ser do homem (determinação ôntico-axiológica do homem) como dizer que o ser do homem deve ser respeitado e atualizado como tal (afirmação do homem no plano da ação) [...] Se digo que o homem é enquanto deve ser, nessa afirmação está implícita a identidade ontológica de todos os homens, coincidindo todos nós [...] naquela “condição transcendental ontológica e deontológica de sermos pessoas”, verdade da qual nos damos conta através da história, mas que é logicamente anterior a ela, como seu fundamento radical [...] É a razão pela qual pode-se concluir que a pessoa é o homem em sua concreta atualização [...] enquanto o eu toma consciência de si mesmo e dos outros, na sociedade do nós”.[31]
Vemos aí a postulação clara de uma fundamentação da experiência (no sentido kantiano de que a experiência implica o princípio de relatividade e, em consequência, a relatividade dos valores) a partir de uma concepção ética do homem. Essencialmente, afirma-se, como um princípio, (i) a necessidade de transformação do homem natural em pessoa mediante a superação do ser pelo dever-ser; com base nesse princípio, recorre-se ao conceito de participação para explicar que (ii) o eu se transforma em pessoa na medida em que participa de outros eus; finalmente, recorre-se ao termo ‘ato’ (actus), em sua dupla acepção aristotélica[32] de ação (energeia) e de fim (teloV) para explicar que (iii) o dever-ser é o ser do homem atualizado no plano da ação.
É evidente a ligação dessas idéias com o pensamento de Tobias Barreto, quando este propõe uma “idéia geral do homem [como] um animal que prende-se, que doma-se a si mesmo”,[33] argumentando que “o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade”,[34] com base no princípio, de inspiração kantiana,[35] de “serem as leis da liberdade as mesmas leis da natureza”.[36]
Entretanto, o sentido essencial do problema, isto é, a superação do modo natural do ser pelo dever-ser, é evidente em nossa cultura desde Antônio Vieira. No Sermão de Santo Antônio, realizado na festa que se fez ao Santo na Igreja das Chagas, aos 14 de setembro de 1642, tendo-se publicado as Côrtes para o dia seguinte, o Pe. Antônio Vieira, preocupado com o problema da injustiça social no reino português, argumenta da seguinte maneira:
“Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo [...] Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade [...] Boa doutrina estava esta, se não fora dificultosa, e, ao que parece, impraticável. Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados [clero, nobreza e povo] do reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão-de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? Já se sabe que há-de ser: Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: vós sois semelhantes ao sal; senão: vos estis. Vós sois sal. Não é necessária filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão-de transformar os homens, e que hão-de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação. Por isso tendo Cristo constituído aos Apóstolos ministros da Redenção, e conservadores do mundo, não os considera sal por semelhança, senão sal por realidade [...] porque o ofício há-de se transformar em natureza, a obrigação há-de se converter em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício; porque cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve”.
Segundo esta argumentação, há dois modos do ser: o ser “dado por natureza” e o dever-ser. O primeiro, é o modo do ser em que a existência das coisas, inclusive do próprio homem, não depende da inteligência nem da vontade humanas, senão da determinação absoluta de leis universais e eternas; o segundo, é o modo do ser cuja existência, a começar pelo próprio homem, depende da participação dessas mesmas leis, naquele mesmo sentido em que São Tomás de Aquino se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[37]
Nesse sentido, se o homem há de transformar-se, se ele há de deixar de ser o que é por natureza, isto supõe a conversão, isto é, a “visão interior” de si mesmo obrigado à natureza. O sentido ontológico dessa transformação está em que a existência das coisas não é nunca requerida como necessária pelo próprio dado, sendo assim sempre contingente; somente a conversão, através da participação intelectual das leis universais que determinam a própria existência, poderia levar o homem a revestir de necessidade a própria existência.
Assim, há de libertar-se o homem do mecanismo da natureza pela consciência de si como aquele cujo ser é obrigado à natureza, não só pelo conhecimento das leis universais que determinam a própria existência, como também pelo modo necessário como realiza a própria vontade por imitação da natureza. Somente pela conversão o homem seria capaz não só de ver a si mesmo como criatura de Deus, obrigado a leis universais, mas, acima de tudo, seria capaz de reconhecer tal obrigação como essencial.
Quando Vieira diz “a obrigação há-de se converter em essência”, isto deve ser entendido no mesmo sentido em que se diz, nas ações humanas, “é necessário que assim seja, é necessário que assim se faça”; neste sentido, a obrigação (enquanto obrigação a regras e leis) é princípio de eficiência da ação pelo que ela tem de essencial e não de acidental.
Quando Vieira diz “o ofício há-de se transformar em natureza”, isto deve ser entendido no sentido de que o ofício (officium), como obrigação a regras e leis, como dever, converte-se em essência sem prejuízo da própria vontade. Tal exigência se cumpre na medida em que ao homem, enquanto criado à imagem e semelhança de Deus, não basta conhecer a mecânica das leis da natureza, mas também querer o que elas realizam. Primeiro o conhecimento, na medida em que é necessária uma ciência das coisas para se ir ao encontro da natureza e não contra a natureza; ao saber acrescenta-se o sentimento do dever, no sentido de que é necessário não apenas saber como se determina existência das coisas por leis universais, mas também querer as próprias coisas assim determinadas.
Desse modo, “devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem” no mesmo sentido em que Aristóteles, ao definir a vida como ato ou exercício, reconhece como própria e essencial uma “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.[38]
Ao calar o nome da pessoa e dizer o nome do ofício (Ego sum vox), o ser do homem se revela como dever-ser, isto é, como pessoa, como sendo “o homem em sua concreta atualização”, para lembrar aqui as palavras de Miguel Reale.[39] Em outras palavras, “o ofício há-de se transformar em natureza” na medida em que o homem supera o determinismo da natureza sem prejudicá-la, o que vai ao encontro do princípio de que nenhuma vontade é virtuosa senão quando se transforma em lei para si mesma.
Assim sendo, se em algum sentido os homens se igualam, isto só é possível em virtude do sentimento da obrigação, porque tal sentimento pressupõe o sentido da participação pela razão e pela vontade livre. As fontes deste entendimento, como já referimos, são Aristóteles e São Tomás de Aquino. Esta referência, entretanto, passa pelo aristotelismo medieval português. No Tratado da virtuosa benfeitoria, o Infante D. Pedro entende que “os sobdictos offereçem ledos e uoluntariosos seruiços aaquelles a que por natureza uiuem sogeytos, e som obrigados por o bem que rreçebem”,[40] mas esclarece que essa sujeição não é virtuosa se não é desejada:
“Cousa he perteeçente de sabermos o que nos moue a fazer bem. E pera declaraçom daquesto, aprendamos que diz aristotilles no iij liuro da alma que a uoontade he mouedor per outrem mouido. E pera sse mostrar aquesta conclusom. Saybhamos que no ij liuro dos fisicos he scripto. Que a arte , aaquall pertençe a fim, moue per seu mandado as artes que trabalham em os meyos perque a fim há de seer gaançada [...] Semelhauelmente a uoontade sguardando o bem comuũ que he fim de todallas obras, moue as outras uirtudes e poderyos da alma, que teem cuydado de cada huũ bem particullar. E portanto he scripto no primeyro liuro da poliçia, que a uoontade moue per seu mandado os poderyos defenssor e deseiador. Os quaaes lhe obedeeçem, nom como seruos em costrangida sobieeçom, mas segundo homeẽs liures em obedeença deseiosa”.
Notas
[1] Cf. Leonel Franca, O método pedagógico dos jesuítas. O “Ratio Studiorum”. Rio de Janeiro, Agir, 1952, p. 159.
[2] Idem, p. 160.
[3] Cf. “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, in: Obras. Rio de Janeiro, Garnier, 1865.
[4] Cf. “Sobre uma nova intuição do direito”, Estudos de filosofia, in: Obras completas. Rio de Janeiro, Record/INL, 1990.
[5] Cf. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo, Convívio, 1987 (4ª ed.). Cf. também do mesmo autor A escola eclética. Universidade de Londrina, 1996.
[6] Ver Experiência e cultura. São Paulo, Grijalbo/EDUSP, 1977; ver também do mesmo autor Verdade e conjetura. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, especialmente “Ontologia da liberdade e do valor”.
[7] Cf. Verdadeiro método de estudar, ed. de A. Salgado Júnior. Lisboa, Sá da Costa, 1950, vol. II.
[8] Obras escolhidas. Lisboa, Sá da Costa, 1951.
[9] Cf. Instituições dialécticas, introd. e estabelecimento do texto latino, trad. e notas por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de coimbra, 1964, vol. I, p. 25.
[10] Idem, vol. II, p. 515.
[11] Cf. Isagoge filosófica. Introd., edição do texto latino e trad. por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de Coimbra, 1965, pp. 54s.
[12] :Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologica I, q. LXXIX, a. III, apoiado em Aristóteles, Metaph. III, IX.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 8.
[18] Sermão da Sexagésima.
[19] Ibidem.
[20] Cf. Instituições dialécticas, vol. II, p. 575.
[21] Idem, vol. I, p. 35.
[22] Summa theologiae, prima secundae, q. XCI, a. II.
[23] Ética a Nicômaco, I, 7.
[24] Ibidem.
[25] Instituições dialécticas, vol. I, 1.
[26] Sermão da sexagésima.
[27] Sermão de Santo Antônio (1642).
[28] Sermão da sexagésima.
[29] Ética a Nicômaco, I, 3.
[30] Cf. “Primórdios do culturalismo no Brasil”. In: Estudos de filosofia brasileira. Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, p. 113.
[31] Experiência e cultura, pp. 195s.
[32] Metaph. 8.
[33] Cf. “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações anti-sociológicas”. Idem, ibidem.
[34] Ibidem.
[35] Ver Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, Terceira Seção.
[36] “Glosas...”.
[37] Ver nota 22.
[38] Ética a Nicômaco, I, 7.
[39] Ver citação da nota 31.
[40] In: Obras dos Príncipes de Avis. Porto, Lello, 1981, p. 533.
[41] Ibidem, p. 567.
Notas ao fim do texto
Partimos do fato de que o ensino de filosofia no Brasil tem a sua origem no aristotelismo conimbricense transmitido oficialmente ao longo de dois séculos (1572-1772) sob a Ratio studiorum, código de ensino promulgado pela Companhia de Jesus em 1599. Parece-nos essencial ressaltar a origem do aristotelismo em que se baseia o ensino filosófico brasileiro durante esses dois séculos porque, grosso modo, a simples leitura das Regras do Professor de Filosofia, na Ratio studiorum, não nos permite senão a idéia genérica de uma “filosofia escolástica”. Basicamente, as Regras impunham o seguinte:
“Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé [...] Sem muito critério, não leia nem cite na aula os intérpretes de Aristóteles infensos ao Cristianismo [...] De Santo Tomás, pelo contrário, fale sempre com respeito, seguindo-o de boa vontade [...] dele divergindo com pesar e reverência, quando não for plausível a sua opinião”.[1]
Somente no § 1 da regra 09 se faz referência explícita a autores cujas obras nos ajudam a situar o aristotelismo da Ratio na península ibérica, numa época de transição entre a filosofia escolástica e a filosofia moderna:
“No primeiro ano explique a Lógica [...] menos ditando do que explicando os pontos mais necessários por Toledo [Francisco de Toledo, 1532-1596] ou Fonseca [Pedro da Fonseca, 1528-1599]”.[2]
A verdade é que uma vez situada no tempo e no espaço a origem filosófica da formação cultural brasileira, talvez daí mesmo, da atitude exemplar desses autores que marcaram o rigor e o desassombro do aristotelismo conimbricense, resulte um caminho próprio em direção à filosofia medieval, e daí à origem grega da filosofia; ou mesmo um caminho próprio em direção à filosofia moderna, e daí ao presente e ao futuro da filosofia.
O que ainda se verifica atualmente na historiografia filosófica brasileira é um preconceito historicista contra a herança filosófica portuguesa. Tal preconceito vem da época das reformas pombalinas da instrução pública, cuja condenação do aristotelismo está associada à necessidade de modernização. O Brasil oitocentista, principalmente após a emancipação política, passou a girar em torno à idéia de modernização, entendida não só como ruptura com a educação portuguesa, mas, acima de tudo, como princípio de superação do estado natural em que se encontrava enquanto filho dessa mesma educação. Domingos José Gonçalves de Magalhães, reformador da literatura brasileira, foi o primeiro a enunciar este princípio de emancipação da cultura brasileira:
“Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação [...] Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontramos, que cuidar-se-ia que entre o passado século e o nosso tempo ao menos um século mediara. Devido é isto a causas que ninguém hoje ignora. Com a expiração do domínio português, desenvolveram-se as idéias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa”.[3]
E talvez tenha sido a idéia de cultura como antítese da natureza, em Tobias Barreto, que mais contribuiu para excluir do âmbito da pesquisa a herança filosófica portuguesa. Dizia Tobias:
“O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica – esse estado se designa pelo nome geral de natureza [...] a natureza se desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins humanos. Quando isto porém acontece, quando o homem inteligente e ativo põe a mão em um objeto do mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior, muda-se o estado desse objeto, e ele deixa de ser simples natureza. É assim que se costuma falar de riquezas naturais, e de produtos naturais, significando alguma coisa de anterior e independente do trabalho humano. Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço - todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom”.[4]
Somente a partir da década de 50 deste século, com Miguel Reale, a filosofia brasileira deixou de girar em torno a questões suscitadas em outras culturas para retomar e aprofundar a questão proposta por Tobias Barreto (acerca da relação entre natureza e cultura) como projeto de pesquisa filosófica: o culturalismo, atualmente apresentado por um de seus pesquisadores mais importantes, Antônio Paim, como “escola” culturalista.[5] Neste sentido, nem a modernização filosófica da cultura brasileira desencadeada por Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito (para citar apenas os nomes mais representativos no século XIX), nem o culturalismo brasileiro como expressão filosófica contemporânea, podem ser julgados e avaliados corretamente sem levarmos em conta a questão acerca da superação do aristotelismo português no Brasil.
Deixando de lado os preconceitos daqueles que ainda excluem do conceito de filosofia brasileira a pesquisa sobre as fontes do ensino filosófico colonial, achamos por bem incorporar o estudo do aristotelismo português à linha de pesquisa Filosofia Brasileira como um de seus temas essenciais. Como se trata de uma compreensão filosófica do aristotelismo português no Brasil, limitar-nos-emos a uma visão temática das idéias que, segundo nos parece, já apontam, desde o século XVII, para a questão filosófica do problema da modernização cultural brasileira no século XIX (de Magalhães a Farias Brito, passando por Tobias Barreto), e ao mesmo tempo serve para introduzir a tese nuclear do culturalismo de Miguel Reale, a saber - a tese de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.[6]
Essa temática corresponde à necessidade de superação do determinismo da natureza. Uma vez considerada no âmbito da projeção do aristotelismo português no Brasil, a questão acerca da necessidade de superação do determinismo da natureza levou-nos a considerar apenas um autor ao longo de todo o período colonial: o Pe. Antônio Vieira.
A presença de Antônio Vieira
Identificamos no Pe. Antônio Vieira, S. J. (1608-1697), a primeira expressão de um espírito universal inteiramente formado sob o aristotelismo português no Brasil. Não obstante as críticas de Luís Antônio Vernei ao seu estilo, acusando-o de seguir “a Metafísica das escolas”, comparando os seus sermões a “teias de aranha, bonitas para se observarem, mas que não prendem ninguém”,[7] o fato é que os inúmeros estudos, literários e filosóficos, estão aí para provar, três séculos depois de sua morte, a universalidade e a originalidade do seu pensamento.
Do ponto de vista da melhor tradição aristotélica portuguesa, há que considerar primeiramente a sua competência dialética. No Sermão da sexagésima, Vieira ensina a mesma técnica de discorrer que aprendera com seus mestres jesuítas na Bahia:
“Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça, há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com a Escritura, há-de declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto”.[8]
O que são estes ensinamentos senão os mesmos que encontramos em Fonseca:
“Há três modos gerais de discorrer, os quais se dividem ainda, bastante pormenorizadamente, em muitos outros. São eles: a divisão, a definição e a argumentação”.[9]
Parece evidente também que a estrutura do sermão em Vieira, juntando o rigor demonstrativo da lógica aristotélica à arte da retórica latina, corresponde perfeitamente àquela passagem de Fonseca onde se adverte que, do mesmo modo que “se arguirão os matemáticos e os filósofos que tratarem de coisas matemáticas e filosóficas ao modo da oratória”, “será acusado o orador que, suprimindo todo o ornamento, quiser tecer o seu discurso de razões matemáticas ou de pura filosofia”.[10] O que não parece evidente é se e em que medida é possível a tematização filosófica do seu pensamento quanto à necessidade de superação do determinismo da natureza, não só na projeção do aristotelismo português no Brasil, mas, sobretudo, na perspectiva da tese do culturalismo brasileiro de que “o ser do homem é o seu dever-ser”.
Tendo em vista essa dupla significação do pensamento de Vieira - na projeção do aristotelismo português no Brasil e em face do contemporâneo culturalismo brasileiro -, consideramos apenas duas questões pertinentes à tematização em pauta (a necessidade de superação do determinismo da natureza), a saber: a questão da consciência de si, a partir do problema da conversão, e a questão da identidade ontológica, a partir do problema da injustiça social. Para a primeira questão, levamos em conta o Sermão da sexagésima, que representa, segundo o próprio Vieira na edição princeps dos sermões, uma teorização sobre a oratória sacra; para a segunda questão, concentramo-nos basicamente no Sermão de Santo Antônio (Lisboa, 1642).A questão da consciência de si a partir do problema da conversãoA questão da consciência de si como condição de o homem libertar-se do determinismo da natureza, transformando-se em princípio de conhecimento e de ação, pode ser levantada na filosofia brasileira a partir do problema da conversão em Vieira. “Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?”, proclamava Vieira no Sermão da sexagésima:
“Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz [...] Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”.
Ora, se “o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento”, tudo indica que a conversão, no sentido dessa “visão interior” de si mesmo como criatura de Deus implica a consciência de si como uma inteligência. Para essa consciência concorreria a ação doutrinária e educativa do pregador. Mas a ação doutrinária e educativa para esse fim não se justificaria sem uma compreensão clara da necessidade do intelecto como “luz interior”. Essa compreensão, no âmbito do aristotelismo português, a encontramos em Pedro da Fonseca, que, depois de explicar a concepção do objeto de conhecimento na base da distinção aristotélica entre o intelecto agente e o intelecto possível ou paciente, assim se exprime:
"Efetivamente, o intelecto agente é uma certa luz interior e espiritual, fazendo de coisas universais em potência universais em ato, de algum modo como a luz corporal faz das cores visíveis em potência visíveis em ato, como diz Aristóteles".[11]
Tal explicação está de acordo com São Tomás de Aquino, pois, segundo este:
“nada passa da potência para o ato senão por um ser em ato; assim, o sentido torna-se atual pelo sensível atual. Logo, é necessário admitir-se uma virtude, no intelecto, que atualize os inteligíveis, abstraindo as espécies das condições materiais. E essa é a necessidade de se admitir um intelecto agente”.[12]
Além disso, acrescenta São Tomás, já agora apoiado em Averróis, que “a luz é necessária para a visão [...] para que torne lúcido o meio em ato” (grifos nossos).[13] Assim, uma vez justificada a conversão pela necessidade da “luz interior” inerente ao intelecto agente, resta saber: Como e em que medida pode faltar aos olhos humanos a “visão interior” de si mesmo, uma vez que, segundo Vieira, o concurso da “luz interior” por parte de Deus não falta nem pode faltar?
A resposta a essa pergunta envolve a idéia de participação da luz divina pela criatura racional. Nesse sentido, diz São Tomás que “é necessário admitir-se, além da alma intelectiva humana, um intelecto superior, do qual a alma obtém a virtude de inteligir”, do que se segue que “a alma humana torna-se intelectiva por participação da virtude intelectual”,[14] para finalmente concluir afirmando que “é necessário um intelecto mais alto que ajude a alma a inteligir”.[15] Desse modo, só poderia faltar a “visão interior” de si mesmo por causa do fracasso da ação doutrinária e educativa em elevar o intelecto à luminosidade da luz do Criador, sob a qual o homem torna-se capaz de ver a si mesma na estranha ambiguidade de objeto e sujeito de conhecimento.
Desse ponto de vista, da necessidade de ver-se a si sob a luminosidade da luz divina e criadora, o problema da conversão em Vieira corresponde ao problema histórico, que enfrenta o pregador, de elevar a consciência empírica ao nível de universalidade da mensagem cristã, mas sem reduzir a interpretação do texto religioso a uma concepção racionalista da linguagem. Nesse sentido, a ação doutrinária e educativa do pregador também não se justificaria sem uma teoria acerca do uso das palavras.
“Antigamente convertia-se o Mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras [...] Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?”.[16]
Evidentemente, Vieira não concebe a palavra apenas como expressão e comunicação de pensamento, como é próprio do espírito do tempo sob o racionalismo do século XVII. Para ele, assim como para toda a filosofia cristã, desde Sto. Agostinho, o falar revela o “homem interior” no sentido de que ele usa de um sistema de sinais para significar a própria vontade.[17] Por isso Vieira interpela os pregadores sobre o nível de universalidade em que se deve usar das palavras na pregação: se devemos (i) “trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos”, ou (ii) se “não havemos de querer o que elas dizem”. Na primeira hipótese, acusa ele, “muitas vezes as tomais pelo que toam, e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam”;[18] na segunda hipótese (para alcançarmos o nível de universalidade da palavra divina), pergunta se é “esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja”, se é “esse o sentido da mesma gramática das palavras”.[19]
Deste modo, o sermão não realiza coisa alguma, isto é, não converte a ninguém se antes o pregador não se revela a si mesmo mediante o que ele quer dizer. Porque na verdade as palavras, na medida em que significam por convenção, a priori já “querem” dizer. Por isso não se reveste de autoridade o pregador (ou o mestre) que apenas sabe o que as palavras no texto significam ou querem dizer, sendo necessário também querer o que elas dizem: o sermão, enquanto instrumento da conversão, se subordina à intencionalidade do ato de fala na medida em que o ato de fala realiza aquilo mesmo que significa.
Esta compreensão é evidente, por exemplo, em Pedro da Fonseca, quando ele ensina que:
“na autoridade humana requerem-se ordinariamente duas condições: conhecimento das coisas (que se contém na ciência ou na experiência dessas coisas) e virtude. Aquele, para se saber o que se diz; esta, para se querer o que se diz”.[20]
“Significar nada mais é que representar algo a uma potência cognoscente [...] Por isso, quando se diz que aquele que fala ou escreve significa a sua sentença, ou vontade, isto não se deve entender senão no mesmo sentido em que se diz que aquele que põe fogo à lenha ele mesmo queima a lenha”.[21]
Assim sendo, como e em que medida se realiza pela palavra a conversão, se o ato de fala pressupõe um sistema de princípios e regras de significação?
Em Vieira, a conversão se realiza na participação dos princípios e regras que definem a língua portuguesa, tendo em vista o fim que ele se propõe. Porque o fim, enquanto querido, como que move o indivíduo a agir em conformidade à razão, aprendendo e conhecendo, subordinando-se a princípios, regras e leis. O sentido dessa virtude intelectual no contexto do aristotelismo português encontra-se, primeiramente, em São Tomás de Aquino, onde ele se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[22] Sua origem, naturalmente, encontra-se em Aristóteles, quando define o bem como um fim desejável apoiado na “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.[23] Mas Aristóteles distingue a virtude, ou excelência, da simples função, quando a esta se acrescenta, como um excesso, o querer aquilo que se sabe fazer.[24]
Tal excesso se observa em Vieira enquanto autor estético. E ao que parece, muito contribui para isso a dialética como se concebe em Pedro da Fonseca “como arte que ensina todas as formas de discorrer, isto é, de revelar pela oração o desconhecido a partir do conhecido”.[25] A autoridade religiosa de que se revestiu o Pe. Antônio Vieira permitiu-lhe usar de todos os recursos dialéticos para convencer e persuadir, razão pela qual o seu discurso tem um caráter literário e, por isso mesmo, um valor estético. Mesmo que um homem se recuse a seguir até onde Vieira se esforça por conduzi-lo, o sermão enquanto obra estética pode, por si só, realizar alguma coisa: obrigá-lo a tornar-se atento, obrigá-lo a pensar as palavras, obrigá-lo a julgar. Como autor estético, Vieira se propõe cativar os piores ouvintes, os de vontades endurecidas e os de entendimento agudo, que “vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galanterias, a avaliar pensamentos”.[26]
Constitui-se uma ilusão, nesse sentido, a idéia de que a revelação do “homem interior” vem exclusivamente da razão, por abstração da experiência e dos sentidos, como poderiam supor os racionalistas do século XVII. Porque “somos compostos de carne e sangue, obre de tal maneira o racional, que tenha sempre respeito ao sensitivo”, recomenda Vieira.[27]
Nesta perspectiva de entendimento, a conversão à consciência de si como autor implica uma perfeição da inteligência através do ato de fala do mesmo modo que o bem constitui a perfeição da vontade. O homem verdadeiro não corresponde, assim, apenas a um acordo interno do espírito consigo mesmo ou com as representações por ele elaboradas, mas conformidade da consciência com uma experiência da qual o sujeito participa concreta e historicamente segundo a própria vontade.
Vieira critica aqueles pregadores que se comportam no púlpito como se comportam os atores no palco, sem qualquer compromisso com a verdade, levando os ouvintes a apartarem-se dos fatos e da experiência:
“São fingimentos, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédias, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes”.[28]
Mais uma vez, a fonte é Aristóteles, onde ele afirma que o fato de existirem homens “que empregam a linguagem que procede da ciência não prova em nada que a possuam”, e que, por isso mesmo, “temos de supor que os incontinentes falam à maneira dos atores de teatro”.[29]
Portanto, se havemos de proclamar a relação íntima entre a conversão e a linguagem, de modo que o uso da palavra em Vieira exprime uma unidade de pensamento e ação subjacente à sua personalidade múltipla de missionário, conselheiro real, diplomata e, principalmente, de escritor, havemos de considerar que a consciência empírica em Vieira implica a consciência de si como uma consciência originária e necessária da identidade de si mesmo que é, ao mesmo tempo, a consciência de uma unidade, igualmente necessária, do eu em sua existência histórica e em sua pluralidade de significações.
A questão da identidade ontológica
Na medida em que assume como ponto de partida dos seus estudos o problema ontológico de Tobias Barreto, acerca da diferença entre os objetos que constituem o mundo da natureza e os objetos que constituem o mundo da cultura ou dos valores, Miguel Reale introduz o assim chamado culturalismo como sendo, segundo suas próprias palavras, “talvez a única corrente filosófica brasileira constituída na imanência de nossas circunstâncias”.[30]
Sem negar ao pensador sergipano a origem do culturalismo, em cuja trajetória Miguel Reale passou do universo kantiano de Tobias Barreto para Hegel e para Husserl, acreditamos que o problema assimilado por Miguel Reale tem raízes mais profundas na história da cultura de língua portuguesa, a saber: na tradição ético-política inerente ao pensamento de Antônio Vieira. Deduzida da idéia de valor em Tobias Barreto, que aparece sobretudo onde ele afirma que “a cultura é [...] a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de fazê-lo belo e bom” (ver citação da nota 4), a tese nuclear do culturalismo, de que “o ser do homem é o seu dever-ser”, é apresentada por Miguel Reale da seguinte forma:
“As realizações da espécie humana [...] jamais se desvinculam de sua base ou raiz fundante, que é dada pelo homem mesmo, tomado [...] não em sua individualidade empírica circunscrita, mas como eu participante de outros eus, isto é, como pessoa, que é o indivíduo em sua dimensão intersubjetiva. Destarte, os eventos históricos [...] se contêm dentro do âmbito de legitimação ética que se projeta fundamentalmente do valor-fonte que é o valor da pessoa humana, por ser o homem o único ente que, de maneira originária, tanto é como deve ser: o valor da pessoa humana [...] representa, portanto, o pressuposto da conduta ética [..] A afirmação por mim tantas vezes feita de que o homem é enquanto deve ser, ou de que o ser do homem é o seu dever ser, não tem alcance puramente ôntico [...] porque implica uma tomada de posição radical de ordem deontológica [...] tanto vale dizer que o dever ser é o ser do homem (determinação ôntico-axiológica do homem) como dizer que o ser do homem deve ser respeitado e atualizado como tal (afirmação do homem no plano da ação) [...] Se digo que o homem é enquanto deve ser, nessa afirmação está implícita a identidade ontológica de todos os homens, coincidindo todos nós [...] naquela “condição transcendental ontológica e deontológica de sermos pessoas”, verdade da qual nos damos conta através da história, mas que é logicamente anterior a ela, como seu fundamento radical [...] É a razão pela qual pode-se concluir que a pessoa é o homem em sua concreta atualização [...] enquanto o eu toma consciência de si mesmo e dos outros, na sociedade do nós”.[31]
Vemos aí a postulação clara de uma fundamentação da experiência (no sentido kantiano de que a experiência implica o princípio de relatividade e, em consequência, a relatividade dos valores) a partir de uma concepção ética do homem. Essencialmente, afirma-se, como um princípio, (i) a necessidade de transformação do homem natural em pessoa mediante a superação do ser pelo dever-ser; com base nesse princípio, recorre-se ao conceito de participação para explicar que (ii) o eu se transforma em pessoa na medida em que participa de outros eus; finalmente, recorre-se ao termo ‘ato’ (actus), em sua dupla acepção aristotélica[32] de ação (energeia) e de fim (teloV) para explicar que (iii) o dever-ser é o ser do homem atualizado no plano da ação.
É evidente a ligação dessas idéias com o pensamento de Tobias Barreto, quando este propõe uma “idéia geral do homem [como] um animal que prende-se, que doma-se a si mesmo”,[33] argumentando que “o seguir a natureza, em vez de ser o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última de toda imoralidade”,[34] com base no princípio, de inspiração kantiana,[35] de “serem as leis da liberdade as mesmas leis da natureza”.[36]
Entretanto, o sentido essencial do problema, isto é, a superação do modo natural do ser pelo dever-ser, é evidente em nossa cultura desde Antônio Vieira. No Sermão de Santo Antônio, realizado na festa que se fez ao Santo na Igreja das Chagas, aos 14 de setembro de 1642, tendo-se publicado as Côrtes para o dia seguinte, o Pe. Antônio Vieira, preocupado com o problema da injustiça social no reino português, argumenta da seguinte maneira:
“Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo [...] Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade [...] Boa doutrina estava esta, se não fora dificultosa, e, ao que parece, impraticável. Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados [clero, nobreza e povo] do reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão-de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? Já se sabe que há-de ser: Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: vós sois semelhantes ao sal; senão: vos estis. Vós sois sal. Não é necessária filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão-de transformar os homens, e que hão-de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação. Por isso tendo Cristo constituído aos Apóstolos ministros da Redenção, e conservadores do mundo, não os considera sal por semelhança, senão sal por realidade [...] porque o ofício há-de se transformar em natureza, a obrigação há-de se converter em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício; porque cada um é o que deve ser, e senão, não é o que deve”.
Segundo esta argumentação, há dois modos do ser: o ser “dado por natureza” e o dever-ser. O primeiro, é o modo do ser em que a existência das coisas, inclusive do próprio homem, não depende da inteligência nem da vontade humanas, senão da determinação absoluta de leis universais e eternas; o segundo, é o modo do ser cuja existência, a começar pelo próprio homem, depende da participação dessas mesmas leis, naquele mesmo sentido em que São Tomás de Aquino se refere à “participação da lei eterna pela criatura racional”.[37]
Nesse sentido, se o homem há de transformar-se, se ele há de deixar de ser o que é por natureza, isto supõe a conversão, isto é, a “visão interior” de si mesmo obrigado à natureza. O sentido ontológico dessa transformação está em que a existência das coisas não é nunca requerida como necessária pelo próprio dado, sendo assim sempre contingente; somente a conversão, através da participação intelectual das leis universais que determinam a própria existência, poderia levar o homem a revestir de necessidade a própria existência.
Assim, há de libertar-se o homem do mecanismo da natureza pela consciência de si como aquele cujo ser é obrigado à natureza, não só pelo conhecimento das leis universais que determinam a própria existência, como também pelo modo necessário como realiza a própria vontade por imitação da natureza. Somente pela conversão o homem seria capaz não só de ver a si mesmo como criatura de Deus, obrigado a leis universais, mas, acima de tudo, seria capaz de reconhecer tal obrigação como essencial.
Quando Vieira diz “a obrigação há-de se converter em essência”, isto deve ser entendido no mesmo sentido em que se diz, nas ações humanas, “é necessário que assim seja, é necessário que assim se faça”; neste sentido, a obrigação (enquanto obrigação a regras e leis) é princípio de eficiência da ação pelo que ela tem de essencial e não de acidental.
Quando Vieira diz “o ofício há-de se transformar em natureza”, isto deve ser entendido no sentido de que o ofício (officium), como obrigação a regras e leis, como dever, converte-se em essência sem prejuízo da própria vontade. Tal exigência se cumpre na medida em que ao homem, enquanto criado à imagem e semelhança de Deus, não basta conhecer a mecânica das leis da natureza, mas também querer o que elas realizam. Primeiro o conhecimento, na medida em que é necessária uma ciência das coisas para se ir ao encontro da natureza e não contra a natureza; ao saber acrescenta-se o sentimento do dever, no sentido de que é necessário não apenas saber como se determina existência das coisas por leis universais, mas também querer as próprias coisas assim determinadas.
Desse modo, “devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem” no mesmo sentido em que Aristóteles, ao definir a vida como ato ou exercício, reconhece como própria e essencial uma “função do homem que consiste em uma atividade da alma conforme à razão”.[38]
Ao calar o nome da pessoa e dizer o nome do ofício (Ego sum vox), o ser do homem se revela como dever-ser, isto é, como pessoa, como sendo “o homem em sua concreta atualização”, para lembrar aqui as palavras de Miguel Reale.[39] Em outras palavras, “o ofício há-de se transformar em natureza” na medida em que o homem supera o determinismo da natureza sem prejudicá-la, o que vai ao encontro do princípio de que nenhuma vontade é virtuosa senão quando se transforma em lei para si mesma.
Assim sendo, se em algum sentido os homens se igualam, isto só é possível em virtude do sentimento da obrigação, porque tal sentimento pressupõe o sentido da participação pela razão e pela vontade livre. As fontes deste entendimento, como já referimos, são Aristóteles e São Tomás de Aquino. Esta referência, entretanto, passa pelo aristotelismo medieval português. No Tratado da virtuosa benfeitoria, o Infante D. Pedro entende que “os sobdictos offereçem ledos e uoluntariosos seruiços aaquelles a que por natureza uiuem sogeytos, e som obrigados por o bem que rreçebem”,[40] mas esclarece que essa sujeição não é virtuosa se não é desejada:
“Cousa he perteeçente de sabermos o que nos moue a fazer bem. E pera declaraçom daquesto, aprendamos que diz aristotilles no iij liuro da alma que a uoontade he mouedor per outrem mouido. E pera sse mostrar aquesta conclusom. Saybhamos que no ij liuro dos fisicos he scripto. Que a arte , aaquall pertençe a fim, moue per seu mandado as artes que trabalham em os meyos perque a fim há de seer gaançada [...] Semelhauelmente a uoontade sguardando o bem comuũ que he fim de todallas obras, moue as outras uirtudes e poderyos da alma, que teem cuydado de cada huũ bem particullar. E portanto he scripto no primeyro liuro da poliçia, que a uoontade moue per seu mandado os poderyos defenssor e deseiador. Os quaaes lhe obedeeçem, nom como seruos em costrangida sobieeçom, mas segundo homeẽs liures em obedeença deseiosa”.
Notas
[1] Cf. Leonel Franca, O método pedagógico dos jesuítas. O “Ratio Studiorum”. Rio de Janeiro, Agir, 1952, p. 159.
[2] Idem, p. 160.
[3] Cf. “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, in: Obras. Rio de Janeiro, Garnier, 1865.
[4] Cf. “Sobre uma nova intuição do direito”, Estudos de filosofia, in: Obras completas. Rio de Janeiro, Record/INL, 1990.
[5] Cf. História das idéias filosóficas no Brasil. São Paulo, Convívio, 1987 (4ª ed.). Cf. também do mesmo autor A escola eclética. Universidade de Londrina, 1996.
[6] Ver Experiência e cultura. São Paulo, Grijalbo/EDUSP, 1977; ver também do mesmo autor Verdade e conjetura. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, especialmente “Ontologia da liberdade e do valor”.
[7] Cf. Verdadeiro método de estudar, ed. de A. Salgado Júnior. Lisboa, Sá da Costa, 1950, vol. II.
[8] Obras escolhidas. Lisboa, Sá da Costa, 1951.
[9] Cf. Instituições dialécticas, introd. e estabelecimento do texto latino, trad. e notas por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de coimbra, 1964, vol. I, p. 25.
[10] Idem, vol. II, p. 515.
[11] Cf. Isagoge filosófica. Introd., edição do texto latino e trad. por Joaquim Ferreira Gomes. Universidade de Coimbra, 1965, pp. 54s.
[12] :Cf. São Tomás de Aquino, Summa theologica I, q. LXXIX, a. III, apoiado em Aristóteles, Metaph. III, IX.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 8.
[18] Sermão da Sexagésima.
[19] Ibidem.
[20] Cf. Instituições dialécticas, vol. II, p. 575.
[21] Idem, vol. I, p. 35.
[22] Summa theologiae, prima secundae, q. XCI, a. II.
[23] Ética a Nicômaco, I, 7.
[24] Ibidem.
[25] Instituições dialécticas, vol. I, 1.
[26] Sermão da sexagésima.
[27] Sermão de Santo Antônio (1642).
[28] Sermão da sexagésima.
[29] Ética a Nicômaco, I, 3.
[30] Cf. “Primórdios do culturalismo no Brasil”. In: Estudos de filosofia brasileira. Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, p. 113.
[31] Experiência e cultura, pp. 195s.
[32] Metaph. 8.
[33] Cf. “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações anti-sociológicas”. Idem, ibidem.
[34] Ibidem.
[35] Ver Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, Terceira Seção.
[36] “Glosas...”.
[37] Ver nota 22.
[38] Ética a Nicômaco, I, 7.
[39] Ver citação da nota 31.
[40] In: Obras dos Príncipes de Avis. Porto, Lello, 1981, p. 533.
[41] Ibidem, p. 567.
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